25 de março de 2008

O socialista de hoje é um capitalista de esquerda?

A humanidade está sempre reinventando os atores que desempenharão os papéis de profeta, fariseu, ignorante. E sempre reconfigurando o modelo mais poderoso, o coringa que atravessa todos os tipos e que os dissolve, ao fim das batalhas de cada geração, na mesma massa borbulhante e atrevida - o cidadão comum.

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Quando se decreta o fim de uma idéia, em verdade se procura aplicar mais um golpe nela. As idéias, todas elas, têm flancos macios para receber punhaladas. Mas não morrem tão fácil. Ao contrário, absorvem a força dos que lhes atacam.


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O erro sempre foi entender as ideologias enquanto dicotomias absolutas: capitalismo X socialismo, capital X trabalho. Marx explicou que o trabalho é uma forma de capital, neste caso de propriedade do trabalhador, e que o sistema moderno de trocas comerciais são resultado de uma evolução milenar da humanidade. Uma evolução conturbada, sangrenta, árdua. No últimos milhares de anos, os homens experimentaram diversas formas de governo, organização social e religião. O comércio, no entanto, é a instituição mais antiga. A revolução francesa tinha como objetivo principal libertar o comércio das garras do Estado, da aristocracia, da Igreja. O comércio tinha que pertencer ao povo, aos comerciantes, sob um regime jurídico que consolidasse a nova ordem. O erro do socialismo foi esse, a ingenuidade de querer restituir ao Estado o controle absoluto sobre o comércio, regredindo a uma condição medieval. O que levou Marx a esse erro colossal? Terá sido esse anti-semitismo, tipicamente (mas não só) germânico, místico, obscuro, às vezes disfarçado de comunismo, de associar o simples comerciante a uma força maligna? Um anti-semitismo que consumia inclusive judeus? Repare que esse comunismo arcaico floresceu com mais força na Alemanha, Rússia e China, países que passaram ao largo da renovação cultural vivida na França e EUA, no final do século XVIII, com as revoluções francesa e americana, e que abandonaram mais tarde a vida idílica (?) e estável do Medievo.

Existem, provavelmente, no inconsciente da humanidade, grandes guerras ainda não totalmente resolvidas, entre as civilizações agrícolas e as comerciais. Os gregos acreditavam que, por trás das guerras dos homens, haveria disputas entre os deuses. Estavam certos, em parte. Nos conflitos pontuais da humanidade, mesmo nas inocentes discussões entre blogueiros, há forças arquétipas milenares e poderosas lutando entre si.

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O socialismo vive enquanto idéia em construção. Uma ideologia é, antes de tudo, um sentimento, e não é por outra razão que os tipos psicológicos tendem, de forma quase inexorável, por intuição, a formas de pensar que lhes sejam mais afins.

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O socialista hoje é um capitalista de esquerda. A frase é polêmica, mas advém da própria confusão conceitual e terminológica produzida pelos ideólogos do capitalismo. O sistema moderno dominante de organização econômica e política é baseado na democracia, no sufrágio universal, em Constituições mais ou menos homogêneas, em princípios humanitários universais, num comércio regulado de forma justa e livre. Não se pode confundir liberdade com caos. Se o nome aplicado a esse sistema for "capitalismo", então somos todos capitalistas. Mas o adversário do socialista (ou capitalista de esquerda) contemporâneo não é esse capitalismo. Seu adversário é o capitalista de direita, que por isso mesmo se auto-reveste, com pompa e armas engalanadas, de anti-comunista, mesmo sabendo que seu adversário não é, exatamente, o comunista, mas também e sobretudo o capitalista de esquerda.

Qual a diferença entre os dois? O capitalista de direita, pelo menos os seus representantes do Brasil assim o fazem, defende o Bush e a guerra no Iraque, independente das mentiras e das consequências nefastas, em vidas, em danos materiais e em resultados na luta contra o terrorismo.

O capitalista de esquerda, ou o socialista contemporâneo, é contra a guerra. Também é contra o terrorismo. Contra as Farc. Contra a violação dos direitos na China. Contra o stalinismo. Também não lhe agrada o anti-americanismo falastrão de Chávez, embora o apóie enquanto presidente eleito e representante legítimo do povo venezuelano.

O capitalismo de direita não quer programas sociais, vê com antipatia as políticas de expansão de crédito, faz um silêncio irritado diante da elevação do salário mínimo e recusa-se, terminantemente, a dar crédito ao governo Lula pelos excelentes índices econômicos registrados nos últimos anos. O capitalismo de direita tem partido. É o PSDB. Por mais que tente flertar com algum centro-esquerdismo, ou mesmo centro, o PSDB irremediavelmente, tornou-se o receptáculo do direitismo tupinambá. Todos as correntes do direitismo nacional fluem para o PSDB, assim como grande parte das forças esquerdistas fluem, de uma forma ou outra, para o PT, o que explica a obsessão dos direitistas nacionais de enxergarem no PT o seu grande inimigo e tacharem qualquer pessoa que não comungue em suas cartilhas de "petista". No fim das contas, as quatro últimas eleições presidenciais foram uma disputa entre PT e PSDB. E tudo indica que a próxima repetirá o duelo.

Esse bipartidarismo, no entanto, não dá conta da complexidade política brasileira. Há muitos redemoinhos e mesmo desvios nos rios que nos levam a esse duplo destino. Continuamos a conversa mais tarde.

2 comentarios

Anônimo disse...

O assunto rende bastante. Já que os que defendem o socialismo na teoria são em geral egressos da classe dominante, pelo menos culturalmente, não deixam de lado o autoritarismo bebido na fonte de sua "educação". É dificil aceitar que uma organização social surja da antiga através de negociações, de experiências dos atores que se sentem desconfortáveis, como os burgueses se sentiam sob os aristocratas e os empregados se sentem hoje sob os patrões, e não de "conscientizações" guerreiras de massas acéfalas a espera de informados que as preparem para lutar por uma nova realidade.
Afinal é raro se ouvir questionamentos sobre o aprendizado, a educação. De uma necessidade cada vez maior para sobreviver num mundo cada vez mais dependente de máquinas, aprender é atribuido a internamento mais ou menos obrigatório em salas de aulas fechadas, com curriculos permanentes, ministrados por sábios e inatingíveis mestres sobre tablados elevados para ouvintes passivos em cadeiras cativas. Aprender, de um prazer necessário, passa a ser uma coação notificada.
Acredito que o socialismo já esteja se construindo em experiências que se exercerão na medida em que o $i$tema vigente der com os burros n'água. Ou, o que parece mais provável, na carência d'água.
Cada vez mais penso que o comércio, a negociação de interesses conscientes e explicitados, é a forma mais pacífica de convivência humana. Embora a guerra encene muito mais mitos e heróis. (Talvez esteja um tanto encantado com um texto de Simone Weil sobre a guerra de Tróia que acabei de ler.)
Júlio César Montenegro
jcmontenegro@globo.com

Anônimo disse...

Nota de esclarecimento: Miguel,

houve um erro no sistema, no meu, admito. O comentário, último que fiz aqui, é a propósito deste post seu: O socialista de hoje é um capitalista de esquerda?

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