2 de abril de 2011

Mensalão requentado


(Angústia, por Claudio Goldini
Acrylic on canvas, 1997)

A revista Época se esforçou. A capa desta semana, assinada pelo ex-garoto prodígio da Veja e bolsista do Millenium, Diego Escosteguy, traz aquela linguagem entre barroca e cínica que se tornou marca registrada nas reportagens sobre o mensalão. A matéria, com base no relatório da Polícia Federal enfim concluído, traz uma ou duas novidades, as quais, porém, são tão ansiosa e descaradamente aditivadas com molho velho que perdem todo o sabor. A imagem que me vem é a de uma sopa guardada há semanas na geladeira, a qual lançamos dentro uma cenoura cortada para que pareça fresca.

A escassez de fatos novos no relatório da PF decorre do fato de que o mensalão foi o escândalo mais devassado da história política brasileira. Tivemos várias CPIs, com quebra de sigilos telefônicos e bancários. A imprensa deslocou o grosso de seus efetivos para investigar todos os ângulos do episódio. E a pressão midiático-política da oposição, que chegou a ameaçar a estabilidade institucional, conseguiu, desde o início das investigações, monitorar, vazar e divulgar os resultados parciais dos relatórios da Polícia Federal. Pesquisando rapidamente na internet, descobre-se que praticamente todas as informações apresentadas na matéria já eram do conhecimento público desde 2005, embora sem a credibilidade conferida pela investigação profissional.

Entretanto, o que mais chama atenção na reportagem é sua falta de clareza. O texto lança mão de todas as aquelas velhas estratégias de manipular a informação que vimos tão diabolicamente desenvolvidas no escândalo do mensalão. Existe o ilícito, mas em vez de esclarecer o leitor sobre suas causas, consequências e natureza, a reportagem o confunde, deixando nele apenas um mal estar difuso, uma indignação mal resolvida.

Por exemplo, um trecho da matéria, subtitulado Outras revelações, traz os seguintes quadros:


Temos aí algumas novidades interessantes, que poderiam nos dar uma ideia melhor de onde surgiu o famigerado Marcos Valério, que tinha, segundo a PF, contratos de publicidade com a Petrobrás na era fernandista, e com o governo de Aécio Neves, já durante a era Lula. Mesmo a nota "Lobby no BC", confusa e juridicamente inócua, amarra o Banco Rural ao empréstimo concedido pelo governo FHC ao sistema financeiro, o Proer, através do qual o governo repassou aos bancos o equivalente hoje a mais de 115 bilhões de reais. Ou seja, recheia-se o escândalo da era Lula com maionese tucana.

A matéria inicia com um quadro onde figura aquela linguagem pirracenta que também ganhou notoriedade na cobertura do assunto.



O relatório da PF não prova que o mensalão existiu. Ele apenas confirma o que realmente aconteceu, e que ninguém negou: caixa 2 de campanha eleitoral. Não há, contudo, nos documentos da PF, e quanto mais no trecho sublinhado, qualquer fato comprobatório de que o governo pagou parlamentares para votarem desta ou daquela forma.

O início da matéria, por sua vez, é presunçoso e faz um pre-julgamento:

Era uma vez, numa terra não tão distante, um governo que resolveu botar o Congresso no bolso.

Lendo a matéria até o final, o que vemos é que, ao contrário, o relatório da PF desmente a tese do mensalão, visto que aponta apenas 28 parlamentares como receptadores de recursos de Marcos Valério. Como se pode botar um Congresso de 513 deputados "no bolso" dando dinheiro a somente 28 dentre eles? Sem contar que a maioria pertencia à base governista e muitos receberam quantias irrisórias, como o professor Luizinho, que virou "mensaleiro" após um assessor sacar 15 mil reais do valerioduto.

Outro item nebuloso da matéria, e que a Época, em vez de tentar esclarecer, joga ainda mais fumaça, é a participação de Daniel Dantas. Esse era para ser o grande "gancho" da matéria, ainda mais considerando que falamos de um indivíduo já condenado pela justiça em três países, Brasil, EUA e Inglaterra.

Segundo o relatório, Dantas teria assinado contratos, através de empresas que controlava, como a Telecom, no valor de R$ 50 milhões com empresas de publicidade de Marcos Valério. Meses depois estourava o escândalo do mensalão. A própria Polícia o aponta como um dos principais financiadores do esquema, mas a revista, sempre tão cínica e maldosa, prefere fazer dessa vez uma interpretação cândida, de que "apenas R$ 3,6 milhões" foram efetivamente repassados.

