16 de dezembro de 2005

Espero a chuva

O Saramago escreveu um texto aguinha com açúcar sobre o Chê Guevara (ver lá embaixo). Palavras bonitas e sebosas que não trazem nada de novo. Muito superficial, blasé e descolado da realidade dura do mundo e suas dolorosas contradições.

Tenho um livro aqui em casa, editado por uma editora cubana, com vários artigos sobre como o mito Chê Guevara foi criado e diluído por uma série de preconceitos. O filme do Walter Sallers consolidou essa visão, ao mostrar aquele Chê bonzinho, chorão e babaquinha. Apagou-se o Chê humano, agressivo, alto pensador, dialético, o Chê presidente do Banco Central, o Chê que também tinha seu lado explosivo e mau. O Chê que não era um santo. O Chê que pensava o mundo. O Chê que errou grosseiramente ao fugir do confronto de idéias para ir lutar como soldado raso numa guerra perdida.

Quero falar, porém, de outro assunto. Quero falar dos artigos com palavras bonitas, ou com expressões dramáticas, mas que não dizem nada sobre nosso programa de ação. É muito fácil ter bonitas palavras, o difícil é confrontar-se com os dilemas. Difícil é ter coragem de agir sabendo das altas probabilidades de erro. Lutar e fracassar. Reerguer-se. O difícil é ter compreensão sobre os riscos de se confiar nas pessoas e suas fraquezas, decepcionar-se, frustrar-se, ser traído. Mesmo assim nunca deixar de amar o ser humano, com todas a suas faltas. Aqueles que não amam os seres humanos mesmo com suas fraquezas, na verdade não amam o ser humano, porque todos têm fraquezas. Em geral, só vemos as fraqueza alheias. Raros são capazes de identificar os próprios defeitos. Não os pequenos defeitos, mas os terríveis defeitos que todos nós carregamos dentro de si.

Perder a esperança? Somente a classe média pode se dar ao luxo de perder a esperança, porque pensa sempre no risco de descer a ladeira social, ou antes, a ladeira emocional, que as crises se lhe antepõem. As classes populares não podem perder a esperança, porque só podem pensar em vencer ou vencer. O estudo, o trabalho, os sofrimentos terríveis do dia a dia não poderiam ser suportados não houvesse a perspectiva de melhorar. Esse é um fato registrado e comprovado antropologicamente. É o que observamos em inúmeros documentários sobre os milhões de trabalhadores, a grande maioria do país, a maioria esmagadora, que atravessa a existência com uma força e uma dignidade que nunca será compreendida pelos nervosos e pequenos leitores do Jornal Globo, Estadão e Folha, pelos descerebrados e acríticos ouvintes de um Arnaldo Jabor, João Ubaldo, Jô Soares e todos os primeiros-tenentes de um exército intelectual pago para definir que tipo de opinião pública devemos ter.

É muito fácil amar um ser puro, bom e perfeito. Difícil, humanista, cristão e democrático, é amar o ser humano como ele é: pecador. Spinoza já denunciava, no início de sua Política, todos aqueles "pensadores" que louvavam um homem ideal inexistente, mostrando desprezo pelos homens como o são na verdade, com seus defeitos e pecados. Mais uma vez, a classe alta engana a classe média para dominar o povão. Lei histórica que se repete há séculos.

Na idade média, torturavam-se os criminosos, enquanto reis e corte chafurdavam num mundo à parte. Hoje há quem defenda a execução de traficantes de dezesseis anos, e a polícia mata inocentes. A polícia mata inocentes todos os dias. Ano passado, tivemos a maior chacina da história do Rio, executada por policiais! As pessoas agora se espantam de que um punhado de traficantes, inclusive divergindo do tipo de ação tradicional que eles fazem, queimam um ônibus com pessoas dentro?

