6 de dezembro de 2007

A luz irrompe onde o sol não brilha (debate com Eduardo Guimarães, do MSM)

(Rauscheberg)



O Eduardo Guimarães me convidou para o debate. É um desafio que enfrento com muito prazer. A opinião dele é de que devemos sair de frente de nossos computadores e cair no mundo "real", para protagonizar o velho e bom combate ideológico.

Tenho o maior respeito pela luta real. Minha opinião, porém, tem sido a de que a internet é o campo de luta mais eficaz, onde há menor desgaste pessoal e maior poder de fogo.

Vamos aos argumentos. Em primeiro lugar, não desconsidero de forma alguma o valor de manifestações físicas. O que coloco em questão são estratégias específicas de um movimento de pequeno porte, sem condições, por diversos motivos, entre os quais a falta de recursos financeiros, de se tornar muito grande e protagonizar grandes eventos públicos.

Há que se pensar, portanto, as circunstâncias específicas de cada luta. Se estou numa briga de botequim, falo uns bons palavrões e preparo os punhos para dar uns socos e o rosto para receber outros. Se faço parte de um sindicato com 100 mil membros e orçamento de 40 milhões de reais, posso alugar ônibus, pagar lideranças e contratar empresas de serviço para me ajudar. As grandes manifestações sindicais e de movimentos sociais, hoje em dia, são altamente profissionalizadas. Custam muito dinheiro e são organizadas por profissionais, devida e justamente pagos para isso.

Por outro lado, quem são os adversários do movimento dos sem mídia? São pessoas que estão pessoalmente blindadas, remuneradas regiamente. Nunca se desgastam, nunca se expõem fisicamente. Participam da luta como mercenários contratados no conforto de seus computadores e conseguem resultados espantosos, produzindo crises políticas que estremecem os alicerces da nação.

Há momentos, claro, de grande comoção nacional, em que as pessoas comparecem aos milhares, espontaneamente, às ruas. Mas esses momentos não tem relação com pequenos movimentos. São, como disse, ações espontâneas de massa, como foram as impressionantes e grandiosas manifestações contra a guerra no Iraque. As quais, lembremos, não deram em nada. Os EUA invadiram o Iraque do mesmo jeito, com violência inaudita.

Hoje em dia, no Brasil, se um grupinho de dez pessoas se manifesta em linha com interesses de nossa mídia corporativa, ela consegue ampliar o evento de maneira incrível, proporcionalmente à capacidade da mesma mídia de minimizar o tamanho de uma manifestação contrária a seus interesses.

A internet é um grande campo de luta. Eduardo Guimarães, blogueiro e um importante líder do movimento de contra-informação no Brasil, por quem tenho infinita admiração, está, a meu ver, subestimando o poder da internet de influenciar as pessoas, sobretudo os chamados formadores de opinião, os quais, como o nome diz, distribuem as informações colhidas na internet para toda a população brasileira.

Está certo que a internet não atinge um morador da beira do rio Solimões, pobre e semi-analfabeto, mas naquela cidadezinha, seguramente, há um radialista que entra na internet, interage com diversos blogs e sites, processa esses dados e retransmite suas conclusões aos ouvintes de seu programa de rádio.

O meu humilde blog, por exemplo, tem textos republicados em pequenos sites do interior do país, é acessado por cidades de toda parte. É possível acompanhar tudo pelo Google e pelos monitores de acesso. Acredito que acontece o mesmo com o blog Cidadania.

Eduardo Guimarães fala no Sivuca, um conjunto de blogs, que têm em comum o sentimento de protesto contra certa ditadura da opinião única que observamos na mídia. O problema é que Guimarães parece subestimar o valor do Sivuca, como se a grande quantidade de espaços "de esquerda" ou "anti-mídia", fosse excessiva e, portanto, tivesse sua força diluída. Ele esquece que, se a mídia vem sendo desmascarada, e perdendo diversas batalhas que comprou nos últimos tempos, é justamente por uma blogosfera vigorosa, numerosa, plural, que a tem questionado sistematicamente. São muitos blogs? Sim, são muitos. Por isso são invencíveis. A força da internet está em que ela reúne micro núcleos de opinião, tão numerosos que são impossíveis de serem combatidos pelos jagunços da mídia.

De vez em quando, um jagunço da mídia resolve atacar um componente da blogosfera contra-informativa. Rapidamente, há um movimento espontâneo de contra-ataque. Os blogueiros têm um sentimento grande de união, nos momentos certos. Fora desses momentos, agem individualisticamente, como convém.

