16 de abril de 2011

O desejo agora tem horizontes

Ao final de um dos ensaios ou capítulos que compõem o livro Horizonte do Desejo, o cientista político Wanderley Gulherme dos Santos conclui, melancolicamente, que uma das razões pelas quais os pobres brasileiros pouco se mobilizaram, ao longo da história recente, para mudar sua condição de vida, seria o fato de que seus desejos não tinham horizontes. Não havia esperança. Os miseráveis apegavam-se desesperadamente ao fio de cabelo do qual se viam suspensos diante da fome, doença e morte. Os pobres brasileiros seriam extremamente conservadores, no sentido de terem uma enorme aversão ao risco. Mobilizar-se, associar-se, protestar, comporta riscos. O "custo do fracasso" era muito alto.

Publicado em 2006, o livro de Santos, todavia, não oferece uma visão pessimista. Muito pelo contrário, o autor contem-se com dificuldade para não extravasar seu entusiasmo pelos progressos da democracia brasileira. E não só brasileira, mas pelo conceito de democracia, em todo mundo. Quer dizer, não propriamente pelo conceito, mas por sua trajetória real, às vezes oscilante, mas sempre se aperfeiçoando, pressionada pelas forças que ela mesma vai despertando no processo de abertura política. Santos procura analisar a democracia em sua realidade concreta, protagonizada por homens sujeitos a toda espécie de vícios, pois esses homens, mesmo com todos os seus defeitos, vêem-se sujeitos às pressões sociais e dependentes do implacável voto.

As teses de Santos põem em questão o complexo de viralatas que contamina tanto a análise da evolução política nacional quanto a conjuntura partidária contemporânea. No Horizonte do Desejo, assim como em outras obras suas, Santos se dedica a desconstruir os mitos negativos com que a mídia está sempre bombardeando as instituições políticas, sobretudo as brasileiras.

Em primeiro lugar, Santos reitera neste livro a extraordinária ampliação do eleitorado. Na Primeira República (até 1930), menos de 3% da população brasileira tinha direito ao voto. Esse foi um problema nas democracias em todo o mundo, observa o cientista. Nos EUA, na Europa, em toda a parte onde havia eleição, esta continha entraves censitários, ou de qualquer outra espécie, que restringia o direito ao voto a parcelas ínfimas da sociedade.

Em 1945, na primeira eleição após o fim do Estado Novo, o eleitorado aumenta para 16% da população. Mas é somente a partir da primeira eleição realizada após o fim da ditadura militar, em 1986, que o direito ao voto atinge a maioria da população brasileira, 51,8%. De lá para cá, este percentual tem aumentado substancialmente, chegando a 68% em 2002 e hoje atingindo mais de 80% da população.

A população brasileira cresceu, nos últimos sessenta anos, a uma progressão matemática, enquanto o eleitorado, o fez a uma progressão geométrica. Em 1945, tínhamos 7,4 milhões de eleitores. Em 2010, temos 136 milhões. Trata-se de uma verdadeira revolução eleitoral. Não há como deixar de pensar na tese do velho Engels sobre a transformação de quantidade em qualidade, afinal é óbvio que um aumento no eleitorado desta magnitude necessariamente acarreta mudanças profundas na estrutura política nacional, mudanças que exigem novos estudos e novas análises.

Há muitos anos que leio diariamente grande quantidade de material jornalístico sobre política. É incrível que apenas nos livros de Wanderley Guilherme dos Santos veja referências explícitas para essa espetacular evolução eleitoral vivida pelo Brasil.

O crescimento eleitoral apresenta números ainda mais impressionantes nas regiões menos desenvolvidas. Na região Norte, por exemplo, a população cresceu 456% entre 1950 e 1991, mas o crescimento do eleitorado foi de 1.416%! O Nordeste, cuja população cresceu 136% no mesmo período, viu seu eleitorado aumentar em 655%. A população do Sudeste cresceu 178% e seu eleitorado, 649%. Na região Sul, a população cresceu 182% e o eleitorado, 780%. No Centro-Oeste, o aumento populacional atingiu 442% e o do eleitorado, 1.650%.

É interessante também a análise que Santos faz dos partidos políticos:

Talvez o mais sólido estereótipo a propósito da vida partidária-parlementar brasileira refira-se à dogmática asserção de que não existem, em nosso horizonte, partidos dignos desse nome, razão pela qual o Parlamento não passaria de uma arena em que se trocam favores entre grupos localistas e entre a própria Câmara e o Executivo central. Os fatos, outra vez, revelam que os partidos existem, representam interesses bem específicos e, portanto, diferenciam-se uns dos outros, são coesos, disciplinados, estando longe de desperdiçar o total de seu tempo parlamentar em busca de benesses para seus respectivos eleitorados locais.

Arraigado quase que secularmente, o juízo sobre a putativa [suposta] fragilidade e inutilidade dos partidos políticos é improcedente. Já antes do golpe de 1964, os partidos políticos apresentavam substancial dose de identidade ideológica interna, coerência de comportamento e respeitáveis índices de disciplina partidária. (...) Com efeito, pesquisas tendo por objetivo avaliar o grau de plausibilidade do senso comum, que atribui todos os defeitos possíveis ao sistema partidário brasileiro, tem demonstrado o oposto, a saber, que os partidos parlamentares comportam-se de maneira responsável, longe da aleatoriedade que seria de se esperar fossem eles não mais do que agregados de interesses pessoais e particularistas.

(...) Se o comportamento dos parlamentares seguisse estritamente o errático pontual de seus interesses, seria impossível aos poderes executivos construírem coalizões de apoio consistentes a programas de ação.

