30 de setembro de 2011

Os cansados não ouvem jazz




Tem um filme simpático do Otto Preminger, de 1962, intitulado Tempestade em Washington, que aborda o tema da chantagem na alta política americana, e que eu assisti pela primeira vez há poucos dias. A história se passa inteiramente no Congresso e os personagens são todos senadores, além do presidente. Como usualmente acontece nas histórias holliwoodianas, apontam-se os podres do sistema, mas essas zonas escuras servem apenas para os roteiristas exibirem, orgulhosamente, o amor que votam aos ideais democráticos e à liberdade. Se esses ideais não passavam de palavras vazias, e eram defendidos (como hoje) ao mesmo tempo em que se massacravam os mesmos valores nos países em desenvolvimento, isso é outra história. Nem acho que é para tanto.

Eles - os americanos - acreditam, nos ideais, mas ainda não entenderam que um princípio democrático nunca será moderno e nunca será de fato autêntico e coerente consigo mesmo enquanto não açambarcar a humanidade inteira. E isso já não é uma utopia ingênua. A instabilidade econômica global, as ameaças virais que pairam, sinistras, sobre a raça humana, os desequilíbrios ecológicos, só encontrarão respostas quando surgir um comando político centralizado no mundo. Moeda única, regras únicas, uma educação que tenha ao menos algumas plataformas unificadas. Eleição de uma língua franca (possivelmente o inglês), que deveria ser ensinada como segundo idioma a todos os homens, através de cursos públicos patrocinados pela própria ONU nos países mais pobres.

Mas é melhor parar com esse papo senão daqui a pouco estou votando em Marina Silva, e eu não gostaria de cometer um desatino assim.

Pesquisando na web sobre esse filme, topei com um post que seria uma excelente resenha, não pecasse pela inferência idiota e forçada que faz da realidade tupiniquim. Ele diz que assistir ao filme lhe produziu imensa vergonha de nossos políticos, porque, na história de Preminger, os senadores se digladiam por ideais e não por interesses mesquinhos e cobiça, como acontece - diz o blogueiro - no Brasil. Ora, compre um remédio pra sarna! Esse complexo de vira-lata enche o saco. O sistema político americano sempre foi podre, sempre viveu atolado em corrupção. Os interesses mesquinhos no mundinho estadunidense são tão arraigados que o lobby se tornou uma indústria bilionária, além de legalizada, e sem mencionar a desagradável mania que os congressistas ianques tinham (e ainda tem, como se viu em 2002 com a Venezuela) de apoiar golpes de Estado mundo afora.

O filme é bom, mas trata-se de uma ficção que mostra um pouquinho do lado podre da política americana. Só um pouquinho, para não assustar as donas de casa.

Entretanto, acho que foi interessante esbarrar com mais essa vira-latice; é um caso bem representantivo de como pensa um setor importante da sociedade brasileira. Os famigerados estratos médios produzem, em ritmo frenético, imbecis deslumbrados com a própria cultura. Suas manifestações textuais invariavelmente parecem discursos proferidos do alto de um púlpito sagrado, mesmo quando simulam (sobretudo quando fazem isso), com ar blasé, informalidade e non-chalance.

Daí eu lembro do nosso glorioso Merval Pereira e de sua eleição para a Academia Brasileira de Letras. Até hoje não comentei o fato. Lembro que, assim que o soube, imaginei que o colunista do Globo mereceu esta honra pela sua habilidade em usar o futuro do pretérito. Jamais houve jornalista ou escritor com mais talento para manejar expressões tais como "fulano teria dito", "sicrano teria ouvido". Afora o monstruoso dom que tem para sondar os pensamentos secretos e íntimos dos poderosos. Quantas vezes Merval não destrinchou o inconsciente de Lula? Se não acertou nenhuma vez, não é por sua culpa, naturalmente, visto que é um gênio imortal. A culpa é de Lula que mudou de ideia...

