"Em 2005 o futuro veio ao presente, mas, como é seu timbre, não veio para ficar. Em vez de previsões certas, temos imprevisibilidades decisivas." Boaventura de Sousa Santos, da Agência Carta Maior
Foi um ano especial. Hà muito tempo que o Brasil não tomava um bom choque político, no sentido negativo. A crise política mostrou uma ferida aberta. Alguns ingênuos achavam que a chegada de Lula simplesmente aniquilaria de vez com a ferida nacional, uma ferida de séculos de injustiça e miséria social.
Em dado momento do ano, a crise política atingiu uma forte tensão. Donas de casa tiveram pressão elevada. Alguns morreram de infarto. O Chico Alencar chorou copiosamente na Câmara quando ouviu que Duda Mendonça foi pago com uma transação financeira no exterior.
Reinaldo Azevedo, editor de Primeira Leitura, atinge os píncaros do prestígio jornalístico, e substitui Olavo de Carvalho na poderosa seção de Opinião do jornal O Globo.
Arnaldo Jabor também projeta-se no jornalismo político. Ocupando uma seção pretensamente artística no Segundo Caderno, Jabor especializa-se em destilar venenos, numa linguagem pós-lacerdista.
Minha mãe rompe com Lula. Diante da tv, ela faz caretas ao ver o barbudinho falando e diz, aborrecida: "como eu pude acreditar nesse bestalhão? Eu chorei por ele!".
Miriam Leitão ganha prêmio de colunismo político nos EUA, o mesmo prêmio que deram ao Lacerda.
Pra mim, o que ficou claro neste 2005 é uma coisa que a gente já sabia. O cerco midiático à Chávez tinha nos alertado. Cercaram Lula em 2005. Fizeram as donas de casa desconfiarem de Lula, as boas senhoras. Os bêbados amargos dos bares murmuram: todos são safados... Lula também é.
Algumas cenas diferentes também marcaram 2005. Na Lapa, às duas da manhã, num bar onde rolava música ao vivo de graça, conheci um trabalhador, pessoa simples, que me pagou uma cerveja. A certa altura, a música alta rolando, ele bateu no peito e falou: Eu sou Lula!. Tinha o rosto contrito, como se falasse com uma espécie de dor.
Há muitos anos, pra não dizer décadas, não ouvíamos dirigentes sindicais falarem tão grosso como este ano. Lideranças dos poderosos sindicatos do ABC paulista e da CUT ameaçaram ir às ruas.
A poderosa entidade CMS, Conselho dos Movimentos Sociais, que renúne a UNE, o MST e a CUT, os três maiores movimentos sociais do país, demonstrou maturidade e força política, ao realizar diversas manifestações de repúdio à tentativa de desestabilizar o governo.
Os colunistas não acreditaram. As donas de casa não acreditaram nos filhos. A mídia tentou abafar. Mas o fato é que a UNE e a UBES reuniram milhares de estudantes em Brasília, defendendo o mandato do presidente Lula e protestando contra a corrupção.
A outra manifestação, contra o governo, não chegou a agradar a mídia, visto que foi um protesto contra TODOS os políticos e organizada pela ultra-esquerda, cujas palavras de ordem são o oposto do que prega a direita.
Eles sabem. Todos sabem que a corrupção não começou no governo Lula. Os estudantes cantavam: "parece piada de salão / ACM Neto falando de corrupção".
O ano de 2005 projetou a revista Carta Capital, de Mino Carta. O lendário editor mais uma vez faltou à festa dos socialites, não aceitando a champagne da direita. Foi corajoso o Mino Carta, pois certamente haveriam dezenas de grandes empresas querendo patrocinar sua revista. Como sempre, ele conseguiu vender uma revista e não ser vendido.
Uma importante leitura que fiz foi uma entrevista do diretor da Transparência Brasil, Claudio Abramo, na qual ele afirma que todos os estudos jurídicos sobre ética que existem no mundo e todos os avanços éticos derivaram de melhorias institucionais e não de nenhuma revolução ética. Falo isso porque a crise política produziu uma grande histeria moral sobre a ética.
Quem saiu mais chamuscado da crise foi, naturalmente, o PT. Mas foi bom para ele perder a ingenuidade. Entrou dinheiro e poder, entrou corrupção. Não tem jeito. Não tem ideologia que resista a um gordo maço de dólares. Não vêem os cubanos? Até hoje fugindo de barca para Miami? O PT, se quer continuar crescendo e sendo o mais importante partido de esquerda da América Latina, tem que implantar rígidos sistemas de auditoria interna, o que, creio eu, será um passo natural.
Quem eu mais lamentei por se ter enlameado na crise não foi nem o Dirceu, foi o Genoíno, até porque o Dirceu está conseguindo dar a volta por cima. Hoje vejo que Genoíno foi, de fato, um péssimo presidente de partido, péssimo burocrata. Mas foi uma grande liderança política e um exímo articulista e pensador político. As noções do socialismo contemporâneo de Genoíno ainda são as mais avançadas. Segundo a interpretação de Genoíno, que eu considero válidas e concordo com elas, as repúblicas modernas caminham para o equilíbrio dos três capitais: social, governamental e privado. O pensamento tem uma lógica dura e bela: governos que monopolizam o capital tornam-se totalitários; países onde o capital privado monopoliza o poder tornam-se repúblicas de banana; o cooperativismo nunca esteve no poder.
Essa é mais ou menos a noção de anarquismo republicano que venho matutando há algum tempo, um sistema econômico e político que conjugue as liberdades individuais do capitalismo com a segurança social do socialismo. Além de ser um sistema político moderno, que se harmoniza com a comunidade internacional, até porque esse sistema inclui o respeito total às leis internacionais e à soberania das nações.
A crise política produziu sofrimento na esquerda. O sofrimento nos faz mais duros e mais espertos. Eu, que vinha me aproximando da poesia, que é maneira mais concisa e profunda de expressão, mergulhei de cabeça nela em 2005.
Voltei à poesia, que é onde tudo começa, tentando resgatar a densidade política do verbo poético. Nos últimos tempos, a poesia brasileira, a meu ver, adotou o pós-modernismo, esse parnasianismo disfarçado e um pouco mais elaborado, com formas mais livres.
Termino 2005 com um livro de poemas, chamado Antes que chegue a primavera, edição virtual, que pode ser baixada e impressa por aqui.
Feliz 2006 para todos.
