17 de junho de 2005

Mais um artigo sobre a crise

A crise e olho do ciclope

Por Miguel do Rosário*

A ideologia não está morta. Todo homem ou mulher possui uma visão metafísica do mundo que, queira ou não, constitui uma ideologia política e moral. A ideologia não é uma escolha, mas uma condição psicológica natural do ser humano pensante.

Entretanto, a ideologia não é uma coisa única, ou dupla, como acreditam cândidos seguidores do neo-liberalismo ou românticos idealistas revolucionários. Toda chatice pedante e histérica da filosofia pós-moderna, que até hoje nos atazana a vida com seu viés mal disfarçado de sectário conservadorismo, pelo menos revelou esta faceta cruel e complicante do universo político da humanidade: existem milhares, talvez milhões de ideologias diferentes, que seguem distintos padrões e variáveis.

Compreender essas tendências políticas e procurar ordená-las é uma obrigação ética de todo cidadão, em qualquer democracia que se preze no mundo. A tarefa é tanto mais difícil quanto mais avançado se encontra o capitalismo. O capital gosta de confundir, porque essa é a melhor estratégia de quem dispõe do poder sem o inconveniente de ter um rosto para levar uma bofetada.

Encontramos ideologias combinadas em diversos setores e indivíduos, o que não é doentio nem errado, como pensam puristas que hoje foram ultrapassados pela dinâmica da democracia: políticos que pensam modernamente, que mesclam ideologias, que sabem que a vitória contra a miséria é a principal bandeira de qualquer político, seja ele socialista, capitalista, neo-liberal, tucano, garotinista, esses é estão ganhando mais apoio apular.

Qualquer político hoje que transmita com eficiência e credibilidade a imagem de que vai atuar pelos mais pobres consegue vantagem no voto. Essa é uma mudança importante na cultura política que se operou no Brasil desde a eleição de Lula. Não esqueçamos de que os partidos de centro esquerda cresceram de maneira vigorosa desde o fim da ditadura militar, ao mesmo tempo em que partidos conservadores, como o PFL, murcharam no mesmo período, sobretudo nas duas últimas eleições.

O PFL, apesar de perder força no voto popular, voltou a encontrar apoio junto a alguns segmentos das elites financeiras, principalmente daquelas ligadas à agricultura e à exportação. Inicialmente apavorada com a eleição de Lula (o dólar chegou a 4 reais ao final de 2002), depois tranquilizada pela estabilidade econômica e pelo rigor fiscal do governo, essas mesmas elites esboçam agora um movimento de acomodação junto aos partidos da direita, mostrando que a reeleição de Lula em 2006 não será nada fácil. Mas vencê-lo será mais difícil ainda; não só pela força de Lula, que possui não só muita força aqui dentro como ganhou uma nunca antes vista projeção internacional, como pela debilidade da oposição, que não tem políticos com apelo popular; os melhores quadros do PSDB e PFL são figuras facilmente identificáveis com as elites, o que é prejudicial na delicada questão de conquistar o coração do eleitor pobre, classe média baixa e classe média média.

O maior problema dos analistas, nos dias de hoje, é que a dinâmica da história atingiu um ponto crítico em que não é possível entendâ-la somente a partir do estudo do passado. Se isso era verdade na época de Marx, que via as transformações econômicas da sociedade européia projetarem uma gigantesca sombra de transformações políticas e culturais, é mais verdade ainda atualmente, em que as revoluções industrias, tecnológicas e culturais se sucedem numa rapidez vertiginosa.

Mas, felizmente, diminuiu o nervosismo confuso e desesperador que culminou no pós-modernismo. O surto de irracionalismo que se propagou como epidemia nos anos 80 e 90, misturando a cultura do caos dos anos 60 com a cultura do dinheiro das décadas seguintes, já está relativamente controlado. Nas universidades, surgem aos poucos, inteligências mais prudentes, mais ponderadas em suas análises, mais respeitosas com o passado, humildes em relação ao presente e ambiciosas em relação ao futuro.