Vem o Reinaldo Azevedo e fala, com o tom zombeteiro que todos os filisteus sempre apreciaram usar, sobre Comitê Internacional das Vítimas? Ah, muito fácil escarnecer das vítimas... como se fosse tudo uma maneira de pensar... como se fosse pose. Eu não poso de vítima. Considero-me um privilegiado, um vencedor, um guerreiro. Agora, que me diz dos miseráveis, das crianças de rua, dos doentes no hospital? Eles não são vítimas? Eles escolheram esse caminho?

Em artigo, Azevedo louva a entrevista de Seu Jorge ao programa Roda Viva, pelo fato do cantor ter atacado o Comitê Internacional das Vítimas. Não assisti à entrevista, mas parece que Seu Jorge, que eu conheci pessoalmente na UERJ, atacou os árabes que se revoltaram e, meio que sem querer, algumas posições da esquerda.

Entretanto, achei muitíssimo curioso um (pseudo) intelectual, com tanto apreço pela sua cultura como demonstra ter o editor da revista Primeira Leitura e ocasional articulista do Globo, apreço inclusive que soa enjoativo, com suas citações pedantes e desnecessárias, enfim, como ele pode agora usar uma entrevista informal de um cantor popular, ignorante e sem formação política nenhuma, para referendar posições políticas de enorme complexidade. E não venham falar do Lula, lembrando que ele é ignorante. Ele o é, mas tem formação política e foi um dos maiores sindicalistas do país.

Não confundamos as coisas. Seu Jorge é um negro de beleza incrível, alto, dono de uma voz de ouro. Foi amparado pelo Estado, por uma extraordinária oficina de teatro e música da UERJ, e pela bondade e carinho de grandes músicos como Paulo Moura e seu filho, Gabriel Moura, o que nos mostra a importância das instituições e do humanismo.

Não, o Brasil não é pior que nenhum outro país, moralmente. Somos um povo jovem, uma democracia jovem, fomos violentados por uma ditadura terrível. Temos um futuro pela frente. Não digo nem que seja um grande futuro, ou um futuro brilhante. Mas é nosso futuro, porra!

Quem são os velhos tristes que agora querem usurpar nosso futuro, usando como argumento o seu moralismo de merda? O quê? O que vocês querem? Querem vender a Petrobrás para expiar os pecados do Caixa 2? Não nos façam rir! Não bastou vender a Vale do Rio Doce? Esse não foi o maior Caixa 2 da história do mundo? Não bastou afundar o país numa dívida pública nunca dantes vista na história dos países em desenvolvimento? Esse também não foi outro Caixa 2 do FHC, que estabilizou o país com dinheiro do FMI?

Muito discutível essa história da continuidade da política econômica do Pallocci. Continuidade seria se o governo não apostasse na agricultura familiar, se não apostasse no Bolsa Família, se não tivesse uma política cambial livre. FHC não investiu na agricultura familiar, o Bolsa Escola era mínimo, chegava a pouca gente e o valor irrisório, a política cambial foi um fiasco que causou rombos de dezenas de bilhões de dólares ao Tesouro Nacional. Já esqueceram dos fiascos tucanos na macro-economia? Já esqueceram que FHC manteve o dólar fixo até pouco depois da eleição? Isso não foi o maior de todos os crimes? Brincar com a moeda de um país para se eleger? Ou pior, se reeleger?

A recente pesquisa do IBGE mostrou a grande queda que tivemos na pobreza do Brasil, nos últimos anos, até 2004. A renda do trabalhador está aumentando significativamente. O salário mínimo ano que vem deverá ser ampliado para 350 reais, o que, no câmbio de hoje, equivale a 155 dólares, um recorde dos últimos 50 anos! Lembram-se que durante muitos anos, políticos de esquerda lutavam para que o salário minimo atingisse a marca de 100 dólares?

Este ano, estaremos pagando adiantado a última parcela de nossa dívida com o FMI. Não renovamos o acordo. Poderemos agora olhar o mundo de frente e dizer: agora "é nós" que manda. Nossa política econômica, externa, será totalmente autônoma. Podemos errar, mas será erro nosso.