28 de dezembro de 2005
Resposta de Osvaldo Bertolino
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Caro Miguel: Agradeço pela carta, uma saudável iniciativa de debate sobre um assunto que vara o país de cima a baixo e vai definindo os rumos para onde devemos caminhar. Concordo contigo que o grau de complexidade do Brasil de hoje é elevadíssimo. Mas a Argentina acaba de dar exemplo de que é possível dispensar os serviços do FMI sem o ministro da economia original — Roberto Lavagna recentemente deixou o governo do presidente Néstor Kirchner. A complexidade argentina não chega perto da brasileira, claro, claro! Mas a definição por esta atitude no Brasil certamente não foi iniciativa do Palocci. Lembra da polêmica que se estabeleceu no país quando o acordo com o FMI caminhava para o seu final, no início deste ano? Palocci deu sinais evidentes de que a opção pela não renovação do acordo não tinha a sua concordância. Recentemente fiz uma retrospectiva da sua chegada e atuação no governo ("Queda do PIB: em casa que falta pão...", publicada dia 03/12 - http://www.vermelho.org.br/diario/2005/1203/1203_queda-do-pib-artigo.asp). Escrevi: "Ele havia despontado como um dos expoentes da transição oito meses antes, quando houve o assassinato do prefeito de Santo André e coordenador do programa de governo, Celso Daniel. Assim que indicado, mexeu no programa de governo, tirou do texto original afirmações como ruptura com o modelo neoliberal e críticas ao capital especulativo, e bateu o pé até convencer o então candidato Lula a fazer o anúncio por escrito dos compromissos da era FHC com o FMI — metas de inflação, câmbio flutuante e superávit primário —, num documento chamado Carta ao Povo Brasileiro." Mais uma vez, obrigado pela carta — muito mais progressista do que a do Palocci.
Grande abraço, Osvaldo Bertolino
Grande abraço, Osvaldo Bertolino
21 de dezembro de 2005
Carta ao articulista Osvaldo Bertolino, do Vermelho
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(Fonte: http://www.gutov.ru/portrets/large/Lenin.jpg)
(Acabei escrevendo uma carta tão longa que virou um artigo político,
por isso, movido pelos deveres cívicos, compartilho com todos)
(Acabei escrevendo uma carta tão longa que virou um artigo político,
por isso, movido pelos deveres cívicos, compartilho com todos)
Prezado Osvaldo Bertolino, antes de mais nada quero lhe agradecer pela excelência filosófica de seus artigos publicados no site Vermelho. São um bálsamo no oceano de merda no qual às vezes me sinto rodeado. Eu também milito na causa do jornalismo político e tenho grande admiração pelo PC do B. Atualmente até mais do que pelo PT, que é grande e popular e tal, mas ainda é muito inocente nas lides com as hostes inimigas. Não aprendeu ainda que é necessário estar com o olho no peixe fritando e outro no gato do lado, como diz o Zeca Pagodinho.
Em seu último artigo, tem um ponto que tenho a quase honra de discordar contigo e apontar-lhe o que certamente foi uma distração teórica sua. Em resumo, você fala da excelência da política externa brasileira, que está levantando o turismo, as exportações, a visão que o mundo tem do Brasil. Tudo isso é graças ao governo Lula, que promoveu uma mexida estratégica no Itamaraty, a começar pela nomeação do brilhante Celso Amorim, uma das figuras mais espertas que tivemos nessa área. Graças a Deus ele não se envolveu com a politicagem doméstica, que é sempre a pior parte da política de um governo brasileiro.
Como ia dizendo, o pagamento da última parcela da dívida com o FMI foi muito mal explicado pela imprensa. Em todos os jornais, falou-se: BRASIL VAI PAGAR ADIANTADO 15 BILHÕES AO FMI. Essa era a manchete principal em todos os jornais e também na televisão.
Ora, se eu pago adiantado o meu aluguel, eu sou um imbecil. É o que eles passaram. Não FRISARAM (essa palavra é chave no jornalismo) o fato principal. O ato de independência. Se houve ao menos um jornal de grande circulação que fosse mais.. digamos, progressista, daria a seguinte manchete:
BRASIL DÁ O ÚLTIMO ADEUS AO FMI ou
Brasil reforça independência no cenário internacional ou
Brasil paga dívida com FMI e se fortalece politicamente
Em suma, o pagamento da dívida com o FMI foi uma jogada de mestre. Futeboleiros, videogameiros ou xadrezistas sempre admiram uma boa jogada, seja ela da direita ou da esquerda. Os arautos da mídia não foram educados. Não cumprimentaram. A direita calou-se, rangendo os dentes. E o pior é que, como sempre, grande parcela da esquerda forma seu pensamento lendo Estadão e Globo. Reagem como se houvessem acreditado piamente no que a mdía disse. Não são nem ao menos críticos. Não tem malícia. Ou então é pura malícia, nada mais.
Agora, o que discordo de você é o seguinte:
Você desprezou o zagueiro desse time. Um zagueiro discreto, mas durão.
É, meu chapa, o papel do Palocci é o mais difícil de todos. Eu entendo porque o Lula colocou ele lá. Ele é o cara que sofre mais pressão para soltar uma grana que, no fundo, é pouca.
No entanto, quase dói dizer, mas é a matemática mais pura que você esqueceu, e isso constituiu a única (mas importante) falha teórica no seu artigo. Não fosse Palocci , o Brasil NUNCA pagaria a dívida. Para uma série de outras coisas, o Palocci foi um... desculpe o termo, filho-da-puta. Pra saúde pública e para as obras de infra-estrutura. Mas neste caso específico, fica totalmente contraditório detonar, no mesmo artigo, o Palocci e o pagamento final da dívida externa. Foi genial e vamos tirar o chapéu para o Palocci, pelo menos uma vez na vida.
Agora, eu acho que, com essa cartada final de pagar o FMI, o papel dele no governo está cumprido. Dele e do Meirelles. No segundo mandato do Lula, se houver um, acho que TEM que colocar outro ministro. Um cara verdadeiramente desenvolvimentista. No Banco Central então, nem se fala. Ou então enquadrá-los. Agora que o Brasil está realmente livre, pelo menos do ponto-de-vista jurídico internacional, agora é hora de começar a apertar o acelerador. Tenho a impressão que é isso que o Lula tá começando a fazer. Ele está pressionando pesadamente os ministros a executarem seus orçamentos e estimulando a Dilma Roussef nas pauladas contra o Palocci e o superávit.
