A serpente enfurecida na hora da morte
Por Miguel do Rosário
Rio de Janeiro, 7 de junho de 2005 -- O deputado federal Roberto Jefferson (PTB - RJ), acuado diante das denúncias que ameaçam implodir sua carreira política, apela para uma velha tática de guerra: o diversionismo. Para quem não sabe, diversionismo é um termo militar usado para indicar manobras militares que visam confundir o inimigo. Políticos, em geral, são aficcionados por histórias de guerra, até porque, como dizia Clausewitz, a guerra é apenas uma forma, a mais radical, de fazer política. Pode-se dizer, embora com menos exatidão, que política consiste também numa outra maneira, certamente mais saudável, de fazer guerra.
O fato é que política consiste, na prática, em disputa pelo poder. Quem não sabe isso, é ingênuo demais para esse mundo. Os filósofos vêm tentando, em vão, desde o século XVIII, destruir o sistema ideológico concebido pela Igreja Católica para manter os povos na mais absoluta ignorância, e cujo pilar central é a malignidade inerente ao poder. Os socialistas científicos, liderados por Engels, Marx e, mais tarde, por Lênin, beberam na rica bibliografia filosófica da época (Hegel, Kant, Spinoza, Thomas Hobbes) e aprenderam que o poder é uma força que não pode ser negada, mas controlada, regulada por leis e pessoas que conduzam as nações na direção da justiça social.
O maior erro dos pensadores anarquistas, inclusive Bakunin, foi querer "extirpar" o próprio poder, o que seria uma coisa tão impossível como querer "eliminar" o próprio sol. Por isso falharam. Também por isso, o anarquismo só voltará a crescer quando reeditar sua visão sobre o poder.
O poder existe. Não é bom nem mau. Mas é terrível, sedutor, e transforma as pessoas que são tocadas por ele. É como aquele anel mágico do filme O Senhor dos Anéis. Quem o toca, tem suas qualidades íntimas, inclusive aquelas mais ocultas, rapidamente amplificadas. Se o sujeito tem, no fundo de si, um lado sombrio, este lado irá florescer no momento em que tiver algum poder em mãos.
Todos somos vulneráveis, todos; mas, naturalmente, uns são mais preparados que outros para resistir ao que existe de doentio no poder. Esse preparo não é ensinado na universidade; se aprende na vida. Quando o poder cai em mãos de grandes personalidades, magnânimas, discretas, tolerantes, é uma grande sorte para a humanidade. Mas o risco de cair em mãos erradas é tão grande que inventou-se a democracia, a divisão entre os três poderes, a Constituição, tudo com vistas à evitar ao máximo a concentração do poder em uma só pessoa ou grupo.
Dito isto, voltemos ao nosso turbulento momento político. O deputado Jefferson concede entrevista à Folha de São Paulo, acusando o secretário de finanças do Partido dos Trabalhadores (PT), Delúbio Soares, de pagar um "mensalão" de trinta mil reais a deputados do PP e PTB.
Segundo análise do cientista político Wanderley Guilherme dos Santos, pró-reitor da Universidade Cândido Mendes, trata-se da mesma tática do "mar de lama" que matou Getúlio Vargas e que fez Jânio Quadros renunciar.
Por exemplo. Miriam Leitão, colunista econômica do Globo, de um instante a outro, passa de uma prudente analista econômica, entusiasmada com o crescimento do país e fã confessa da política macro-econômica do governo, a pregadora do caos econômico e do apocalipse político.
A verdade é que todos estão confusos, inclusive eu, por causa da enorme compota lançada ao ventilador por Jefferson. Delúbio pagando mesada aos deputados do PP? Será verdade? Essa é a questão central, visto que deputados corruptos do PP, PTB, PMDB, é uma coisa, infelizmente, que não surpreende o mais cândido e otimista cidadão. Agora, atentemos para um fator relevante, que credibilidade tem Jefferson para fazer uma acusação destas?
O lado bom da história é que a necessidade de combater a corrupção ganha força no país e o governo sofre uma enorme pressão pública para aprofundar ainda mais o expurgo necessário das partes podres de si mesmo.