Estamos crescendo 2,5 ou 3% esse ano. É pouco? É menos que outros países latinos? É. Mas vejam cada caso. Como podemos nos comparar com países que emergiram de crises terríveis nos últimos anos, como Argentina e Venezuela? Como podem nos comparar com países com população minúscula? Além do mais, o que importa não é crescer. É crescer com inflação baixa. Crescer com distribuição de renda. Isso estamos fazendo.

Temos muitos problemas ainda a resolver. A época da esperança, porém, já passou. O país consolidou sua democracia e cresceu. É hora de trabalhar, de cada um dar sua contribuição, por mínima que seja, ao país. E a melhor contribuição é aperfeiçoando-se no que faz, é especializando-se em alguma coisa. Mao dizia: sejamos revolucionários, e técnicos! Ou então artistas!

Agora, se continuarmos eternamente achando tudo uma merda, achando o país todo uma merda, aí é que não vamos chegar a lugar algum.

O mundo inteiro está em lua-de-mel com o Brasil: na França, na Alemanha, nos EUA, na África, na América Latina, estão todos maravilhados com os avanços sociais e com a mestria macro-econômica do governo Lula. Só aqui é que domina esse preconceito, essa hostilidade, esse ambiente golpista, essa atmosfera carregada de veneno e mentira.

O procurador-geral da República declarou hoje: todos os partidos têm irregularidades de Caixa 2 nas últimas campanhas. O PT tem também. Por que o mundo acaba? Até parece que vocês, que nós, éramos petistas fanáticos!

Nunca fomos petistas, essa é a verdade! Eu nunca fui, pelo menos. Nem nunca acreditamos em monopólio da ética pelo PT! Se o PT tinha esse discurso, é mais que normal, é propaganda, porra. Queria que o PT dissesse o quê ao eleitor? "Olha, nós somos safados também, mas somos mais legais, votem na gente!" É claro que o PT tinha discurso da ética. Mas, diferentemente dos arrazoados maquiavélicos da mídia, isso não quer dizer nada. O PT era um partido com seus quadros bons e seus quadros ruins, como todos. O que importa não é isso, e sim o significado político de determinado partido em determinado momento da história.

Em 2002 e agora, o PT representava, e ainda representa, forças progressistas e populares e sua permanência no poder, senão é brilhante, genial ou isenta de problemas e erros, ainda é melhor do que o descalabro que foi a administração tucana, que não gerou emprego, vendeu importantes estatais de forma açodada e suspeita e aumentou nossa dívida pública em dez vezes.

Estabilidade com dinheiro emprestado é fácil. Queria ver os tucanos conseguirem estabilidade com câmbio livre, inflação baixa e tudo isso sem pegar dinheiro emprestado. Ou antes, reduzindo o endividamento!

Ah, tenham santa paciência! Votamos no Lula porque queríamos ele como presidente, e só, e não porque tínhamos a esperança nefelibata de que ele, como demiurgo divino, transformasse o país num coletivo de anjos.

O país precisa de instituições fortes. Que saibam fazer justiça sem se deixar influenciar por uma suposta opinião pública atiçada pela mídia. Só isso vai reduzir a corrupção.

São muitos assuntos que tem se acumulado e não tenho tido paciência para colocar tudo no papel, para racionalizar tudo. Mas vai chegar o dia. Espero as chuvas da história limparem a lama das ruas.

PS: Abaixo o texto do Saramago sobre o Chê.



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Breve meditação sobre um retrato de Che Guevara

José Saramago

Não importa que retrato. Qualquer um: sério, sorrindo, de arma em punho, com Fidel ou sem Fidel, discursando nas Nações Unidas, ou morto, com o dorso nu e olhos entreabertos, como se do outro lado da vida ainda quisesse acompanhar o rastro do mundo que teve de deixar, como se não se resignasse a ignorar para sempre os caminhos das infinitas crianças que estavam por nascer.

Sobre cada uma dessas imagens poder-se-ia discorrer profusamente, de um modo lírico ou de um modo dramático, com a objetividade prosaica do historiador ou simplesmente como quem se dispôs a falar do amigo que percebe ter perdido porque o não chegou a conhecer.