O superávit não vai acabar em 2006, mas tenho quase a certeza que vai diminuir bastante. Ainda mais que o ano é eleitoral. Por mais que a Miriam Leitão vocifere contra qualquer ousadia de Lula como "estratégia eleitoral", não tem jeito, mêu. O governo Lula vai ter que usar todas as cartas que tem nas mangas em 2006. Por isso, acho muito precipitado o que setores da mídia e da direita estão fazendo: cantando vitória. Ah, claro, isso também é estratégia. Diga que vai vencer e vença! Garotinho já teve a arrogância de afirmar que o segundo turno de 2006 será ele, pelo PMDB e alguém do PSDB.
Tem outro fator ainda mais importante que a mídia e "os pensadores midiáticos" nunca lembram. Lula foi eleito com 52,8 milhões de votos, equivalente a 61% dos votos válidos. Foram 20 milhões de votos a mais que o segundo colocado, José Serra, que teve 33,3 milhões de votos. Tenho sérias dúvidas se o Arnaldo Jabor vai dar conta de tanta gente.
Cordialmente, Miguel do Rosário
oleododiabo.blogspot.com
20 de dezembro de 2005
Morales e a contra-informação
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"Aquele que não possui nada, não teme nada."
Evo Morales, durante greve de fome
Photo: Al Giordano, D.R. 2002
Evo Morales, durante greve de fome
Photo: Al Giordano, D.R. 2002
Enquanto os comentaristas da televisão e da imprensa escrita no Brasil prosseguem babando a mesma ladainha burguesa que existe em toda América Latina, dicotomia barata entre o fascistóide direitismo de salão, com suas estatisticas de google e o esquerdismo raivoso e piolhento, a vitória de Evo Morales nas eleições presidenciais da Bolívia e a aproximação política entre Chávez e Lula merecem ser analisadas com extrema atenção.
O fato é que existe em toda América Latina, uma grande maioria que ainda não tem voz. A disputa ideológica, masturbatória, que observamos em briguinhas de internet, debates partidários e discussões de bar, é ainda, infelizmente, uma guerra intra-social, entre membros da classe média. Como diz um amigo, um conflito entre invejosos e egoístas.
Claro que isso é uma grosseira simplicação. Há grandes e numerosos quadros na política nacional. Quer dizer, não sei se tão numerosos assim, mas enfim... há grandes quadros.
O debate ideológico entre esquerda X direita, capitalismo X socialismo prossegue no mundo, capitaneado sobretudo pelos malas de toda parte. Os alienados dividem-se em talentosos, medíocres e mais ou menos.
Pois bem, enquanto os intelectuais latino-americanos continuam hesitando entre o batom vermelho do trostkismo e o cabelo punk do neoliberalismo, empresários, sindicalistas e trabalhadores tentam governar os países.
Função do intelectual engajado: encher o saco. Perde noites roendo as unhas perguntando-se: se eu escrever isso aqui, serei chamado de direita pelo pessoalzinho tal? Se eu escrever outro tanto ali, serei chamado de radical e terrorista pelo fulano tal? Por fim decidem tendo em vista o brilhante futuro de puxa-sacos que lhes esperam.
A inteligentsia quer vender livros e aparecer na Globo News, no Jô Soares... Vaidade, tudo é vaidade, já dizia o Eclesiastes.
Tá certo, estamos todos no mesmo barco. Raça humana, esse bando de macacos discutir política? Ah ah ah. Que nos resta senão rir, contar piadas, ouvir música e fazer amor? Deixa o Lula afundar! Os empresários tão satisfeitos. Exportaram bem, viram o mercado interno se consolidar e as perspectivas econômicas de long prazo melhorarem extraordinariamente de qualidade.
Agora chega. Os quatros anos do sapo barbudo foram só um gostinho. Um salgadinho para acalmar as massas insatisfeitas. Permitiram um Lula cercado por um Congresso corrupto, um Senado reacionário, e uma mídia devastadoramente critica.
Agora, não esperem nada dos artistas, man. Eles estão em outra. Para o artista talentoso, culto e bem educado, nada melhor que um governo conservador, que valorize a cultura. Governos de esquerda só pensam em índios e pretos...
Há outra forma de pensar, contudo. Governos de esquerda podem ajudar a produzir, no longo prazo, um público mais numeroso para a arte contemporânea. Não é o que falta no Brasil, acusam os artistas, sobretudo os escritores? Não faltam leitores? Nada que vinte anos de governos de esquerda não possam resolver. Depois, mais uns cinco anos de governo de direita, para contra-pesar e lembrar aos trabalhadores que a história continua vivinha da silva e quem não se organiza, não se comunica e não busca sua justa participação no sistema de poder, se trumbica, como diria o Chacrinha.
Esse texto tá ficando tão complicado que daqui a pouco vão me chamar de Paulo Francis ou pior, Jabor.
Enfim, eu caçôo da esquerda, mas também sou “esquerdinha”, como dizem os soldados dos direitismo tupi. Assumo os 100 milhões de mortos do comunismo internacional, de Stalin a Mao, passando por Cuba e tantos outros. Acho que o Fidel faz muito bem em fuzilar de vez em quando uns espiãozinhos da Cia travestidos de jornalista. Os EUA não matam também? Ah não, esqueci. Quando você mata 1 você é um assassino, quando você mata 1 mihão você é um herói. Confome dizia Raskolnikov antes de dar algumas machadadas na velha usurária...
Mesmo assim, vamo lá. É preciso criatividade. Sofro de terríveis dores de cabeça ao ler certos artigos de gente de “esquerda”, que cita a palavra esquerda tantas vezes no texto que fico me perguntando se ele não faria melhor escrevendo relatórios sobre escapamento de gás. “É preciso ser de esquerda”, diz o cara, como se na expressão houvesse informação suficiente para se convencer o jovem brasileiro a ser de esquerda.
Tenho procurando estar atento ao que pensa a juventude da classe média e eu mesmo busco manter acesa minha chama “jovem” com ajuda dos velhos e consagrados combustíveis: cerveja, cachaça, uísque.
E digo: os intelectuais de esquerda estão perdendo terreno na juventude. Por isso eu fundei o Arte & Politica, para tentar salvar, dentro dos modestíssimos horizontes da minha atuação, o que resta de crediblidade estética na esquerda brasileira.
Sim, porque se você vender a idéia de esquerda como aquela da mulher de cabelo no suvaco, mau hálito e sem o mínimo de sex appeal, então meu caro, você vai perder a guerra. Por que a direita está aí, mais forte que nunca, com seu exército de 200 mil filhinhos de papai vitaminados, educados, cabelos cortados, a maioria muito orgulhosa de seu rosto branco e seus belos narizes arianos. Comprar briga com eles, é covardia, eles logo deixariam duzentas ou trezentas mensagens de ódio e vingança, em meio à mirabolantes piadas, além das eternas e descontextualizadas estatísticas que tanto gostam de nos jogar na cara. Cem milhões de mortos! Fora as milhares de criancinhas devoradas vivas por comunistas famintos...
