Meu pai, típico mineiro da roça, caladão, esquivo, desconfiado, possuía um carisma extraordinário. As pessoas não apenas simpatizavam com ele: amavam-no perdidamente. Em casa, porém, em virtude de sua timidez intransponível, conversar com ele era, às vezes, angustiante, porque respondia por monossílabos e ficava sempre em pé, no umbral de alguma porta, para poder escapar mais rápido. Notava-se que sofria com isso, e qualquer um que o conhecesse melhor logo o perdoava, diante de um quadro tão grave de introversão, por beber tanto.
Apesar de todos os problemas de timidez, era uma pessoa incrivelmente forte. Nunca ficou doente, à exceção da operação de safena aos 55, e do câncer final, que o matou aos 61 anos. Enervava-se constantemente, isso sim, e às vezes por bobagens, e alegrava-se com facilidade, mas jamais testemunhei, em vinte e poucos anos de convivência, nenhuma demonstração ou confissão de tristeza. E trabalhava duro, incansavelmente. Começou a trabalhar com uns quatro ou cinco anos de idade. Meu avô amarrou-o num cavalo para que não caísse, e ele acompanhou os piões da fazenda a tocar o gado. Na volta, teve que se sentar numa bacia com água morna e sal para aliviar as assaduras terríveis naquela parte do corpo que atrita com a sela.
Dormia como rocha. Deitava-se em qualquer lugar, cama, gramado, chão, e apagava por horas. Diversas vezes, no sítio, flagrei-o dormindo no meio do mato, como um bicho, indiferente aos insetos - que pareciam respeitá-lo -, à gritaria das crianças, a tudo. Adormecia assim que fechava os olhos.
Era o indivíduo mais resolutamente ateu que jamais conheci. Recusou-se terminantemente a batizar os filhos, mesmo sabendo da enorme apreensão e aborrecimento que isso causava à minha avó. Quando eu tinha uns nove ou dez anos, toda a minha turma da terceira série primária, no colégio católico onde eu estudava, fez primeira comunhão. Eu queria muito fazer. Andava com o Novo Testamento embaixo do braço para lá e para cá e implorei a ele que me deixasse acompanhar meus coleguinhas. "Não, você é muito pequeno. Quando crescer e tiver mais juízo, pode se batizar, fazer primeira comunhão, o que quiser, mas agora não", me disse. Não muitos anos depois, eu ostentaria, com orgulho, o título de não-batizado, o qual carreguei até uns cinco anos atrás, quando decidi tomar o banhinho sagrado, para satisfazer minha mulher, que quis casar-se na igreja. E também a mim mesmo, já que, no fundo, meu ateísmo nunca foi tão autêntico quanto do meu pai. Ao contrário, sofro de uma tendência à carolice católica contra a qual sempre lutei, primeiro por ideologia, depois por uma questão de elegância - um conflito que nos últimos tempos resolvi através de uma maneira esquizofrênica: sou um ateu que acredita em Cristo (não nas lendas mágicas, mas na força e importância de seu mito) e em Deus (como centro do universo e inteligência superior).
O ateísmo de meu pai patenteava-se, sobretudo, pela mais absoluta indiferença a qualquer tema religioso ou teológico. Só não é exato afirmar que odiava o catolicismo, à maneira do Eça de Queiroz, porque ele simplesmente deixara de pensar no assunto. Mas alguma raiva tinha. Quando criança e adolescente, deixava a unha crescer para cravá-la na própria mão até sangrar, como auto-punição pelos pequenos pecados que cometia.
Era uma pessoa extremamente generosa. Primogênito, ajudou todos os irmãos, moral e financeiramente, a completarem os estudos. Ajudou muitos amigos. E ajudava pragmaticamente, conseguindo emprego e emprestando dinheiro. Em verdade, meu pai era quase um santo, se é que é possível aliar santidade e Red Label.
22 de julho de 2009
Barbosinha, o santo e o Red Label
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Eu gostei deste artigo sim. E muito.
só não sabia que tinha caixa de comentários no Óleo do Diabo. O Feed eu já tenho assinado há tempos...
Salve seu Rosario.
Permita-me deixar aqui uma lembrança de meu pai, o velho Francisco, um sábio chinês baiano. Foi por ele que aprendi quando um homem torna-se um homem. E isso se deu no dia em que compreendi que ele era um ser humano tambem sujeito a falhas, mas um pai com um coração de mãe. A benção meu pai.
salve, do rosário,
quase cometi um sacrilégio. li primeiro o post da une e me esqueci desse aqui.
caramba, que texto, meu camarada. é óbvio que seus leitores revolveram suas lembranças paternas.
porreta!
abçs
Miguel gosto muitíssimo dos teus textos, não apenas por serem bastante substanciais, isto é, fundamentados, mas também por serem intensos e fortes. Além é claro, de seres diversificados.
Abraços
SIMPLESMENTE PARABÉNS...
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