A Época engole todas as pastilhas de LSD de uma vez só e inclui, como que fazendo parte do "mensalão do PT", uma lista de personalidades que receberam dinheiro das empresas de Valério, mesmo que estas pessoas não tenham nada a ver com a campanha política de 2002 (não a campanha petista, ao menos):


  • Pimenta da Veiga, do PSDB, ex-ministro de FHC, recebeu R$ 300 mil
  • Gilberto Mansur, jornalista. 
  • Domingo Guimarães (genro de Marco Maciel).
  • Jaqueline Roriz, deputada (PMN-DF).
  • Mario Calixto (senador PMDB-RO).
Uma das novidades apresentadas como "quentes", e como elo entre o "mensalão" e a campanha de Lula é a "descoberta" que Freud Godoy, ex-segurança de Lula, recebeu R$ 98 mil de Marcos Valério, e que o pagamento se deu para saldar uma dívida que o PT tinha com Godoy por seu trabalho na campanha. Já se sabia que Godoy recebera 98 mil de Valério desde 2006. E não é novidade nenhuma que o "mensalão" foi para pagar a campanha de Lula em 2002, o que na verdade apenas comprova a tese, admitida pelo PT e pelo próprio Lula, que chegou a ir a TV pedir desculpas, de que se trata de caixa 2 eleitoral, e não pagamento de propina a políticos para votarem em favor do governo. 

O interessante é que, à proporção em que se torna cada vez mais claro que o "mensalão" foi um esquema de caixa 2 da campanha eleitoral de 2002, mais a mídia se aferra à tese de "compra de políticos". Não estou diminuindo a gravidade do crime de caixa 2, mas apenas botando os pingos nos is.

Essa matéria da Época não traz nenhuma novidade consistente. Mas tem uma função: tentar ressuscitar o clamor popular, ou pelo menos uma faísca daquele fogaréu que vimos em 2005, e influenciar o voto dos ministros do STF quando estes julgarem o caso este ano.

Reparem nesse trecho:

O mensalão não foi uma farsa. Não foi uma ficção. Não foi “algo feito sistematicamente no Brasil”, como chegou a dizer o ex-presidente. O mensalão, como já demonstravam as investigações da CPI dos Correios e do Ministério Público e agora se confirma cabalmente com o relatório da PF, consiste no mais amplo (cinco partidos, dezenas de parlamentares), mais complexo (centenas de contas bancárias, uso de doleiros, laranjas) e mais grave (compra maciça de apoio político no Congresso) esquema de corrupção já descoberto no país.

Pode-se ver, no entanto, uma mudança no tom da mídia. Se antes ela falava do mensalão com arrogância e sarcasmo, hoje nota-se-lhe uma postura defensiva. A repetição de negativas é de quem teme perder o controle sobre a narrativa desse escândalo, como de fato está perdendo. Ninguém nega o caixa 2. O que vem sendo questionado é se houve compra do voto no Congresso. Como é possível que o governo comprasse o voto de 513 parlamentares? E para quê? Repare que os mesmos inquisidores que mencionam a compra de votos como um crime de gravidade apocalíptica jamais especularam sobre que votações ocorreram no período que justificassem tamanho esforço e risco. E qual o sentido de comprar apoio de deputados que já votavam em linha com o governo? Lembro que alguém fez uma tabela em que mostrava que, durante o período em que os acusados recebiam o dinheiro do mensalão, o índice de vitórias do governo no Congresso na verdade caiu. A informação foi logo abafada, porque ela não ajuda a dar verossimilhança à narrativa midiática.

Outro exemplo de manipulação da mesma reportagem:

A metamorfose ambulante

Ao longo de seu governo, o ex-presidente Lula mudou sua retórica sobre o escândalo. Passou da indignação à negação
"Não interessa se foi A, B ou C, todo o episódio foi como uma facada nas minhas costas" - Lula, em dezembro de 2005, sobre o episódio do escândalo do mensalão

"Mensalão é uma farsa" - Lula, em conversa com José Dirceu durante o café da manhã no Palácio da Alvorada em 18 de novembro de 2010. Na ocasião, o ex-presidente avisou que quando deixasse o governo iria trabalhar para desmontar o mensalão.

Não há contradição entre as duas falas do presidente. Ele nunca negou que houve caixa 2. A "farsa" a que ele se refere (e a revista finge não entender) é a versão segundo a qual o governo subornou parlamentares para impor vitórias no Congresso Nacional.

Minha esperança é que o Supremo Tribunal Federal (STF) julgue os acusados com toda a severidade possível, condenando os réus do mensalão por seus crimes, se entenderem que estes ocorreram, mas que aja com justiça e isenção, sem se deixar levar pelas manipulações de uma imprensa comprometida não com a verdade dos fatos mas com as versões que produziu sobre eles, às quais agora se sente na obrigação de bancar até o fim.