Virei-me para o lado e observei-a melhor. Mudei de idéia quanto a fechar a conta e ir para casa. Ela devia ter uns trinta e poucos anos e seus olhos expeliam energia suficiente para abastecer uma fábrica. A sonolência que me invadia após quatro doses desaparecera e agora eu procurava um pretexto para puxar assunto. Depois de matutar profundamente, decidi oferecer-lhe um drink. Pareceu-me a melhor coisa a fazer. Chamei o garçom. Antes que fizesse o pedido, contudo, ocorreu uma cena.
A bela balzaquiana ergueu-se, abruptamente, do banco alto em que estava sentada, saltou para o chão e encaminhou-se para a saída. Antes que a porta se fechasse, vi que ela empunhava o celular e tinha um expressão nervosa.
Provavelmente, pensei, não quer que a pessoa do outro lado da linha descubra que se encontra num bar. Bom sinal. Achei que fosse um bom sinal. Ela voltou transtornada. Sentou-se no banquinho equilibrando-se com dificuldade. Bebericou a vodka com gelo e começou a chorar.
No balcão do hotel onde estávamos, na Ilha da Comandatuba, onde eu participava de um evento de telefonia celular, só havia três pessoas. Eu, a mulher e um velho bêbado no último banco.
Levantei-me rapidamente e, como bom cavalheiro, aproximei-me dela e perguntei com toda a suavidade possível:
Com licença... (engasguei-me alguns segundos pensando se deveria chamá-la de senhora, que era muito pesado e formal; senhorita, que soava ridículo; ou moça, que pareceu-me vulgar). Decidi chamá-la de lady, que tinha algo de brincalhão, sem deixar de ser elegante:
- Lady, com licença.
Ela voltou para mim aqueles lindos olhos castanhos, molhados de lágrimas e senti uma ponta de hostilidade. Tive impulso de retornar a meu posto, mas algo me segurou. Insisti:
- Com licença, lady. Está com algum problema?
Dessa vez, ela não se moveu. Permaneceu virada para o balcão, dando-me as costas. Volta para seu lugar, eu disse a mim mesmo, ela não quer conversa. Respeita sua privacidade e dor. No fundo, você quer se aproveitar de sua fragilidade emocional para seduzi-la, admiti em silêncio, abaixando a cabeça e iniciando meu retorno.
- Não é nada não.
Parei, subitamente esperançoso, e olhei para a moça, como um vira-lata carente que escutasse um assovio amigável. Isso que eu sou, pensei na hora. Um vira-lata carente. Um funcionário meia-boca de uma telefônica participando de um evento chato num balneário paradisíaco da Bahia.
Desculpa, não quis ser intrometido. É que eu a vi chorando e pensei... bem, pensei que pudesse ajudar em alguma coisa.
- Obrigada por se preocupar. Não é nada.
Ela exibia agora um sorriso fraco, trêmulo, mas um sorriso, e imaginei que isso já era uma pequena vitória. Sorri também e perguntei se aceitava um drink. Ela hesitou alguns segundos, observando-me levemente desconfiada. Empertiguei-me, fazendo a cara mais séria e confiável que pude.
- Tudo bem. Aceito. Só um. Já estou meio tonta.
Ela ficou triste novamente, o que me desconcertou. Sentei-me a seu lado e não falei nada. Ninguém falou nada por bons minutos. O garçom trouxe o drink, ela deu algumas bicadas, em silêncio, e... prorrompeu num choro terrível, convulsivo. Assustei-me. Era um choro estranho, trágico. Continuei em silêncio, perplexo.
- Meu filho! Meu filho!
Ela murmurou baixinho, mas perfeitamente audível. Entendi que alguma coisa grave tinha acontecido a seu filho e estremeci, contaminado por seu desespero. Bebi uns goles de uísque e arrisquei uma outra abordagem.
- Desculpa insistir, mas posso ajudar em alguma coisa?
Ela chorava e murmurava: meu filho, meu filho. Subitamente, inclinou em minha direção e abraçou-me. Permaneceu chorando em meu ombro durante um bom tempo. Eu havia me esquecido do uísque e também chorava.
5 de maio de 2008
Comunhão
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Os melhores caras não são os caras comedores. Os que comem melhor são os que nem sempre comem.
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