Claro, a eleição de Pereira foi um típico "aparelhamento". Não vou dizer que ele seja um analfabeto, como fez um colega. Não. A gente tem que perder essa mania pedante de chamar todo mundo de analfabeto. Merval Pereira sabe ler muito bem e se trata, obviamente, de um sujeito tremendamente astuto, com uma invejável capacidade de trabalho. Aliás, eu tiro o chapéu para esses caras. Miriam Leitão, Merval, Jabor, trabalham com uma energia que me enche de admiração. A Miriam Leitão escreve uma coluna diária no Globo. Fala na CBN também todo dia. Aparece na Globonews. Tem um blog. Para culminar, desempenha sempre um papel importante nos filmetes publicitários que a Globo exibe de vez quando. A moça tem garra!

No discurso em que homenageou Merval, o super acadêmico Eduardo Portella não escondeu as razões que fizeram seus pares escolherem o jornalista para ocupar uma vaga na ABL. Foi um movimento político muito bem premeditado. Assim como tem sido essa festinha toda para que surja uma nova legião de cansados enfurecidos.

Confesso que fiquei bem ressabiado ao ver os jornais convocando manifestações ao mesmo tempo em que ressaltavam a sua "independência". Adotei uma postura deliberadamente hipócrita, voltariana, se é que se pode atribuir tal qualidade a si mesmo sem cair no ridículo - porque eu sabia que aquelas manifestações eram vazias, oportunistas, mais um capitulozinho medíocre no grande livro negro que a mídia escreve há décadas sobre as instituições políticas nacionais. Entretanto, como dizia Regina Duarte, eu tive medo. Muito medo.

A manifestação da Cinelândia foi um fracasso, é preciso que se diga com todas as letras. Esperavam mais de 30 mil e somente 2.500 compareceram. E olha que vieram algumas celebridades das artes, como Frejat e Fernandinha Abreu.

Agora eles estão tentando organizar outra manifestação no dia 12 de outubro. A mídia continua ajudando, divulgando e dando prestígio ao movimento. Não vaticinarei um novo malogro, mas não posso continuar agindo como um guarda do Palácio Real de Londres. Se eu ainda dava um certo crédito a essas manifestações anti-corrupção, a quantidade de abutres que se ouriçaram ao vê-las convenceu-me do contrário.

Não vou chamá-las, contudo, de golpistas, apesar de que elas exalam um fortíssimo cheiro. Um tiranete midiático vai usar técnicas bastante sutis para enganar a vontade popular e praticar uma espécie de golpe político. Mas se é mesmo tão sofisticado, o seu golpe já não pode ser considerado ilegal. É um golpe que não infringe, não diretamente ao menos, o princípio democrático, e portanto deve ser combatido com os instrumentos democráticos a nossa disposição.

No filme de Preminger que cito no início do post, tem um personagem - um senador jovem, voluntarioso, cercado de puxa-sacos -, que é o defensor mais apaixonado do presidente, mas é justamente ele que põe tudo a perder. Porque ele não entende alguns preceitos de uma democracia: uma vitória não precisa ser absoluta para ser uma grande e completa vitória; se não quisermos sermos mordidos, devemos deixar que os cães ladrem à vontade; demonstra-se força e prestígio não através do silêncio de nossos adversários, mas pela altivez e elegância com que enfrentamos seus impropérios. E partir para a baixaria - coisa que os rapazes das melhores famílias fazem sem disso se dar conta - apenas nos degrada.

Dito isso, não sou nada otimista em relação às lutas que travamos para democratizar a comunicação. A tal Ley dos Medios provavelmente não vai sair, e mesmo se sair não creio que dará resultados concretos. Concentração dos meios de comunicação? Ora, pode-se até proibir. Os gigantes se coligarão e driblarão a lei. Um Marinho leva a TV, outro Marinho leva o jornal, um terceiro Marinho leva o rádio. A fantasia esperta de nossos morenos Lampedusos. Cada um na sua, conforme a nova lei, e tudo continuará na mesma.

