1 de janeiro de 2011
O Bem-Amado e o ativismo político-cultural
Por Maurício Caleiro, do Cinema e Outras Artes
A adaptação de O Bem-Amado por Guel Arraes não decepciona apenas pelo roteiro frouxo, repetitivo, por atuações demasiado histriônicas e pela tentativa de inserir a narrativa em um contexto histórico inverossímil, mas, sobretudo, por distorçer gravemente a criação de Dias Gomes, ao negligenciar um traço distintivo da obra do dramaturgo baiano: a crítica político-ideológica consistente.
Marco Nanini, na pele do “coronel” Odorico Paraguaçu, e Tonico Pereira, personificando o populista de esquerda Vladimir, substituem o que poderia ser um duelo entre dois grandes atores por um torneio de quem grita mais alto. Às lúbricas saracotices das irmãs Cajazeiras com Odorico é dispensado um tom de chanchada, o qual, somado à superficialidade dos jogos eróticos pudicos, tende a cansar pela repetição. O casal central da trama, formado pelo jornalista Neco Pedreira (Caio Blat) e pela filha de Odorico, Violeta (Maria Flor), não bastasse a chatice de suas coqueterias calienta huevos, é fotografado com uma luz que acentua os tons brancos, dando a suas cenas idílicas a aparência de um comercial de margarina.
Um dos poucos personagens que se salva é o soturno e árido Zeca Diabo de José Wilker: sem chegar a ser, de forma alguma, melhor do que a versão brejeira do personagem quando na pele de Lima Duarte, ao menos é inovador. Já o Dirceu Borboleta de Matheus Nachtergaele é talvez o pior momento da carreira desse ator fenomenal – ainda mais para os que guardam memória da impagável personificação do secretário de Odorico por Emiliano Queiroz, com direito a gagueira e a ar apalermado.
A trilha sonora de Caetano Veloso & cia. é, para dizer o mínimo, preguiçosa – e a canção-tema, dissonante ao extremo, está no rol das mais pobres contribuições do baiano ao cinema. Para compeltar, em termos de tecnologia sonora o filme regride algumas décadas, a uma era pré-desenho de som: com frequência música e falas se contrapõem, indistinguíveis, não há nivelamento máximo ou preenchimento mínimo – de forma que, enquanto os berros de Nanini ardem nos tímpanos, os sussurros de José Wilker são eventualmente inaudíveis -; há ruídos e efeitos em níveis desiguais e às vezes inverossímeis: por vezes é como se estivéssemos ante um daqueles filmes do Jabor dos anos 70...
Salva-se uma direção de arte cuidadosa, com um quê de cinema malasiano nos tons de verde e vermelho e no uso de cortinas à guisa de molduras, resultando em belos interiores para uma Sucupira praiana e em colonial baiano. Mas mesmo nesses ambientes predomina uma certa pasteurização inerente às produções da Globo Filmes, dadas sua modorra narrativa característica, em allegro ma non troppo, e sua linguagem cinematográfica quadrada, mais previsível do que a de uma novela das oito.
Mas tais problemas não são o pior: ao igualar os dois políticos rivais encarnados por Nanini e Tonico Pereira, caracterizando ambos como manipuladores corruptos e velhacos, o filme substitui a crítica mordaz e matizada que o original de Dias Gomes fazia aos dois espectros político-ideológicos – aos quais o autor sobrepunha de maneira clara uma teleologia de valores republicanos, ausente no filme - por um discurso niilista, de descrença na política, de “políticos são todos iguais e não prestam” que é o que há de mais contraproducente para o avanço da democracia no Brasil.
Do CPC para a TV
A geração de Dias Gomes (e de Gianfrancesco Guarnieri e Oduvaldo Viana Filho, o Vianinha) tornou-se exemplar em termos de atuação política no campo cultural. Tendo seu raio de ação dramaticamente reduzido pela censura militar e pelo AI-5, optou por agir nos interstícios da mídia corporativa (leia-se Rede Globo), apostando num reformismo de longo prazo em oposição à inviabilizada revolução.
Tal estratégia acabou por levar à elevação do nível da dramaturgia televisiva e à introdução de temáticas que esgarçavam ao máximo a tolerância, superando em muito os limites que o poder militar e a igreja achavam aceitáveis. Destarte, a história da dramaturgia televisiva brasileira nos anos 70, início dos 80, é de uma dupla queda de braço: no interior da emissora, entre autores engajados e intelectualmente dotados e o sentido corporativo de auto-preservação de seus executivos; nos corredores governistas, entre os primeiros e as instituições religiosas e militares – notadamente a Censura.
O resultado de tais embates, embora inescapavelmente oscilante e imprevisível - muitas vezes negativo - foi mais de uma década de intensa dilatação dos padrões morais e da incisividade da crítica política em plena ditadura. Se, como sugere Roberto Shwarz, o interregno 1964-1967, imediato pós-golpe militar, é, paradoxalmente, marcado pela “hegemonia cultural da esquerda” no campo cultural, os anos de chumbo, ao menos na longa distensão do governo Geisel em diante, marcam um período único na história da TV brasileira, em que produtos como as novelas Gabriela, Saramandaia e O Bem-Amado e séries como Plantão de Polícia, Carga Pesada, Ciranda,Cirandinha e a proibida Amizade Colorida não subestimavam a inteligência do espectador ao mesmo tempo em que esgarçavam os então estreitos limites do permissivo e da representação político-social.
