8 de abril de 2011

Luto eterno pela inocência perdida




Não tenho o que comentar sobre essa tragédia ocorrida no Rio. Nem acho que existam explicações satisfatórias. Para mim, é algo que emerge lá do fundo negro e diabólico da alma humana. A única resposta para isso é o amor, a arte, o carinho, a poesia. Não adianta culpar os filmes americanos, a internet, a mídia, o governo, a educação. Esses monstros surgem do nada, imprevisivelmente, nas melhores famílias. Nas cidades mais pacatas e nos países mais desenvolvidos. Infelizmente, um deles nasceu aqui.

Evidentemente, muitas besteiras serão ditas. Preconceitos vêm à tôna. Intelectuais darão opiniões apressadas, porque raramente admitem que não sabem, que estão tão perplexos como nós.

Não sei, realmente, o que dizer. Vou arriscar um poema:

nas entranhas, sufocado pelo sangue,
o verme se agita
sem amor, sem compaixão,
ele simplesmente se agita
e talvez gritasse,
se soubesse gritar

é quase isso, porém.
o berro de um verme
preso no meio das entranhas
ensanguentadas de uma criança

uma criança, meu deus,
tão linda como uma praia,
uma manhã de sol
de temperatura amena
e ar úmido
em frente ao mar sereno
o mar azul e livre
livre qual uma criança
sem entranhas
sem vermes
sem vida

falam em religiões,
em deus,
em doenças psiquiátricas,
mas esquecem do principal
das entranhas sujas
e dos vermes
estranhos que nelas
se debatem, ariscos,
quase felizes em sua agonia
de monstros em seu habitat

não haverá mais belas manhãs,
o Rio perdeu sua inocência
o Rio perdeu o amor
o Rio perdeu a esperança

A cidade se debruça
à bordo de suas montanhas,
vomita sobre todos nós
e depois chora
copiosamente.

chores também, você,
a sua vida perdida
o luto eterno
a morte que nos espreita
sem ligar se o dia é belo
ou se as meninas são belas

o rio morreu nesta quinta-feira
baleado na cabeça
por um psicopata filhodaputa
que pagará no inferno
dez milhões de anos
mastigado lentamente pelo próprio chefe
dos subterrâneos incendiados

inconsoláveis
acordaremos amanhã
semimortos
como zumbis,
e perambularemos pelas ruas
vazias de sentido
como quem vagueia
perplexo
por uma cidade destruída por uma bomba
e ainda cheia de radioatividade

vamos dormir então
por uns bons anos
tornarmo-nos alcóolatras
bater em nossos filhos
enganar os amigos
pois a moral e o amor já não tem sentido

expulsamos os anjos
do paraíso,
e os substituimos
por homens cínicos
e armados

as entranhas já estão corroídas
pelos vermes
pela tristeza
e pela maldade

adentremos o inferno,
as entranhas em fogo
o coração frio
sem ouvir os gritos

das crianças

sem ouvir nosso próprio grito
de desespero
e desesperança

mas depois fugiremos
de novo para cima
para a luz
e costuraremos o abdômem
rompido, por onde elas
as entranhas, nos escapavam

e talvez dormiremos
ao ar livre,
o coração batendo muito forte
por causa da fuga
e pela emoção também

de estarmos vivos
e sermos novamente pessoas boas
cidadãos notáveis
que culpam a mídia e o governo
e dormem um sono pesado
após a cachaça da terça-feira

mas acordarás de madrugada
para vomitar
assim como a cidade
vomita sobre você do alto dos picos da tijuca

então pegará os jornais pela manhã
pingando sangue, e na cozinha,
ralando cenoura e cortando o tomate,
esquecerás dos anjinhos
que nunca leram dante
as mocinhas bonitas
que podiam se tornar suas amigas
daqui a alguns anos.

concentrar-te-ás somente na faca
laminando o tomate
lentamente
cruelmente
eternamente.


*


E um pouco de música para relaxar. Escolhi algo que, imagino eu, tem um pouco a ver. Uma música tão linda e tão triste de Jimi Hendrix, O vento chora por Maria. The wind cries Mary.

5 comentarios

Luis Henrique disse...

'Esses monstros surgem do nada, imprevisivelmente, nas melhores famílias.'

Não são monstros, Miguel. São seres humanos com muitas frustrações em suas vidas e que não tiveram oportunidades para apaziguá-las...

spin disse...

Só mesmo assim para vomitarmos tudo isso o que ocorreu: através da arte

Luiz Monteiro de Barros disse...

Obrigado sobre a carta diária “Sobre política cultural e combates”. Também por tantas outras sobre que “os números não mentem jamais”

Ainda bem que tenho acesso a um Gonzum, Tijolaço, Cidadania e outros você sabe.
Esses dias assisto os documentários “Trabalho interno”, “A guerra que você não vê” e outras constatações do Mino, do F.K. Comparato, do Wikileaks sobre ser a midia mais perigosa para a democracia do que governos, para cada vez mais ser difícil se libertar deste truísmo.
Tá muito na cara que vivemos oprimidos pelo sistema reverberado continuamente pelos meios de comunicação. Sempre a volta do mito da caverna.
Por outro lado, encontro aqui um esforço de construir uma estratégia para o estimulo de estarmos no caminho certo.
Se de um lado vemos as vezes, esse debate no lado da esquerda sobre Dilma ter ido a Folha, á Ana ou Hebe ou sobre o voto sobre o Irã meu antídoto é visitar sim o blog do Planalto é lá ver Dilma se encontrar com a UNE, com mulheres escritoras ou cineastas, com mulheres do movimentos de atingidos por barragens. Isso é reconhecer que o caminho está na Educação, na cultura e no atendimento das necessidades básicas ou seja o dístico “País rico” é país sem pobreza.
Então é isso. Lembro de Dilma declarando que lê poesias de Adélia Prado, citada freqüentemente por Rubem Alves, este que considero um filosofo otimista.
Parabéns a todos nós

Anônimo disse...

Estou indo p/ o Rio na Páscoa e já fiz um upgrade no valor do meu seguro de vida.
A cidade (faz tempo) já não é tão maravilhosa assim. Morro que desaba, bueiro que explode e louco armado fodendo com a vida de crianças e seus familiares.
Que Deus me proteja.

Marola disse...

http://osiascanuto.blogspot.com/2011/04/tragedia-em-realengo.html#links

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