Cuidado, Edu, para não cair num questionamento chauvinista sobre a luta "ideológica" na internet, referindo-se aos valentes blogueiros como seres que têm coragem de brigar apenas no conforto de suas casas. A luta pela internet é tão dura quanto qualquer outra. Se é ideológica, é uma luta intelectual. A competição intelectual na internet é enorme e às vezes chega mesmo a ser irritante. Há legiões de pedantes que confundem conhecimento de almanaque com o verdadeiro conhecimento sobre a vida e sobre o mundo, que é sobretudo um conhecimento viril e criativo.

A proteção que a internet nos proporciona, Eduardo, é justamente proteção contra os gigantes que aguardam qualquer descuido nosso para nos pegar. Além do mais, temos um país grande demais, e as manifestações físicas privilegiam, como sempre, os moradores das metrópoles. Quando você dá mais valor a um ser que se manifesta fisicamente do que um outro que se manifesta virtualmente, você acaba valorizando quem mora em São Paulo ou Rio de Janeiro, e discriminando quem mora no interior de Mato Grosso e não pode viajar. Sem contar o fato de que, em muitas cidades do interior, as forças políticas conservadoras ainda têm comportamento mafioso, e manifestações locais supõem risco real de vida e danos profissionais.

Há um cientista inglês, Stephen Hawking, que revolucionou a física mundial apenas movendo dois dedos da mão esquerda. Ele não pode se manifestar fisicamente, mas com sua inteligência e suas palavras superou milhões de garotos fortes e saudáveis formados em Harvard.

A internet, hoje, está provado, influencia eleições, altera consciências e produz comportamentos. No caso específico da luta contra-informativa no Brasil, tenho a convicção de que a briga se dá no campo da classe média. Você, Edu, revolta-se sobretudo com matérias e opiniões publicados na Folha, no Globo e no Estadão. Claro que a televisão também é questionada pelo MSM. Mas creio que o poder da Globo vem declinando de maneira mais acelerada do que nós esperávamos. O Ibope da Globo está despencando, e por motivos sólidos. Canais fechados, internet, DVD, melhora do nível de outros canais, são os motivos. A entrada da TV digital irá igualar as emissoras em força de sinal. Em milhares de cidades, o único canal que pega bem é a Rede Globo. Com a TV digital todos os canais pegarão bem. A competitividade enfraquecerá o monopólio da Globo. E, no caso de todas formarem um conglomerado golpista, teremos aí a TV Pública que servirá de contra-ponto.

O Brasil tem poderosos movimentos sociais organizados, com recursos e número de filiados. Competir com eles em manifestações públicas é ridículo. Movimentos como o Cansei caíram no ridículo por causa disso: reuniram dezenas de pessoas em Brasília, vinte no Rio, umas cem em São Paulo, número que, definitivamente, não representa nada. O MSM, por exemplo, juntou 34 pessoas na manifestação diante do Globo em São Paulo. Ora, quantas pessoas visitam seu blog diariamente? 1.500 pessoas. 2.000 pessoas. Multiplique isso por 30 e terá mais de 50 mil pessoas por mês. Eu sei que o seu blog é imensamente visitado porque só o fato do meu blog ser linkado no seu, me traz um contingente monstruoso de visitantes.

Existem, sim, movimentos como o Sivuca, e entendo que o MSM queira se diferenciar. Mas não acho que o caminho seja desmerecer a internet ou insinuar (sei que não é sua intenção) que quem luta pela internet é bundão nerd covarde. Pessoalmente, acho que o Sivuca é uma iniciativa magnífica, mas ainda muito rudimentar. A saída não seria voltar a lutar com paus e pedras e sim incrementar tecnologica, visual e ideologicamente a estratégia. Não basta lançar um blog. Não basta fazer um site. Não basta fazer um pool de sites. O importante é o conteúdo e a tecnologia. Se um bom site pode faturar mais que o orçamento do estado de São Paulo, como é o caso do Google (e o Google nada mais é que um bom site), então pode perfeitamente ser uma ferramenta altamente revolucionária.

Além do mais, é preciso ter visão de futuro. A venda de computadores no Brasil superou a venda de televisores este ano. Entende isto? Devido aos programas de crédito popular, muito recentes e inéditos na história brasileira, as classes populares estão tendo oportunidade de comprar computadores. É natural que estas classes ainda precisam de tempo para assimilarem esse novo meio de informação. A maioria perde tempo usando orkut e msn. Conheço jovens adolescentes que nunca leram um livro mas que gastam horas por dia lendo sites de relacionamento, envolvendo-se ao poucos em discussões políticas e culturais às quais, sem a internet, nunca teriam acesso.

Essa é a grande mudança. O debate político e cultural não é mais monopólio dos intelectuais. Aliás, se você observar, verá como há uma participação plural, de diversas classes sociais, nos diversos espaços de debate político e ideológico que a internet abriu. Tudo isso é muito novo!