Nunca se vendeu tanto a Crítica da Razão Pura no Brasil. Hoje compra-se no sebo por dez ou vinte reais qualquer livro de filosofia. A Estética de Hegel finalmente foi traduzida para o português, cujas obras, aliás, começam a ganhar novas e numerosas traduções. "Ah, não vão entender mesmo", ou "apenas uma minoria de professores e intelectuais é que vão ter acesso", podem dizer alguns. Não é bem assim. Os professores que conseguirem entender serão melhores professores e serão prósperos profissionais. E os que não entenderem não ficarão mais burros com isso; muito pelo contrário, toda vez que você lê uma coisa que não entende, você está se expondo ao sol de um desafio, e está recebendo uma nova carga de energia neurológica. O cérebro ativa as ligações nervosas de acordo com a necessidade.

Dito isto, prendamos um pouco a respiração (para o cheiro não nos ferir o olfato) e mergulhemos na situação nacional. Os brasileiros não podem fugir à discussão política; se estivéssemos na França, na Suíça, na Dinamarca, poderíamos sim esquecer tudo isso e nos dedicarmos somente à viajar o mundo. Aliás, essa não deixa de ser uma boa coisa a fazer; mas se você é duro como eu e tem que ficar aqui no Brasil, trabalhar, construir uma vida e inventar uma visão de mundo, por mais idiota que ela seja, então temos que botar a cachola para funcionar de vez em quando e pensarmos nossas políticas, local, estadual e federal.

Precisamos furar o olho do ciclope, que é a mídia. O ciclope, como vocês sabem, é um gigante de um olho só, que foi derrotado por Ulisses, segundo a história contada na Odisséia, com um golpe em seu olho único, que o deixou cego. Como o ciclope, a mídia é poderosa, enquanto nós, indivíduos, somos apenas humanos. Mas a mídia não é invencível. É uma entidade dinâmica, ligada visceralmente ao corpo social, do qual depende. Como o ciclope, tem um grande olho projetado sobre o mundo; mas esse olho pode ser furado. Nós, simples cidadãos, temos, assim como o protagonista de Homero, nossas próprias armas: inteligência, engenho e arte.

Qual a vantagem para o Brasil desta crise política? Simples: paralisar o país. Paralisar o quê?, perguntam todos, se o governo Lula não está fazendo nada? Pois bem, vamos começar pelo referendo de armas, uma das leis, proposta e elaborada pelo Ministério da Justiça em conjunto com entidades como OAB, e diversas Ongs de prestígio. Enquanto a oposição histérica de um PFL decadente e minguado popularmente, e de um PSDB apavorado com o crescimento do partido governista, gastam munição política para a criação de CPIs que a Polícia Federal, como bem prova sua atuação independente e eficiente dos últimos tempos, poderia investigar sem estardalhaço, sem prejuízo para a opinião pública, prendendo somente os culpados, sem manchar a reputação de todos deputados e senadores federais; enquanto isso, a votação para o referendo de armas, que poderá significar numa grande melhora na segurança pública nacional, vai sendo adiada do Congresso. Ou seja, a crise paralisante interessa também aos lobbistas do setor armamentista.

Que pensam que a CPI pode fazer? Todo mundo sabe, quase toda a CPI acaba em pizza. Isso porque político não é investigador, nem tem preparo para lidar com os artifícios jurídicos usados pelos criminosos de colarinho branco, que se aproveitam da atmosfera de circo criada para esconder o dinheiro roubado no exterior. O que tirou Collor do poder foram as investigações da polícia federal, as contas reprovadas pelos Tribunais de Conta, a gritaria da opinião pública, a falta de apoio na Justiça e, por fim, a maciça movimentação dos principais partidos do país, da direita à esquerda, que uniram forças contra o presidente.