A esquerda, quem defenderá? A meia dúzia de professores aposentados, suavemente esclerosados pelo cigarro, pelo uísque e pela irritante obrigação de trabalhar duro (sem muito tempo para estudos) para pagar a escola particular das filhas?
Respondo: quem defenderá a esquerda não serão os “pensadores” e sim, como ficou claro nos momentos críticos da crise política, os movimentos sociais. Os sindicalistas. Quem esqueceu dos dirigentes dos sindicatos do ABC, do próprio vice-presidente da CUT, que ameaçaram ir às ruas caso as elites ousassem depor o presidente? Quê, chamam a CUT de governista? De petista? Pois fiquem sabendo que a CUT é dez vezes maior que o PT. Não brinquem com a CUT...
Bem, esse artigo era para comemorar a vitória de Evo Morales e destacar a importância do crescente apoio politico de Chávez ao presidente Lula. As lideranças estão fazendo sua parte. Falta os intelectuais fazerem a sua, sobre o que tenho sérias dúvidas.
Por outro lado, enquanto tivermos o Wanderley Guilherme dos Santos, eleito um dos cinco maiores intelectuais da América Latina, defendendo Lula, a democracia e a justiça social, ainda haverá vida inteligente nos meios acadêmicos nacionais. Que venham os ianques, vestidos com plumas tucanóides. Brigaremos sem raiva (ou quase). A democracia é nossa aliada. O povo não pode ser enganado pra sempre. O povo sabe quando está sendo bem tratado e quando não está. Sabe quando a inflação está baixa, a oferta de emprego está aumentando e o salário mínimo crescendo. O povo pode ser ignorante, mas sabe muito bem quando melhora ou piora sua situação.
19 de dezembro de 2005
Bem é isso...
1 comentário
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Viva a triste Bolívia!
Que sua dor se transforme em força.
Que seu luto se converta em herança.
Que sua solidão
e pobreza
sejam a experiência necessária
de uma grande nação.
16 de dezembro de 2005
Espero a chuva
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O Saramago escreveu um texto aguinha com açúcar sobre o Chê Guevara (ver lá embaixo). Palavras bonitas e sebosas que não trazem nada de novo. Muito superficial, blasé e descolado da realidade dura do mundo e suas dolorosas contradições.
Tenho um livro aqui em casa, editado por uma editora cubana, com vários artigos sobre como o mito Chê Guevara foi criado e diluído por uma série de preconceitos. O filme do Walter Sallers consolidou essa visão, ao mostrar aquele Chê bonzinho, chorão e babaquinha. Apagou-se o Chê humano, agressivo, alto pensador, dialético, o Chê presidente do Banco Central, o Chê que também tinha seu lado explosivo e mau. O Chê que não era um santo. O Chê que pensava o mundo. O Chê que errou grosseiramente ao fugir do confronto de idéias para ir lutar como soldado raso numa guerra perdida.
Quero falar, porém, de outro assunto. Quero falar dos artigos com palavras bonitas, ou com expressões dramáticas, mas que não dizem nada sobre nosso programa de ação. É muito fácil ter bonitas palavras, o difícil é confrontar-se com os dilemas. Difícil é ter coragem de agir sabendo das altas probabilidades de erro. Lutar e fracassar. Reerguer-se. O difícil é ter compreensão sobre os riscos de se confiar nas pessoas e suas fraquezas, decepcionar-se, frustrar-se, ser traído. Mesmo assim nunca deixar de amar o ser humano, com todas a suas faltas. Aqueles que não amam os seres humanos mesmo com suas fraquezas, na verdade não amam o ser humano, porque todos têm fraquezas. Em geral, só vemos as fraqueza alheias. Raros são capazes de identificar os próprios defeitos. Não os pequenos defeitos, mas os terríveis defeitos que todos nós carregamos dentro de si.
Perder a esperança? Somente a classe média pode se dar ao luxo de perder a esperança, porque pensa sempre no risco de descer a ladeira social, ou antes, a ladeira emocional, que as crises se lhe antepõem. As classes populares não podem perder a esperança, porque só podem pensar em vencer ou vencer. O estudo, o trabalho, os sofrimentos terríveis do dia a dia não poderiam ser suportados não houvesse a perspectiva de melhorar. Esse é um fato registrado e comprovado antropologicamente. É o que observamos em inúmeros documentários sobre os milhões de trabalhadores, a grande maioria do país, a maioria esmagadora, que atravessa a existência com uma força e uma dignidade que nunca será compreendida pelos nervosos e pequenos leitores do Jornal Globo, Estadão e Folha, pelos descerebrados e acríticos ouvintes de um Arnaldo Jabor, João Ubaldo, Jô Soares e todos os primeiros-tenentes de um exército intelectual pago para definir que tipo de opinião pública devemos ter.
É muito fácil amar um ser puro, bom e perfeito. Difícil, humanista, cristão e democrático, é amar o ser humano como ele é: pecador. Spinoza já denunciava, no início de sua Política, todos aqueles "pensadores" que louvavam um homem ideal inexistente, mostrando desprezo pelos homens como o são na verdade, com seus defeitos e pecados. Mais uma vez, a classe alta engana a classe média para dominar o povão. Lei histórica que se repete há séculos.
Na idade média, torturavam-se os criminosos, enquanto reis e corte chafurdavam num mundo à parte. Hoje há quem defenda a execução de traficantes de dezesseis anos, e a polícia mata inocentes. A polícia mata inocentes todos os dias. Ano passado, tivemos a maior chacina da história do Rio, executada por policiais! As pessoas agora se espantam de que um punhado de traficantes, inclusive divergindo do tipo de ação tradicional que eles fazem, queimam um ônibus com pessoas dentro?
Vem o Reinaldo Azevedo e fala, com o tom zombeteiro que todos os filisteus sempre apreciaram usar, sobre Comitê Internacional das Vítimas? Ah, muito fácil escarnecer das vítimas... como se fosse tudo uma maneira de pensar... como se fosse pose. Eu não poso de vítima. Considero-me um privilegiado, um vencedor, um guerreiro. Agora, que me diz dos miseráveis, das crianças de rua, dos doentes no hospital? Eles não são vítimas? Eles escolheram esse caminho?