Ao Portugal infeliz e amordaçado de Salazar e de Caetano chegou um dia o retrato clandestino de Ernesto Che Guevara, o mais célebre de todos, aquele feito com manchas fortes de negro e de vermelho, que se converteu em imagem universal dos sonhos revolucionários do mundo, promessa de vitórias a tal ponto fértéis que nunca poderiam se degenerar em rotinas nem em cepticismos, antes dariam lugar a outros muitos triunfos, o do bem sobre o mal, o do justo sobre o injusto, o da liberdade sobre a necessidade. Emoldurado ou fixo na parede por meios precários, esse retrato assistiu a debates políticos apaixonados na terra portuguesa, exaltou argumentos, atenuou desânimos, acalentou esperanças. Foi visto como um Cristo que tivesse descido da cruz para descrucificar a humanidade, como um ser dotado de poderes absolutos que fosse capaz de extrair de uma pedra a água com que se mataria toda
a sede, e de transformar essa mesma água no vinho com que se beberia ao esplendor da vida. E tudo isto era certo porque o retrato de Che Guevara foi, aos olhos de milhões de pessoas, o retrato da dignidade suprema do ser humano.

Mas foi também usado como adorno incongruente em muitas casas da pequena e da média burguesia intelectual portuguesa, para cujos integrantes as ideologias políticas de afirmação socialista não passavam de um mero capricho conjuntural, forma supostamente arriscada de ocupar ócios mentais, frivolidade mundana que não pôde resistir ao primeiro choque da realidade, quando os fatos vieram exigir o cumprimento das palavras. Então, o retrato do Che Guevara, testemunha, primeiro, de tantos inflamados anúncios de compromisso e de ação futura, juiz, agora, do medo encoberto, da renúncia covarde ou da traição aberta, foi retirado das paredes, escondido, na melhor hipótese, no fundo de um armário, ou radicalmente destruído, como se fosse motivo de vergonha.

Uma das lições políticas mais instrutivas, nos tempos de hoje, seria saber o que pensam de si próprios esses milhares e milhares de homens e mulheres que em todo o mundo tiveram algum dia o retrato de Che Guevara na cabeceira da cama, ou na frente da mesa de trabalho, ou na sala onde recebiam os amigos, e que agora sorriem de terem acreditado ou fingido acreditar.

Alguns diriam que a vida mudou, que Che Guevara, ao perder sua guerra, nos fez perder a nossa, e portanto era inútil ficar a chorar, como uma criança, o leite derramado. Outros confessariam que se deixaram envolver por uma moda da época, a mesma que fez crescer barbas e alargar as melenas, como se a revolução fosse uma questão de cabeleireiro. Os mais honestos reconheceriam que lhes dói o coração, que sentem nele o movimento perpétuo de um remorso, como se a sua verdadeira vida tivesse suspendido o curso e agora lhes perguntasse, obsessivamente, aonde pensam ir sem ideais nem esperança, sem uma idéia de futuro que dê algum sentido ao presente.

Che Guevara, se tal se pode dizer, já existia antes de ter nascido.

Che Guevara, se tal se pode afirmar, continuou a existir depois de ter morrido.

Porque Che Guevara é só o outro nome do que há de mais justo e digno no espírito humano. O que tantas vezes vive adormecido dentro de nós. O que devemos acordar para conhecer e conhecer-nos, para acrescentar o passo humilde de cada um ao caminho de todos.

4 comentarios

Anônimo disse...

Ainda bem que você corrigiu o endereço lá no Manifeste-se. Já não agüentava mais de tanto tentar chegar aqui. Um abraço

Anônimo disse...

apesar de não suportar intelectuais eu gosto de vc...acho que é porque vc fala palavrão!

valeu!

Miguel do Rosário disse...

fernando, gostei muito da sua cronica na Insignia. A promessas, me divertiu muito:
http://www.lainsignia.org/2005/diciembre/cul_016.htm

Miguel do Rosário disse...

valeu claudia

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