Mais alguns dias de paralisação e o referendo de armas poderá ser adiado somente para 2007, visto que deve ser votado e aprovado agora para ser realizado em setembro deste ano. Em 2006, por ser ano de eleição, será muito mais difícil aprová-lo. Este é um grande projeto de Lula que poderá trazer enormes benefícios para a segurança pública no país; já que a redução do comércio de armas, já comprovaram Inglaterra, Suécia, Dinamarca, Alemanha, qualquer país do mundo que se preze, excetuando os EUA, onde a indústria bélica tomou o poder, é condição sine qua non para diminuir a criminalidade.

O Brasil precisa de estabilidade. Esses histéricos do PSDB e PFL deviam, em vez de querer ganhar no grito, melhorarem seus discursos e governarem melhor onde estão instalados. Até onde eu sei, seus governos tem batatas quentes demais nas mãos para jogarem pedras nos vidros do governo Lula.

Alckmin tem que resolver o problema da Febem, do sistema carcerário do estado, da violência urbana, da reforma agrária em terras estaduais, da agricultura familiar, da saúde paulista, do ensino médio estatal, responsabilidade do Estado.

César Maia, prefeito do Rio, também tem que mostrar mais serviço antes de sair por aí posando de grande administrador. Além de se revelar uma figura anti-social do ponto-de-vista político, visto que arruma brigas constantes com o governo estadual, com o federal, com grandes empresas, com todo mundo. E não tem conseguido sanar ou mesmo estabilizar a situação social da cidade. Enquanto seus guardas municipais espancam e saqueiam camelôs indefesos, turistas estrangeiros são assaltados por meninos de oito anos em Copacabana. Por que não usar a guarda municipal para proteger o turista e tratar os camelôs como cidadãos, trabalhadores, que estão ali para sobreviver, para não roubar? Como se pretende convencer o sujeito a não roubar, a não matar, se lhe impede de trabalhar no mercado informal, única opção viável para o desempregado sem maiores preparos acadêmicos ou técnicos? Se a prefeitura distribuísse bolsas de estudo em centros profissinalizantes para os camelôs que expulsa das ruas, aí sim eu entenderia a sua política. Mas o que se faz agora é enviar os camelôs de hoje para as trincheiras do crime amanhã. Uma alternativa lógica seria ajudar os camelôs a ingressarem no mercado forma, através de leis municipais que os integrem num plano de previdência, que criem sindicatos fortes, honestos e atuantes, e assim vai. O camelô deveria ser incorporado ao projeto de turismo no Rio de Janeiro, já que o turista internacional que visita a cidade quer ir na Rocinha, quer conhecer as favelas e contribuir de alguma forma para o bem estar local.

A crise política gerou um fato interessante, naturalmente minorado pela grande mídia: os movimentos sociais e os sindicatos estão se unindo na defesa do presidente Lula. O movimento social no Brasil não é mais bobo; já identificou o dedinho da direita na fabricação da crise atual.

Quanto à extrema-esquerda propriamente dita, que tem tentado crescer às custas da crítica desclassificada ao presidente Lula, acho que seria muito mais inteligente, do ponto-de-vista de sua sobrevivência política, se concentrasse suas baterias na conquista de cadeiras locais, através da comunicação direta com as comunidades locais, que tão afastadas se sentem de seus representantes. Perderam essa oportunidade em 2004. PSTU e outros radicais tomaram uma surra histórica no voto (e isso apesar da "onda" esquerdista que vem varrendo os países latinos) ao amarrarem suas plataformas políticas às grandes questões nacionais e mesmo internacionais. As funções a que pleiteavam, como vereadores e prefeitos, só permitem, na prática, a solução de emergências estritamente locais. Por isso, o povo os identificou como charlatões que estão ali apenas para defender suas corportações e não lutar nas pequenas mas cruciais lutas que as comunidades vivem diariamente no trato com as autoridades e elites locais.