Em artigo, Azevedo louva a entrevista de Seu Jorge ao programa Roda Viva, pelo fato do cantor ter atacado o Comitê Internacional das Vítimas. Não assisti à entrevista, mas parece que Seu Jorge, que eu conheci pessoalmente na UERJ, atacou os árabes que se revoltaram e, meio que sem querer, algumas posições da esquerda.
Entretanto, achei muitíssimo curioso um (pseudo) intelectual, com tanto apreço pela sua cultura como demonstra ter o editor da revista Primeira Leitura e ocasional articulista do Globo, apreço inclusive que soa enjoativo, com suas citações pedantes e desnecessárias, enfim, como ele pode agora usar uma entrevista informal de um cantor popular, ignorante e sem formação política nenhuma, para referendar posições políticas de enorme complexidade. E não venham falar do Lula, lembrando que ele é ignorante. Ele o é, mas tem formação política e foi um dos maiores sindicalistas do país.
Não confundamos as coisas. Seu Jorge é um negro de beleza incrível, alto, dono de uma voz de ouro. Foi amparado pelo Estado, por uma extraordinária oficina de teatro e música da UERJ, e pela bondade e carinho de grandes músicos como Paulo Moura e seu filho, Gabriel Moura, o que nos mostra a importância das instituições e do humanismo.
Não, o Brasil não é pior que nenhum outro país, moralmente. Somos um povo jovem, uma democracia jovem, fomos violentados por uma ditadura terrível. Temos um futuro pela frente. Não digo nem que seja um grande futuro, ou um futuro brilhante. Mas é nosso futuro, porra!
Quem são os velhos tristes que agora querem usurpar nosso futuro, usando como argumento o seu moralismo de merda? O quê? O que vocês querem? Querem vender a Petrobrás para expiar os pecados do Caixa 2? Não nos façam rir! Não bastou vender a Vale do Rio Doce? Esse não foi o maior Caixa 2 da história do mundo? Não bastou afundar o país numa dívida pública nunca dantes vista na história dos países em desenvolvimento? Esse também não foi outro Caixa 2 do FHC, que estabilizou o país com dinheiro do FMI?
Muito discutível essa história da continuidade da política econômica do Pallocci. Continuidade seria se o governo não apostasse na agricultura familiar, se não apostasse no Bolsa Família, se não tivesse uma política cambial livre. FHC não investiu na agricultura familiar, o Bolsa Escola era mínimo, chegava a pouca gente e o valor irrisório, a política cambial foi um fiasco que causou rombos de dezenas de bilhões de dólares ao Tesouro Nacional. Já esqueceram dos fiascos tucanos na macro-economia? Já esqueceram que FHC manteve o dólar fixo até pouco depois da eleição? Isso não foi o maior de todos os crimes? Brincar com a moeda de um país para se eleger? Ou pior, se reeleger?
A recente pesquisa do IBGE mostrou a grande queda que tivemos na pobreza do Brasil, nos últimos anos, até 2004. A renda do trabalhador está aumentando significativamente. O salário mínimo ano que vem deverá ser ampliado para 350 reais, o que, no câmbio de hoje, equivale a 155 dólares, um recorde dos últimos 50 anos! Lembram-se que durante muitos anos, políticos de esquerda lutavam para que o salário minimo atingisse a marca de 100 dólares?
Este ano, estaremos pagando adiantado a última parcela de nossa dívida com o FMI. Não renovamos o acordo. Poderemos agora olhar o mundo de frente e dizer: agora "é nós" que manda. Nossa política econômica, externa, será totalmente autônoma. Podemos errar, mas será erro nosso.
Estamos crescendo 2,5 ou 3% esse ano. É pouco? É menos que outros países latinos? É. Mas vejam cada caso. Como podemos nos comparar com países que emergiram de crises terríveis nos últimos anos, como Argentina e Venezuela? Como podem nos comparar com países com população minúscula? Além do mais, o que importa não é crescer. É crescer com inflação baixa. Crescer com distribuição de renda. Isso estamos fazendo.
Temos muitos problemas ainda a resolver. A época da esperança, porém, já passou. O país consolidou sua democracia e cresceu. É hora de trabalhar, de cada um dar sua contribuição, por mínima que seja, ao país. E a melhor contribuição é aperfeiçoando-se no que faz, é especializando-se em alguma coisa. Mao dizia: sejamos revolucionários, e técnicos! Ou então artistas!
Agora, se continuarmos eternamente achando tudo uma merda, achando o país todo uma merda, aí é que não vamos chegar a lugar algum.
O mundo inteiro está em lua-de-mel com o Brasil: na França, na Alemanha, nos EUA, na África, na América Latina, estão todos maravilhados com os avanços sociais e com a mestria macro-econômica do governo Lula. Só aqui é que domina esse preconceito, essa hostilidade, esse ambiente golpista, essa atmosfera carregada de veneno e mentira.
O procurador-geral da República declarou hoje: todos os partidos têm irregularidades de Caixa 2 nas últimas campanhas. O PT tem também. Por que o mundo acaba? Até parece que vocês, que nós, éramos petistas fanáticos!
Nunca fomos petistas, essa é a verdade! Eu nunca fui, pelo menos. Nem nunca acreditamos em monopólio da ética pelo PT! Se o PT tinha esse discurso, é mais que normal, é propaganda, porra. Queria que o PT dissesse o quê ao eleitor? "Olha, nós somos safados também, mas somos mais legais, votem na gente!" É claro que o PT tinha discurso da ética. Mas, diferentemente dos arrazoados maquiavélicos da mídia, isso não quer dizer nada. O PT era um partido com seus quadros bons e seus quadros ruins, como todos. O que importa não é isso, e sim o significado político de determinado partido em determinado momento da história.
Em 2002 e agora, o PT representava, e ainda representa, forças progressistas e populares e sua permanência no poder, senão é brilhante, genial ou isenta de problemas e erros, ainda é melhor do que o descalabro que foi a administração tucana, que não gerou emprego, vendeu importantes estatais de forma açodada e suspeita e aumentou nossa dívida pública em dez vezes.
Estabilidade com dinheiro emprestado é fácil. Queria ver os tucanos conseguirem estabilidade com câmbio livre, inflação baixa e tudo isso sem pegar dinheiro emprestado. Ou antes, reduzindo o endividamento!
Ah, tenham santa paciência! Votamos no Lula porque queríamos ele como presidente, e só, e não porque tínhamos a esperança nefelibata de que ele, como demiurgo divino, transformasse o país num coletivo de anjos.