E o PT tem a oportunidade de olhar no espelho e concluir que não há alianças ou apoios políticos que compensem o desgaste público provocado por uma denúncia de corrupção.
O que precisamos, acima de tudo, é de uma sociedade vigilante, mas prudente em seus julgamentos. Não queremos uma opinião pública estupidificada pelos meios de comunicação, como ocorre nos EUA, onde o americano engole prazerosamente qualquer patriotada mal feita da Fox. Tenho esperanças, embora precárias, de que nossa classe média procurará ter uma postura mais independente diante da mídia do que a classe média venezuelana, por exemplo, que mergulhou numa obsessão doentia e preconceituosa contra um governante popular; aceitando e acreditando em toda tentativa de acusá-lo de corrupção. Não nos esqueçamos de que, após a vitória estrondosa de Chávez no referendo, a oposição acusou o governo, sem provas, de ter fraudado uma eleição, apesar da presença maciça de observadores internacionais e da chancela de Carter e da OEA, até então queridinhos dos adversários do presidente.
As elites e a grande imprensa adoram crises nas quais elas sempre saem ganhando. O salário da Miriam Leitão não está em jogo, por pior que seja a quadro político nacional. Pelo contrário, quanto maior a crise, mais o assinante do Globo se orgulha de ter feito a assinatura para poder ficar bem informado, mais se vende jornal.
Entretanto, tudo é uma questão de equilíbrio. O maniqueísmo radical, assim como a unanimidade, diria Nelson Rodrigues (cuja ilimitada ironia sempre foi confundida com reacionarismo, logo ele, o poeta dos subúrbios, o defensor do erotismo não conspurcado pela libertinagem eunuca), é sempre uma grande burrice. É preciso reconhecer o papel salutar da imprensa na questão do combate à corrupção. Por outro lado, sabe-se que Veja, Folha e Estadão, e os principais colunistas do Globo (Merval Pereira e Miriam Leitão, além do confuso João Ubaldo Ribeiro e o psicótico, estapafúrdio e grosseirão O.de Carvalho), já escolheram seu lado, o dos tucanos ou do PFL; e apostam na crise para enfraquecer a imagem de Lula e fortalecer a oposição.
Por todas essas razões, o cidadão comum deve ser prudente em suas análises, buscar sempre diversificar as fontes onde colhe informações e, sobretudo, evitar deixar-se influenciar por histerismos ou radicalismos sectários. Boatos não são verdades, por isso mesmo se chamam boatos. Tenho pra mim que quando Jefferson insinuou a existência do mensalão para integrantes do governo, o que ele queria é que deputados de seu partido fossem contemplados com essa "ajuda" de custo. Quer dizer, talvez o mensalão não existisse, e Jefferson queria que o tal fosse criado, para ele e seus asseclas. Mas isso é apenas especulação, é bom ressaltar.
Estando à beira de seu holocausto político pessoal, motivos para inventar boatos a Jefferson não faltam, e nada melhor do que inventar um que já existia. O fato de o boato ser conhecido torna-o mais veroríssimil, portanto mais poderoso. O próprio Globo aproveitou a confusão para dizer que PT e governo se contradiziam, pois o primeiro divulgou nota negando a existência do tal mensalão, enquanto o segundo admitiu ter tomado conhecimento do tal boato. Vejam que o governo não admitiu a existência do mensalão, mas apenas de que tomara conhecimento do boato, enquanto o PT, por sua vez, não disse que desconhecia o boato, mas que o tal não possuía fundo de verdade. Não há contradição.
O PT, atualmente o partido mais forte e mais rico do país, terá que fazer jus à sua pujança política e financeira, e se defender com galhardia e retidão. Esperemos que a experiência o torne mais forte, mais humilde e mais transparente; e que não use de subterfúgios ou artimanhas para sair de uma situação que, muitas vezes, exige duros sacrifícios. Que não hesite, se for preciso, “cortar na própria carne”, como disse o presidente. Mas também que não ceda a uma opinião pública envenenada com boatos sem fundamento por uma serpente enfurecida na hora da morte.
9 de junho de 2005
Escândalos de Corrupção
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