Por outro lado, após tantas vitórias, a gente às vezes até esquece do que está reclamando. Com o universo midiático relativamente pacificado, alguns blogueiros partem para o superficial, acusando a imprensa por eventuais escorregadelas semânticas ou sintáticas. Ironicamente, os gigantes da mídia, com todo seu imenso poderio, semelham garotos palestinos atirando pedras em tanques de guerra. Sendo que os tanques de guerra somos nós, as forças progressistas. Os partidos conservadores minguam em velocidade crescente. Li hoje que até o ACM Neto vai sair do DEM. E os tucanos correm desta vez sério risco de perder a sua cidadela.

O que falta, então? Por que nunca estamos satisfeitos?

Pois bem, eu vou dizer o que falta. É muito simples. Ou antes, não é nada simples. Falta realizar justamente agora o mais difícil. Falta a realização dos grandes projetos. Por isso é que se combate tanto a construção do trem-bala. Ele é um grande projeto. Na área da cultura, ainda esperamos o despontar de um boom cinematográfico que nunca chega. Temos visto somente espasmos de criatividade, geniais mas efêmeros. O mundinho literário é sempre cheio de auto-referências elogiosas, mas a verdade é que há muito tempo os dez livros mais vendidos são invariavelmente de autores norte-americanos. Isso não é normal, não é saudável, não tem explicação plausível. O Brasil precisa reconstruir-se culturalmente, mas de uma forma realmente autêntica, livre. Bem distante dos protestos verde-tecnológicos das viúvas de Gilberto Gil, dos clichês solipsistas dos garotos do Millenium, das xaropadas midiáticas, das panelinhas da Vila Madalena, etc. Eu acho que o brasileiro precisa é de solidão. Solidão, trabalho, renúncia. Mas eu permito que se vá, às quarta-feiras, ao live jazz da praça Tiradentes, para ouvir Miles Davis e contemplar o belíssimo edifício mourisco do Real Gabinete Portuguez (assim, com z mesmo). É muito melhor que o Rock in Rio, não tem engarrafamento, a cerveja é barata, o ingresso é grátis, e garanto que dificilmente encontrá algum cansado ou neo-cansado por aquelas bandas...

(Imagem: Juliano Guilherme)

9 comentarios

SPIN IN PROGRESS disse...

Miguel, não podemos negar a força da publicidade no uso do tema corrupção, claro, sempre corrupção dos outros, veja so, o STF acabu de descobrir que a Familia Maluf desviou mais de 1 bi de dólares, veja só, dólares, não reais, de forma que os 20 milhões que Palocci faturou durante anos e de forma lícita e nada diante dessa dinheirama. É onde noto a força da publicade nesta seara da corrupção. Porque afinal de contas o povo se indigna com a merreca ganha honestamente por Palocci e não se ouve nem um pio por conta dos bilhões de dólares roubadas pelos Maluf. Claro que este milagre acontece por conta da mídia. Estou dizendo isso porque dias atrás, ao ler sobre a Operação Mãos Limpas, desencadeada na Itália quando a esquerda ou centro esquerda estava no poder, foi um tiro no próprio pé, pois o resultado foi a eleição do "honestíssimo" Berlusconi que, como se vê, quanto mais depravação e corrupção, mais firme fique no poder. Mais uma vez, como se explica isso senão por conta do poder de Berlusconi sobre os meios de comunicação daquele país, sendo ele mesmo dono de impérios de comunicação? Voltando ao Brasil, o que tem feito este governo nos últimos anos senão combater de forma insistente a corrupção? Quem pôs Maluf na cadeia? Foi a PF de FHC? Não! Foi a PF de Lula. E Daniel Dantas, o brilhante de FHC, quem o levou para o xilindró? Foi a PF de Lula, mesmo que o Judiciário o tenha soltado. Apesar destas verdades, muitos pensam que Lula foi
conivente com a corrupção e, se isso ocorre se deve ao fato de que todos os meios de comunciação, rádios como a CBN, jornais, TV, todas funcionando como agências de publicidade quando, a título de estarem noticiando, estão fazendo nada mais nada menos do que publicidade. Esperam assim em 2014 eleger Berlusconi. Eles não passarão.