O país precisa de instituições fortes. Que saibam fazer justiça sem se deixar influenciar por uma suposta opinião pública atiçada pela mídia. Só isso vai reduzir a corrupção.
São muitos assuntos que tem se acumulado e não tenho tido paciência para colocar tudo no papel, para racionalizar tudo. Mas vai chegar o dia. Espero as chuvas da história limparem a lama das ruas.
PS: Abaixo o texto do Saramago sobre o Chê.
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Breve meditação sobre um retrato de Che Guevara
José Saramago
Não importa que retrato. Qualquer um: sério, sorrindo, de arma em punho, com Fidel ou sem Fidel, discursando nas Nações Unidas, ou morto, com o dorso nu e olhos entreabertos, como se do outro lado da vida ainda quisesse acompanhar o rastro do mundo que teve de deixar, como se não se resignasse a ignorar para sempre os caminhos das infinitas crianças que estavam por nascer.
Sobre cada uma dessas imagens poder-se-ia discorrer profusamente, de um modo lírico ou de um modo dramático, com a objetividade prosaica do historiador ou simplesmente como quem se dispôs a falar do amigo que percebe ter perdido porque o não chegou a conhecer.
Ao Portugal infeliz e amordaçado de Salazar e de Caetano chegou um dia o retrato clandestino de Ernesto Che Guevara, o mais célebre de todos, aquele feito com manchas fortes de negro e de vermelho, que se converteu em imagem universal dos sonhos revolucionários do mundo, promessa de vitórias a tal ponto fértéis que nunca poderiam se degenerar em rotinas nem em cepticismos, antes dariam lugar a outros muitos triunfos, o do bem sobre o mal, o do justo sobre o injusto, o da liberdade sobre a necessidade. Emoldurado ou fixo na parede por meios precários, esse retrato assistiu a debates políticos apaixonados na terra portuguesa, exaltou argumentos, atenuou desânimos, acalentou esperanças. Foi visto como um Cristo que tivesse descido da cruz para descrucificar a humanidade, como um ser dotado de poderes absolutos que fosse capaz de extrair de uma pedra a água com que se mataria toda
a sede, e de transformar essa mesma água no vinho com que se beberia ao esplendor da vida. E tudo isto era certo porque o retrato de Che Guevara foi, aos olhos de milhões de pessoas, o retrato da dignidade suprema do ser humano.
Mas foi também usado como adorno incongruente em muitas casas da pequena e da média burguesia intelectual portuguesa, para cujos integrantes as ideologias políticas de afirmação socialista não passavam de um mero capricho conjuntural, forma supostamente arriscada de ocupar ócios mentais, frivolidade mundana que não pôde resistir ao primeiro choque da realidade, quando os fatos vieram exigir o cumprimento das palavras. Então, o retrato do Che Guevara, testemunha, primeiro, de tantos inflamados anúncios de compromisso e de ação futura, juiz, agora, do medo encoberto, da renúncia covarde ou da traição aberta, foi retirado das paredes, escondido, na melhor hipótese, no fundo de um armário, ou radicalmente destruído, como se fosse motivo de vergonha.
Uma das lições políticas mais instrutivas, nos tempos de hoje, seria saber o que pensam de si próprios esses milhares e milhares de homens e mulheres que em todo o mundo tiveram algum dia o retrato de Che Guevara na cabeceira da cama, ou na frente da mesa de trabalho, ou na sala onde recebiam os amigos, e que agora sorriem de terem acreditado ou fingido acreditar.
Alguns diriam que a vida mudou, que Che Guevara, ao perder sua guerra, nos fez perder a nossa, e portanto era inútil ficar a chorar, como uma criança, o leite derramado. Outros confessariam que se deixaram envolver por uma moda da época, a mesma que fez crescer barbas e alargar as melenas, como se a revolução fosse uma questão de cabeleireiro. Os mais honestos reconheceriam que lhes dói o coração, que sentem nele o movimento perpétuo de um remorso, como se a sua verdadeira vida tivesse suspendido o curso e agora lhes perguntasse, obsessivamente, aonde pensam ir sem ideais nem esperança, sem uma idéia de futuro que dê algum sentido ao presente.
Che Guevara, se tal se pode dizer, já existia antes de ter nascido.
Che Guevara, se tal se pode afirmar, continuou a existir depois de ter morrido.
Porque Che Guevara é só o outro nome do que há de mais justo e digno no espírito humano. O que tantas vezes vive adormecido dentro de nós. O que devemos acordar para conhecer e conhecer-nos, para acrescentar o passo humilde de cada um ao caminho de todos.
Tenho um livro aqui em casa, editado por uma editora cubana, com vários artigos sobre como o mito Chê Guevara foi criado e diluído por uma série de preconceitos. O filme do Walter Sallers consolidou essa visão, ao mostrar aquele Chê bonzinho, chorão e babaquinha. Apagou-se o Chê humano, agressivo, alto pensador, dialético, o Chê presidente do Banco Central, o Chê que também tinha seu lado explosivo e mau. O Chê que não era um santo. O Chê que pensava o mundo. O Chê que errou grosseiramente ao fugir do confronto de idéias para ir lutar como soldado raso numa guerra perdida.
Quero falar, porém, de outro assunto. Quero falar dos artigos com palavras bonitas, ou com expressões dramáticas, mas que não dizem nada sobre nosso programa de ação. É muito fácil ter bonitas palavras, o difícil é confrontar-se com os dilemas. Difícil é ter coragem de agir sabendo das altas probabilidades de erro. Lutar e fracassar. Reerguer-se. O difícil é ter compreensão sobre os riscos de se confiar nas pessoas e suas fraquezas, decepcionar-se, frustrar-se, ser traído. Mesmo assim nunca deixar de amar o ser humano, com todas a suas faltas. Aqueles que não amam os seres humanos mesmo com suas fraquezas, na verdade não amam o ser humano, porque todos têm fraquezas. Em geral, só vemos as fraqueza alheias. Raros são capazes de identificar os próprios defeitos. Não os pequenos defeitos, mas os terríveis defeitos que todos nós carregamos dentro de si.