O mais irônico disso tudo, e o mais lindo também, visto que honra os cidadãos brasileiros, é que a participação na web explodiu no Brasil justamente por causa da terrível pressão ideológica que a mídia corporativa exerceu sobre a sociedade. A nossa mídia pressionou, e ainda pressiona, a sociedade a engolir suas opiniões. A pressão gerou uma enorme e crescente revolta, que procurou saída natural na internet. Você é um exemplo disso. No meu caso, eu atuo na imprensa alternativa há muitos anos. Eu editava jornais impressos no Rio de Janeiro. Eu marcava reuniões na minha casa. Sempre para denunciar manipulações e distorções ideológicas. A Miriam Leitão não informava sobre a explosão da dívida pública e sobre a fragilidade da política econômica de Fernando Henrique. O Jornal Nacional era a coisa mais fútil, dedicando programas inteiros a notícias sensacionalistas, como nascimento de sextigêmeos nos Estados Unidos e pouco falava de política. Isso nos anos 90.

Mas a minha atuação nunca passou do local, mesmo atuando na segunda maior cidade do país. Quando eu comecei a escrever para a internet, primeiro com o site Arte & Política, depois com o blog, eu passei a atingir um público infinitamente maior, inclusive internacional. Lembro que, uma vez, eu li emocionado um artigo meu traduzido para o espanhol por militantes da campanha do Tabárez Vásquez, candidato de esquerda à presidência do Uruguai, que ganhou eleições. Artigos meus, peças de combate, foram traduzidos também para o alemão, inglês e francês, porque foram colhidos na internet e correram mundo. Muitos outros artigos, de outros autores, tiveram o mesmo destino.

No fim das contas, estamos condenados a pensar. Mesmo que consigamos reunir algumas centenas de manifestantes em determinado local, o valor disso não será muito se as idéias por trás não forem consistentes. Se os argumentos não forem vigorosos. Se a forma como forem expressos não for criativa.

Não quero que confunda minha opinião, todavia, como desprezo pelo valor do contato humano. Acho que é absolutamente fundamental que as pessoas se encontrem, que confraternizem, que discutam, que interajam. O amor e a amizade verdadeiros, felizmente, só ocorrem ao vivo e a cores. Por isso, na minha opinião, movimentos como o MSM deveriam organizar encontros puramente festivos, de confraternização, os quais gerariam preciosas trocas de idéias e planos de ação, sempre focando na internet. Os eventos poderiam, inclusive, ser alavancadores de recursos.

Concluindo, acho que a internet é uma ferramenta altamente poderosa, com potencial revolucionário, e mais: é uma ferramenta completa. Não basta usá-la, todavia, é preciso usá-la com talento, inteligência, coragem e arte. Subestimando a internet, Edu, você subestima a palavra e subestima a poesia. Subestima também os poetas, seres profundamente feridos na alma, muitas vezes vivendo quase no limiar da loucura, mas sem os quais a humanidade estaria chafurdando numa situação infinitamente mais vil que a atual. Repare ainda que a poesia consegue, incrivelmente, ganhar o respeito absoluto de representantes dos mais extremos matizes ideológicos.

The times they are a-changin', dizia Bob Dylan. E continuam mudando. Durante séculos, os brasileiros nasciam e morriam mudos. Hoje, estão tendo a oportunidade de participar do debate nacional. Esta participação já tem dado resultados importantes, criando redes de influência que provocaram sérias fissuras no poder manipulador da mída corporativa. Não é por outra razão que os colunistas agora procuram desqualificar, a todo momento, a massa crítica anti-mídia da internet, o que revela a dor dos socos que vêm levando no estômago - e com isso aumentam ainda mais a indignação e o entusiasmo dessa massa crítica. Na solidão de seus computadores, movidos por esse inesgotável entusiasmo pela luta ideológica, onde entra inevitavelmente uma identificação classista, defendendo ou atacando os interesses trabalhistas, amadurecem os novos soldados da contemporaneidade. As estratégias de luta mudam, mas ainda se carece coragem, muita coragem. A internet também é o mundo real. A luz, caro Edu, irrompe mesmo onde o sol não brilha.


A luz irrompe onde nenhum sol brilha;
onde não se agita qualquer mar, as águas do coração
impelem as suas marés;
e, destruídos fantasmas com o fulgor dos vermes nos cabelos,
os objectos da luz
atravessam a carne onde nenhuma carne reveste os ossos.

(...)

A luz irrompe em lugares estranhos,
nos espinhos do pensamento onde o seu aroma paira sob a chuva;
quando a lógica morre,
o segredo da terra cresce em cada olhar
e o sangue precipita-se no sol;
sobre os campos mais desolados, detém-se o amanhecer.

(Dylan Thomas)

2 comentarios

Juliano Guilherme disse...

Pô Miguel, magnífico texto. Me convenceu, pelo menos até a réplica do Eduardo

Anônimo disse...

Bom pacas!!!
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