P.S.- Uma pena que as pessoas detestem comentar nos blogs blogspot. Sei que durante dias serei o único a ter comentado por aqui, fazer o que né.

Ah, parabéns ao Juliano Guilherme, ele está arrasando na pintura, assim meio desenho, muito bonito mesmo.

P. P. P. disse...

Miguel, todos nós somos americanos.

Assim, sugiro o uso de 'ianque' para designar os nascidos no mesmo lugar que Busch - 'o moita'.

Rildo Ferreira disse...

Caro Miguel.

Sobre filmes, tem outro que sugiro veja. Trata-se do Onda Verde, com Matt Dammon. Na trama que leva os militares ao Iraque para procurar por armas nucleares, tem a mãozinha da imprensa com suas fontes "off" e uma mãozona dos fabricantes de armas para o exército estadunidense.

Sobre a Academia e a imortalidade do Merval talvez tenha sido escolhido pela capacidade cognitiva de imaginar coisas, tal como a Míriam Leitão. E por escrever sobre o que imagina e representar bem o pensamento desta casta burguesa, Merval continua a ser o representante do pensamento conservador da maioria dos imortais da casa. Aliás, para que serve mesmo a ABL?

Rildo Ferreira

Anônimo disse...

Miguel a Direita mingua, mas em compensação aparecem cada vez mais pequenos partidos (28 ao todo) fisiológicos sem uma matriz ideológica,e os partidos de dito de esquerda não crescem na mesma velocidade para equilibrar o jogo político.Sinceramente não sei se é bom ou não, não termos partidos com identificação ideológica, mesmo que de direita?

Paulo Reis - Caxias/RS

Juliano Guilherme disse...

Spin, obrigado pelo elogio. É um quadro de 2001. Antes do governo Lula, ou seja no desgoverno FHC. Faz parte de uma série de trabalhos que chamei de "pinturas do confonto ", de forte crítica social.
Agora depois da revolução do Lula, meu trabalho está mais "Brasil feliz'
Grande abraço

P. P. P. disse...

Canibal tucana Ana Cristina Luzardo de Castro é condenada

Em 16 de outubro de 2006, ao chegar a um dos bares mais tradicionais da região, o Jobi, a publicitária Danielle Corrêa Tristão foi hostilizada e teve a ponta do dedo anelar esquerdo arrancada ao ser mordida pela jornalista Ana Cristina Luzardo de Castro.

Leia mais em:

http://esquerdopata.blogspot.com/2011/09/canibal-tucana-ana-cristina-luzardo-de.html

Antonio Luiz disse...

Miguel, você às vezes tarda, mas não falha.
Gosto muito de ler a maioria de seus textos. Simples e profundos. Parabéns

Anônimo disse...

Eu acho que o brasileiro precisa é de solidão. Solidão, trabalho, renúncia.
Às vezes, fico chocada qdo uma pessoa tira de mim uma ideia importante, por ser íntima e fundante (ou refundante). Falo isso porque me separei há alguns anos e decidi ficar sozinha pelo tempo que considerasse necessário para ter um feliz reencontro comigo mesma e poder me reconstruir a partir disso. Solidão, trabalho e alguma renúncia tem sido os meus lemas reconstrutores e, agora que me considero pronta para estar com alguém, vejo a sua frase e posso dizer, por experiência própria, que essa receita funciona, quando o tema são rencontros, redescobertas, refundações, seja em um plano pessoal, seja coletivo. Não costumos concordar com todas as suas ideias, o que considero positivo, mas sempre respeito a sua forma de pensar, porque vc o desenvolve de forma clara e consistente.
Abraços e continue a nos brindar com a sua bela escrita, o melhor que podemos fazer.
Thelma Oliveira

Anônimo disse...

São Paulo é bacana, Miguel.
Pense nisso.

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