Perder a esperança? Somente a classe média pode se dar ao luxo de perder a esperança, porque pensa sempre no risco de descer a ladeira social, ou antes, a ladeira emocional, que as crises se lhe antepõem. As classes populares não podem perder a esperança, porque só podem pensar em vencer ou vencer. O estudo, o trabalho, os sofrimentos terríveis do dia a dia não poderiam ser suportados não houvesse a perspectiva de melhorar. Esse é um fato registrado e comprovado antropologicamente. É o que observamos em inúmeros documentários sobre os milhões de trabalhadores, a grande maioria do país, a maioria esmagadora, que atravessa a existência com uma força e uma dignidade que nunca será compreendida pelos nervosos e pequenos leitores do Jornal Globo, Estadão e Folha, pelos descerebrados e acríticos ouvintes de um Arnaldo Jabor, João Ubaldo, Jô Soares e todos os primeiros-tenentes de um exército intelectual pago para definir que tipo de opinião pública devemos ter.
É muito fácil amar um ser puro, bom e perfeito. Difícil, humanista, cristão e democrático, é amar o ser humano como ele é: pecador. Spinoza já denunciava, no início de sua Política, todos aqueles "pensadores" que louvavam um homem ideal inexistente, mostrando desprezo pelos homens como o são na verdade, com seus defeitos e pecados. Mais uma vez, a classe alta engana a classe média para dominar o povão. Lei histórica que se repete há séculos.
Na idade média, torturavam-se os criminosos, enquanto reis e corte chafurdavam num mundo à parte. Hoje há quem defenda a execução de traficantes de dezesseis anos, e a polícia mata inocentes. A polícia mata inocentes todos os dias. Ano passado, tivemos a maior chacina da história do Rio, executada por policiais! As pessoas agora se espantam de que um punhado de traficantes, inclusive divergindo do tipo de ação tradicional que eles fazem, queimam um ônibus com pessoas dentro?
Vem o Reinaldo Azevedo e fala, com o tom zombeteiro que todos os filisteus sempre apreciaram usar, sobre Comitê Internacional das Vítimas? Ah, muito fácil escarnecer das vítimas... como se fosse tudo uma maneira de pensar... como se fosse pose. Eu não poso de vítima. Considero-me um privilegiado, um vencedor, um guerreiro. Agora, que me diz dos miseráveis, das crianças de rua, dos doentes no hospital? Eles não são vítimas? Eles escolheram esse caminho?
Em artigo, Azevedo louva a entrevista de Seu Jorge ao programa Roda Viva, pelo fato do cantor ter atacado o Comitê Internacional das Vítimas. Não assisti à entrevista, mas parece que Seu Jorge, que eu conheci pessoalmente na UERJ, atacou os árabes que se revoltaram e, meio que sem querer, algumas posições da esquerda.
Entretanto, achei muitíssimo curioso um (pseudo) intelectual, com tanto apreço pela sua cultura como demonstra ter o editor da revista Primeira Leitura e ocasional articulista do Globo, apreço inclusive que soa enjoativo, com suas citações pedantes e desnecessárias, enfim, como ele pode agora usar uma entrevista informal de um cantor popular, ignorante e sem formação política nenhuma, para referendar posições políticas de enorme complexidade. E não venham falar do Lula, lembrando que ele é ignorante. Ele o é, mas tem formação política e foi um dos maiores sindicalistas do país.
Não confundamos as coisas. Seu Jorge é um negro de beleza incrível, alto, dono de uma voz de ouro. Foi amparado pelo Estado, por uma extraordinária oficina de teatro e música da UERJ, e pela bondade e carinho de grandes músicos como Paulo Moura e seu filho, Gabriel Moura, o que nos mostra a importância das instituições e do humanismo.
Não, o Brasil não é pior que nenhum outro país, moralmente. Somos um povo jovem, uma democracia jovem, fomos violentados por uma ditadura terrível. Temos um futuro pela frente. Não digo nem que seja um grande futuro, ou um futuro brilhante. Mas é nosso futuro, porra!
Quem são os velhos tristes que agora querem usurpar nosso futuro, usando como argumento o seu moralismo de merda? O quê? O que vocês querem? Querem vender a Petrobrás para expiar os pecados do Caixa 2? Não nos façam rir! Não bastou vender a Vale do Rio Doce? Esse não foi o maior Caixa 2 da história do mundo? Não bastou afundar o país numa dívida pública nunca dantes vista na história dos países em desenvolvimento? Esse também não foi outro Caixa 2 do FHC, que estabilizou o país com dinheiro do FMI?
Muito discutível essa história da continuidade da política econômica do Pallocci. Continuidade seria se o governo não apostasse na agricultura familiar, se não apostasse no Bolsa Família, se não tivesse uma política cambial livre. FHC não investiu na agricultura familiar, o Bolsa Escola era mínimo, chegava a pouca gente e o valor irrisório, a política cambial foi um fiasco que causou rombos de dezenas de bilhões de dólares ao Tesouro Nacional. Já esqueceram dos fiascos tucanos na macro-economia? Já esqueceram que FHC manteve o dólar fixo até pouco depois da eleição? Isso não foi o maior de todos os crimes? Brincar com a moeda de um país para se eleger? Ou pior, se reeleger?
A recente pesquisa do IBGE mostrou a grande queda que tivemos na pobreza do Brasil, nos últimos anos, até 2004. A renda do trabalhador está aumentando significativamente. O salário mínimo ano que vem deverá ser ampliado para 350 reais, o que, no câmbio de hoje, equivale a 155 dólares, um recorde dos últimos 50 anos! Lembram-se que durante muitos anos, políticos de esquerda lutavam para que o salário minimo atingisse a marca de 100 dólares?
Este ano, estaremos pagando adiantado a última parcela de nossa dívida com o FMI. Não renovamos o acordo. Poderemos agora olhar o mundo de frente e dizer: agora "é nós" que manda. Nossa política econômica, externa, será totalmente autônoma. Podemos errar, mas será erro nosso.
Estamos crescendo 2,5 ou 3% esse ano. É pouco? É menos que outros países latinos? É. Mas vejam cada caso. Como podemos nos comparar com países que emergiram de crises terríveis nos últimos anos, como Argentina e Venezuela? Como podem nos comparar com países com população minúscula? Além do mais, o que importa não é crescer. É crescer com inflação baixa. Crescer com distribuição de renda. Isso estamos fazendo.
Temos muitos problemas ainda a resolver. A época da esperança, porém, já passou. O país consolidou sua democracia e cresceu. É hora de trabalhar, de cada um dar sua contribuição, por mínima que seja, ao país. E a melhor contribuição é aperfeiçoando-se no que faz, é especializando-se em alguma coisa. Mao dizia: sejamos revolucionários, e técnicos! Ou então artistas!
Agora, se continuarmos eternamente achando tudo uma merda, achando o país todo uma merda, aí é que não vamos chegar a lugar algum.