Os segmentos éticos da política nacional precisam entender que o desenvolvimento da República só ocorrerá quando tivermos um corpo republicano mais saudável, com corpos legislativos mais confiáveis e mais produtivos. Isso começa nas cidades, com melhores vereadores; chega nos Estados, com deputados estaduais mais honestos e atuantes; e termina no Congresso Nacional e no Senado, com políticos comprometidos com justiça social, justiça esta que alguns conservadores ignorantes confundem como uma causa das esquerdas, quando é, acima de tudo, a idéia central da Constituição Brasileira. Aliás, distribuir uma versão popular e resumida da Constituição Brasileira, a começar pelos colégios, passando por sindicatos e universidades, como fez Mao na China e faz Chávez na Venezuela, não seria má idéia.

Somente a justiça social poderá fortalecer as bases econômicas do Brasil, preparando-o para enfrentar os desafios do mundo moderno. A distribuição de renda é importante para as indústrias, e até os bancos serão obrigados a se curvar às vantagens de existirem 190 milhões de clientes potenciais e não somente uma classe média reduzida e empobrecida. É a força do próprio capital em contradição com os interesses dos que possuem o capital. As elites não querem o desenvolvimento porque a desigualdade é poder. Quando você entra numa festa com cem reais no bolso e ninguém mais tem mais do que dez reais, você será o "patrão" da festa. Agora, se você chegar, na mesma festa, com cem reais, e tiverem outras pessoas, umas com 80 reais, outras com cinquenta reais, mais um cara com a mesma quantidade de grana que você, o valor do seu dinheiro não será tanto. Você terá que apelar para suas qualidades pessoais para conquistar as garotas. As elites não querem "apelar" para suas qualidades pessoais. Os jovens de classe alta e classe média alta querem continuar sendo privilegiados, com seus empregos maravilhosos, seus carros do ano, seus apartamentos em condomínios de luxo no Rio e São Paulo, suas festas alucinadas, regadas a drogas e mulheres venais.

Não foi o Lula que mudou. Nem ele pode mudar nada sozinho. Ele é só um representante eleito pelo voto popular, que um dia vai ser substituído por outro. Lula sempre foi o que era, um cara do povo, um sindicalista lutando com os instrumentos que a democracia colocou em suas mãos. Sindicalista que se preza tem que se comunicar bem o patrão, sem trair a confiança dos trabalhadores. O importante não é dizer bravatas, falar mal dos Estados Unidos e tal; e sim conseguir melhorar a renda do trabalhador. O importante foi ter elevado o salário mínimo para mais de cem dólares, quando chegou a menos de quarenta na época de FHC, após a desvalorização do real em 1999; mesmo em 1994, com o Real super-valorizado, o salário mínimo era bem inferior à 100 dólares, com o agravante de que FHC estava pendurando a estabilidade na conta do FMI e da dívida interna, enquanto Lula conseguiu romper, dignamente, o contrato com essa entidade e está reduzindo, aos poucos, a dívida interna. E controlando a inflação, que é o mais importante. É isso que o povo quer que continue fazendo: controlando a inflação e aumentando o salário mínimo; aumentando o salário mínimo e controlando a inflação; esse é o mantra que soa como música para as classes populares; e que poderá, se firme e contínuo, deflagrar um grande boom no consumo, detonando uma saudável geração de empregos na indústria e no comércio, criando o mesmo ciclo virtuoso que viveram todos os países que se desenvolveram: Japão, EUA, europeus, tigres asiáticos.

Se eles podem, nós também podemos. País que tem a riqueza cultural que o Brasil tem, com Pixinguinha, Cartola, Noel, Chico Buarque, Bezerra da Silva, Chico Science e Guimarães Rosa, pode tudo. Termino citando Raulzito, que expressou, através do rock'n'roll, o desejo de liberdade e justiça social da nação brasileira: "o que eu quero/ vou conseguir/ o que eu quero vou conseguir/ porque quando eu quero todos querem/ todo mundo pede mais/ e pede bis".

* Miguel do Rosário é escritor, editor de Arte & Política, colunista da Novae. Lançou em março deste ano o livro Contos para Ler no Botequim, que pode ser adquirido no site do autor.

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