Certamente, tal como ocorre a todo sistema partidário, os congressistas possuem colégios eleitorais privilegiados e é natural que assim ocorra, pois, afinal, estão lá para representar esses interesses. Nesse sentido, todo parlamento produz uma proporção de leis com caráter distributivo específico, quase estando assinalado o grupo a que pretendem beneficiar. Não é esse, entretanto, o significado da acusação de clientelismo endereçado ao sistema brasileiro. Designam os analistas, com o conceito, um tipo de atitude e ação dos parlamentares exclusivamente orientado por visão limitada e de curto prazo, independentemente dos custos gerais da ação, e sem investir estudo e atenção em matérias que interessam ao bem público. Por definição, um político clientelista é um político que busca explorar a coisa pública em favor de grupos que, em troca, o elegem e reelegem, permanecendo alheio aos problemas coletivos que a comunidade possa estar enfrentando.

Não obstante a capacidade persuasiva do argumento, investigações contemporâneas tem buscado avaliar as provas em que tais argumentos se sustentam, com o surpreendente resultado, para alguns, de que praticamente a metade do tempo e da iniciativa dos deputados é dedicada a promover regulamentos que atendam ao interesse geral da comunidade. Evidentemente, tal como se comportam os políticos em qualquer democracia, buscam também atender às demandas de seu eleitorado principal, pois, repetindo, é, em princípio, para isso que são eleitos, é esse o significado amplo de democracia representativa.

(...) É provável que, se a opinião pública estivesse mais alerta para o que efetivamente significa o Parlamento brasileiro e o papel que tem desempenhado, aí incluídos os partidos que o povoam, com certeza poderia contribuir de modo mais efetivo para o aprimoramento das instituições, as quais, como se sabe, fruto de experimentos humanos, a estes estarão sempre submetidas. (...) [O] Parlamento brasileiro funciona mais ou menos como funcionam imperfeitamente todos os parlamentos (...), mas o público precisa discernir defeitos que se devem, eventualmente, ao parlamento brasileiro, das pecularidades que pertencem à instituição parlamentar viva.

Na conclusão de seu livro, Santos aborda a questão do Estado mínimo, criticando o movimento conservador, o qual não entende que a força do aparato estatal advém justamente para conservar o status quo, visto que a sua diminuição acarretaria desordens sociais e econômicas mais custosas do que um eventual aumento da presença do Estado na sociedade.

*

Encerro este post citando Thomas Hobbes, pensador inglês que Santos nunca deixa de mencionar em seus livros. No capítulo XXVI, da segunda parte de seu Leviatã, Hobbes faz uma curiosa admoestação aos que se arrogam donos da verdade, que se aplica perfeitamente, a meu ver, a nossa mídia corporativa, que se julga sempre muito superior às instituições políticas nacionais:

E também os que têm uma grande e falsa opinião de sua própria sabedoria se atrevem a repreender as ações e a pôr em questão a autoridade dos que os governam, transtornando as leis com seu discurso público, tentando fazer que só seja crime o que seus próprios desígnios exigem que o seja. Também acontece aos mesmos terem tendência para todos os crimes que dependem da astúcia e da capacidade de enganar o próximo, pois imaginam que seus desígnios são demasiados sutis para ser percebidos. (...)

Felizmente, a estratégia, segundo Hobbes, quase nunca dá certo, porque a mentira tem pernas curtas...

de modo que seus crimes redundam em benefício da posteridade, e da maneira que menos teriam desejado, o que prova que eles não eram tão sábios como pensavam. E aqueles que enganam com a esperança de não serem descobertos geralmente se enganam a si mesmos (as trevas em que pensam estar escondidos não são mais do que sua própria cegueira), e não são mais sábios do que as crianças que pensam esconder-se quando tapam seus próprios olhos.

5 comentarios

Anônimo disse...

Dez.

Anônimo disse...

Bom dia, Miguel.

Que bom esse texto, aprendi um monte de coisas.
Além de colocar em palavras várias das minhas inquietações, me leva a considerações ainda novas pra mim.Obrigada Miguel, este blog me ensina muito. Abraços Nora.

Luiz Monteiro de Barros -SB do Campo disse...

Estou comprando pela Estante Virtual. Atenção aquele da Vanessa M. Feletti será meu.Viajo neste sonho que sonhado por muitos se torna realidade. Veja outro dia o economista Ricardo Amorim sendo entrevistado pela TV Camara se saiu com esta "O Brasil é um pais condenado a dar certo" Fui ao site dele para descobrir se era de esquerda ou direita. Não conclui nada. Retive essas palavras que me bastam.
Outro é o Stephen Kanitz ex revista Veja. As vezes fico puto com ele porem sempre tem umas boas analises. Antes mantinha um blog o “Brasil que dá certo” foi o que me atraiu. Hoje só mantêm o blog do Stephen Kanitz.
Esse artigo do Rubem Alves a respeito da mídia impressa também é gostoso de ser lido www.rubemalves.com.br/seraquealeituradosjornaisnostornaestupidos.htm

É muito bom esta sina de otimismo. Vigilante eu sei Fico feliz do Óleo como favorito que visito quase todos os dias. É um site que prova cientificamente digamos esses livros de auto ajuda como o Segredo e Quem somos nós no sentido de Nação e não somente no pessoal

Anônimo disse...

Wanderley Guilherme dos Santos é um dos grandes intelectuais brasileiros da atualidade. Ele pensa o Brasil, a partir do Brasil. Como faziam Alvaro Vieira Pinto,Guerreiro Ramos,Darcy Ribeiro.

Maria Lucia

Marcelo Sevaybricker Moreira disse...

Gostei muito da postagem. Estudei a obra de WGS no meu mestrado e até hoje, após cinco anos de estudo, me sinto estimulado por ela. Grande pensador brasileiro.

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