O mundo inteiro está em lua-de-mel com o Brasil: na França, na Alemanha, nos EUA, na África, na América Latina, estão todos maravilhados com os avanços sociais e com a mestria macro-econômica do governo Lula. Só aqui é que domina esse preconceito, essa hostilidade, esse ambiente golpista, essa atmosfera carregada de veneno e mentira.
O procurador-geral da República declarou hoje: todos os partidos têm irregularidades de Caixa 2 nas últimas campanhas. O PT tem também. Por que o mundo acaba? Até parece que vocês, que nós, éramos petistas fanáticos!
Nunca fomos petistas, essa é a verdade! Eu nunca fui, pelo menos. Nem nunca acreditamos em monopólio da ética pelo PT! Se o PT tinha esse discurso, é mais que normal, é propaganda, porra. Queria que o PT dissesse o quê ao eleitor? "Olha, nós somos safados também, mas somos mais legais, votem na gente!" É claro que o PT tinha discurso da ética. Mas, diferentemente dos arrazoados maquiavélicos da mídia, isso não quer dizer nada. O PT era um partido com seus quadros bons e seus quadros ruins, como todos. O que importa não é isso, e sim o significado político de determinado partido em determinado momento da história.
Em 2002 e agora, o PT representava, e ainda representa, forças progressistas e populares e sua permanência no poder, senão é brilhante, genial ou isenta de problemas e erros, ainda é melhor do que o descalabro que foi a administração tucana, que não gerou emprego, vendeu importantes estatais de forma açodada e suspeita e aumentou nossa dívida pública em dez vezes.
Estabilidade com dinheiro emprestado é fácil. Queria ver os tucanos conseguirem estabilidade com câmbio livre, inflação baixa e tudo isso sem pegar dinheiro emprestado. Ou antes, reduzindo o endividamento!
Ah, tenham santa paciência! Votamos no Lula porque queríamos ele como presidente, e só, e não porque tínhamos a esperança nefelibata de que ele, como demiurgo divino, transformasse o país num coletivo de anjos.
O país precisa de instituições fortes. Que saibam fazer justiça sem se deixar influenciar por uma suposta opinião pública atiçada pela mídia. Só isso vai reduzir a corrupção.
São muitos assuntos que tem se acumulado e não tenho tido paciência para colocar tudo no papel, para racionalizar tudo. Mas vai chegar o dia. Espero as chuvas da história limparem a lama das ruas.
PS: Abaixo o texto do Saramago sobre o Chê.
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Breve meditação sobre um retrato de Che Guevara
José Saramago
Não importa que retrato. Qualquer um: sério, sorrindo, de arma em punho, com Fidel ou sem Fidel, discursando nas Nações Unidas, ou morto, com o dorso nu e olhos entreabertos, como se do outro lado da vida ainda quisesse acompanhar o rastro do mundo que teve de deixar, como se não se resignasse a ignorar para sempre os caminhos das infinitas crianças que estavam por nascer.
Sobre cada uma dessas imagens poder-se-ia discorrer profusamente, de um modo lírico ou de um modo dramático, com a objetividade prosaica do historiador ou simplesmente como quem se dispôs a falar do amigo que percebe ter perdido porque o não chegou a conhecer.
Ao Portugal infeliz e amordaçado de Salazar e de Caetano chegou um dia o retrato clandestino de Ernesto Che Guevara, o mais célebre de todos, aquele feito com manchas fortes de negro e de vermelho, que se converteu em imagem universal dos sonhos revolucionários do mundo, promessa de vitórias a tal ponto fértéis que nunca poderiam se degenerar em rotinas nem em cepticismos, antes dariam lugar a outros muitos triunfos, o do bem sobre o mal, o do justo sobre o injusto, o da liberdade sobre a necessidade. Emoldurado ou fixo na parede por meios precários, esse retrato assistiu a debates políticos apaixonados na terra portuguesa, exaltou argumentos, atenuou desânimos, acalentou esperanças. Foi visto como um Cristo que tivesse descido da cruz para descrucificar a humanidade, como um ser dotado de poderes absolutos que fosse capaz de extrair de uma pedra a água com que se mataria toda
a sede, e de transformar essa mesma água no vinho com que se beberia ao esplendor da vida. E tudo isto era certo porque o retrato de Che Guevara foi, aos olhos de milhões de pessoas, o retrato da dignidade suprema do ser humano.
Mas foi também usado como adorno incongruente em muitas casas da pequena e da média burguesia intelectual portuguesa, para cujos integrantes as ideologias políticas de afirmação socialista não passavam de um mero capricho conjuntural, forma supostamente arriscada de ocupar ócios mentais, frivolidade mundana que não pôde resistir ao primeiro choque da realidade, quando os fatos vieram exigir o cumprimento das palavras. Então, o retrato do Che Guevara, testemunha, primeiro, de tantos inflamados anúncios de compromisso e de ação futura, juiz, agora, do medo encoberto, da renúncia covarde ou da traição aberta, foi retirado das paredes, escondido, na melhor hipótese, no fundo de um armário, ou radicalmente destruído, como se fosse motivo de vergonha.
Uma das lições políticas mais instrutivas, nos tempos de hoje, seria saber o que pensam de si próprios esses milhares e milhares de homens e mulheres que em todo o mundo tiveram algum dia o retrato de Che Guevara na cabeceira da cama, ou na frente da mesa de trabalho, ou na sala onde recebiam os amigos, e que agora sorriem de terem acreditado ou fingido acreditar.
Alguns diriam que a vida mudou, que Che Guevara, ao perder sua guerra, nos fez perder a nossa, e portanto era inútil ficar a chorar, como uma criança, o leite derramado. Outros confessariam que se deixaram envolver por uma moda da época, a mesma que fez crescer barbas e alargar as melenas, como se a revolução fosse uma questão de cabeleireiro. Os mais honestos reconheceriam que lhes dói o coração, que sentem nele o movimento perpétuo de um remorso, como se a sua verdadeira vida tivesse suspendido o curso e agora lhes perguntasse, obsessivamente, aonde pensam ir sem ideais nem esperança, sem uma idéia de futuro que dê algum sentido ao presente.
Che Guevara, se tal se pode dizer, já existia antes de ter nascido.
Che Guevara, se tal se pode afirmar, continuou a existir depois de ter morrido.
Porque Che Guevara é só o outro nome do que há de mais justo e digno no espírito humano. O que tantas vezes vive adormecido dentro de nós. O que devemos acordar para conhecer e conhecer-nos, para acrescentar o passo humilde de cada um ao caminho de todos.