Face à banalidade e ao bom-mocismo que, no último quarto de século, assomou à teledramaturgia global, é difícil acreditar que emissora protagonizou tais avanços, mas ela o fez – e, em grande parte, como resultado de uma ação político-cultural deliberada de agentes culturais egressos dos Centro Populares de Cultura da Une, como os supracitados.
Eu tinha 6 anos quando a novela O Bem-Amado estreou, em 1973, e não me lembro de quase nada (a não ser o que vi depois, em trechos reprisados). Mas recordo perfeitamente da série semanal homônima, que foi ao ar entre 1980 e 1984, com praticamente o mesmo elenco da novela: Paulo Gracindo na performance de sua vida como o prefeito Odorico Paraguaçu, Lima Duarte como um hilário Zeca Diabo, o ator único que é Emiliano Queiroz como o estabanado Dirceu Borboleta, Ida Gomes, Dorinha Duval e a adorável Dirce Migliaccio como as irmãs cajazeiras, o bilioso oposicionista personificado com calculada imperfeição por Lutero Luiz, além de Carlos Eduardo Dolabella como o jornalista escolado e a gostossíssima Fátima Freire como a repórter novata e indignada (suas coxas cruzadas em um episódio em que Zeca Diabo a atacava em um cinema iluminaram meus, como diria Manuel Bandeira, alumbramentos pré-adolescentes).
Cada episódio, baseado nos pequenos contos de Dias Gomes, constituía um rico olhar sociológico sobre os costumes e as relações – sexuais, comerciais, políticas – características do modo de ser do Brasil no período, endereçado principal mas não exclusivamente aos coronéis regionais apoiados pela ditadura, e pleno de crítica bem-humorada e picardia. Para completar, havia a deliciosa e marcante trilha sonora de Toquinho e Vinicius de Moraes. Poucas vezes a televisão foi tão inteligente – e como iguais concebeu e tratou seus telespectadores.
Trata-se, sem sombra de dúvida, de um dos melhores produtos que a TV brasileira já levou ao ar, com um amálgama perfeito entre dramaturgia, humor e crítica política.
Ativismo e blogosfera
Mas o que é importante assinalar, no âmbito deste post, é que o fenômeno O Bem-Amado não constitui uma mera ocorrência histórica, perdida no tempo, mas um exemplo que suscita importantes reflexões sobre ativismo político-cultural e mídia corporativa. E de que forma isso nos diz respeito atualmente? De muitas, creio eu, como pretendo debater nos próximos parágrafos.
Vivemos, atualmente, com o advento da web 2.0 e do admirável mundo novo digital, uma era de profunda crise da mídia corporativa em geral – no que concerne a direitos autorais e de propriedade, controle sobre a veiculação de produtos audiovisuais, porcentagem de ocupação de mercado, mudança de suporte tecnológico, etc. As gravadoras e a imprensa são os dois exemplos mais gritantes, mas de forma alguma os únicos.
No Brasil, particularmente, esse crise estrutural é agravada – na mídia jornalística em especial – por uma questão conteudística: o engajamento político-ideológico de publicações como Veja e Folha de S. Paulo ou dos jornais, programas de rádio e de TV da Rede Globo de forma geral, ao atentar contra pressupostos éticos fundamentais do jornalismo, suscitou a desconfiança e a descrença dos segmentos mais bem-informadas do público.
Em decorrência desse quadro - e de forma mais intensa do que vem acontecendo em outros países -, a ação político-cultural na blogosfera e nas redes sociais, no Brasil, tem sido construída, em larga medida, em oposição a uma mídia estruturalmente em crise e desacreditada – mas, no que concerne particularmente à TV Globo, ainda capaz de uma penetração tentacular em todo o país impensável para qualquer outra modalidade comunicacional.
Em virtude da persistência dessa audiência medida em milhões – em oposição à difusão atomizada e de outra ordem de grandeza, consideravelmente menor, da blogosfera e que tais – é que se recoloca, em um cenário renovado, a questão enfrentada pela geração de Dias Gomes: ignorar a mídia corporativa e combatê-la através de uma guerrilha político-cultural (antes via espetáculos de rua, ora via internet) ou lutar em seu interior pela difusão de contra-discursos que contrariem a hegemonia conservadora/neoliberal?
Não é uma questão fácil de ser respondida, mas, ainda que as brechas das corporações estejam muito mais fechadas aos discursos dissonantes do que no imediato pós-1968, tampouco pode ser simplesmente descartada, como vários blogueiros fazem com desdém. Toda uma corrente de pensadores crê estarmos atravessando uma primavera da comunicação digital, a qual, segundo eles, tende, a médio prazo, a ser absorvida e controlada pelo grande capital via corporações. Esta seria só uma das razões para a manutenção na crença da possibilidade de se penetrar nas estruturas e modificá-las a partir de dentro.
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