12 de junho de 2005

Reflexões sobre a crise

Em momentos de crise, só a filosofia traz respostas consistentes. Politicos, jornalistas e opinião pública raramente enxergam os acontecimentos com isenção histórica. Critica-se, louva-se, comenta-se com base somente no dia a dia; ninguém se esforça em elevar o pensamento além do turbilhão confuso dos acontecimentos para contemplar, com lucidez filosófica e distanciamento histórico, o panorama político do mundo atual.

Como já escrevi em outra ocasião, o homem é cobaia da história. O progresso da humanidade sempre ocorreu às custas do sangue dos indivíduos reais. As guerras mundiais foram grandes aulas de civilização para o mundo, mas a que preço? Mais de vinte e quatro milhões de mortos. O comunismo também foi um das coisas mais importantes para a história, ao preço de outros milhões. O capitalismo tem sido outra experiência e tanto, ao custo de bilhões de mortos de fome ao longo dos séculos.

Dito isto, comentemos a atual crise política que vive o Brasil. Sempre achei que a filosofia tinha uma função mais alta do que patrocinar enfadonhas teses de cursos de pós-graduação. Hegel, Kant, Marx, Sócrates, todos os grandes pensadores relacionaram a filosofia com a política de seu tempo; e assim acho que devemos fazer agora.

Por trás das manchetes dos últimos dias, por exemplo, vemos a explosão de um desejo fortemente reprimido pelas elites brasileiras: derrubar o governo Lula. Desde o início, parte da mídia tenta explorar as contradições inevitáveis de um governo, projetando uma luz fortíssima sobre ações conservadoras e omitindo informações sobre os programas mais progressistas do governo. Com isso, visava enfraquecer o governo junto à sua matriz originária, de esquerda. Conseguiu.

Entretanto, as pesquisas de opinião comprovaram que os segmentos sociais realmente politizados e com tendência esquerdista, são numericamente insignificantes. A esmagadora maioria da sociedade brasileira não é politizada; esquerdista então, é uma parcela ínfima (e o imbecil do Olavo ainda se preocupa...). Cumpria, portanto, atacar a credibilidade de Lula junto à esse segmento que, se não liga muito pra política, é deveras sensível à questão moral. E nada como um escândalo de corrupção, mais uma vez deflagrado por uma ação provocativa - os empresários que compraram o funcionário dos Correios, Maurício Marinho, foram lá com o objetivo confesso de fazê-lo cair numa armadilha.

Evidentemente, não há inocentes nessa história. Marinho era corrupto, ao aceitar a propina; os empresários ou políticos que patrocinaram a armadilha queriam produzir um motivo para chantagem; a oposição quer um palanque para ganhar espaço em 2006; e a imprensa quer escândalos para vender mais, afora seus interesse de classe.

A filosofia, porém, nos permite ver o que há por trás dos fatos; melhor dizendo, nos permite ver as entranhas dos fatos e contemplar os seus desdobramentos no futuro.

Por exemplo, o presidente da Venezuela, Hugo Chávez, vem enfrentando, desde o ínício de seu mandato, uma pesada campanha difamatória, que conseguiu envenenar ao extremo a opinião da classe média, não só em seu país como em toda a América Latina. Por outro lado, essa campanha deflagrou o apoio dos movimentos sociais e da população de baixa renda, que soube identificar o logro e aumentou seu apoio ao presidente que tanto ama.

A mesma coisa pode acontecer com Lula. Ao tentar transformá-lo numa vítima, a imprensa conservadora e a oposição podem convertê-lo num mártir. Estão subestimando o poder simbólico de Lula para as massas e para os movimentos sociais. A estratégia de atacar Lula por todos os lados, com base em depoimentos duvidosos de políticos corruptos, como Jefferson, já está fazendo com que diversos setores se articulem em defesa do presidente.

A própria Carta Capital, que em outros momentos, também soube criticar duramente o governo Lula, já está identificando a conotação golpista por trás do histerismo que tomou conta do discurso da oposição. Esses políticos iludem-se tremendamente com o apoio que vêem na mídia conservadora, confundindo esse apoio com respaldo popular.

É certo que essa mesma mídia sempre soube manipular o povo brasileiro com inaudita competência, mas as coisas mudaram bastante nos últimos anos. O surgimento de novas tecnologias de informação e o próprio fato de Lula estar no poder, são fatores que modificam completamente a equação política de outrora que era: mídia = poder.

Da mesma forma que Chávez vem triunfando magistralmente sobre uma mídia golpista e uma elite retrógrada, Lula também o poderá fazer; com a vantagem de que, agora, Lula poderá contar com a experiência da Venezuela e mesmo com o apoio de Chávez, principal líder das esquerdas do continente, que saberá usar o momento atual para ajudar Lula, pagando a dívida política que tem para com o Brasil, onde ele tem bebido tanto apoio. Afinal, que outro governante tem apoiado mais sistematicamente o "companheiro Chávez" do que Lula? Um apoio, diga-se de passagem, feito com extrema inteligência e lucidez, evitando sempre transmitir à opinião pública a imagem de um apoio cego e tendencioso.

Se os escândalos de corrupção, e mais especificamente sobre o tal "mensalão", numa primeira etapa, servem como motivo de instabilidade política e palanque para a oposição, prejudicando a imagem do principal partido de esquerda do país, num segundo momento, terá consequências positivas sobre a história política brasileira, à medida que funcionará como elemento intimidador para a corrupção e obrigará o PT a estudar maneiras de resgatar seu prestígio ético junto ao público.

A imprensa tem citado sempre o fato de estarmos há apenas um ano e meio da eleição, associando isso à possibilidade de Lula não conseguir reeleger-se. Entretanto, um ano meio, como se sabe, é muito tempo num processo eleitoral. Haverá, portanto, tempo para o PT e o governo reestruturar seu discurso e sua prática política, blindando-se contra novos ataques.

Por que, no fundo, o brasileiro não liga tanto para a corrupção e sim para sua impunidade. O governo terá, portanto, oportunidade de responder com ações concretas aos recentes escândalos.

Outra coisa que fica claro é que a opinião pública tem sido totalmente confundida pela história das CPIs. A mensagem que se passa às pessoas é que somente as CPIs investigam; quando, na verdade, os congressistas não são investigadores profissionais, à diferença de polícia e ministério público, estes sim formados e especializados na apuração e repressão a atos ilícitos. A corrupção brasileira deve ser combatida, e está sendo, pelas instâncias apropriadas, que são a polícia federal e o ministério público.

Última palavra: a confissão de Jefferson de que não tem provas sobre o tal mensalão o colocou no pior dos mundos. Denegriu levianamente a imagem do Congresso, traiu da forma mais vil possível a confiança que Lula (equivocada e ingenuamente) havia posto nele e agora deverá ser, com razão, crucificado pelos congressistas respingados pela massa fétida que ele, num gesto de desespero, arremessou pra cima.

Sugestão: sobre esse assunto vale acompanhar o raciocínio de um respeitado sociólogo brasileiro, Wanderley Guilherme dos Santos. Leia aqui uma entrevista recente com ele para a revista Carta Capital.

Comente!