6 de outubro de 2011

Tocqueville e os rancorosos


Terminei finalmente de ler um dos grandes clássicos da literatura política: O Antigo Regime e a Revolução. O autor faz uma avaliação bastante crítica, em vários pontos negativa, da revolução francesa; acho que é um contraponto legal para o livro que pretendo ler agora, do Jules Michelet, que tem uma visão bem mais compreensiva, diria até mesmo amorosa, do evento.

De vez em quando, porém, tomado como que por um entusiasmo a contragosto, Tocqueville faz digressões belíssimas sobre o espírito de justiça e igualdade que produziu e conduziu a transformação profunda que a França, e toda a Europa, viveriam. No último capítulo, onde resume tudo que disse nos anteriores, a conclusão é emocionante, tanto que eu transcrevo neste meu blog de apoio. Acho que esta citação pode servir para me defender dos influxos de violência que se erguem contra este blogueiro, depois da polêmica perigosa em que me envolvi no post anterior, embora os assuntos não tenham absolutamente nada a ver.

Tem uns posts que, antes de apertar a tecla enter, me obrigam a fazer o sinal da cruz, mesmo sendo ateu, porque eu sei que podem enfurecer o dragão da internet. Há oito anos que milito na blogosfera, e desenvolvi um casco bem duro. Mesmo assim, mentiria se dissesse que não fico abalado com a onda de ofensas, muitas delas a nível pessoal, que alguns gostam de fazer. A violência é maior por parte daqueles com menor capacidade de argumentação. A maioria discorda civilizadamente, mas agora, sobretudo no Twitter, há uma fauna de mau-educados que vou te contar. Tem uns que eu considero de má índole mesmo. Gente mau caráter, rancorosa, incapaz de participar de uma discussão sem apelar para baixaria. Ficam atiçando uns aos outros, como um bando de cães raivosos latindo entre si antes de partirem para cima da presa.

No post anterior, eu tinha consciência que estava remando contra a maré. Mesmo assim eu tinha que externar a minha opinião, até porque era uma sequência dos textos anteriores, sobre a polêmica envolvendo o comercial da Hope. O fato de uma maioria ter discordado, porém, não me abala. Um blogueiro que se preza não pode ter medo de multidão. Acho que esse é o momento perfeito para citar a frase de Nelson Rodrigues: "toda unanimidade é burra". Essa frase costuma ser muito mal usada, mas agora encaixa-se maravilhosamente.

Mesmo que eu estivesse errado (e pode ser que eu esteja), é importante que haja sempre um debate, sobre qualquer assunto. No caso, permaneço convicto que tenho uma pitada de razão. Aliás, a reação violenta, brutal, de muita gente, confirmou o que eu pensava: há um clima de linchamento, que é muito diferente de manifestar discordância em relação às atitudes do humorista. Tanto é que o mesmo dragão que soltava fogo na direção do Rafinha, ao notar minha presença em campo aberto, acenando provocativamente, veio também para cima de mim.

Eu vi um montão de comentários pedindo que a Igreja Católica interferisse no assunto, lembrando que a mesma foi bastante ativa nas eleições. Ou seja, em vez das pessoas defenderem uma sociedade mais laica e mais livre, oferecem voluntariamente as mãos para os bispos algemá-las. Falou-se muito em valores da família, o que também me deixou ressabiado.

Na verdade, eu não vi quase ninguém querendo discutir o ponto central dessa história: quais são os limites da liberdade de expressão? Tudo bem, Rafinha falou merda, mas e daí. Quais são os parâmetros constitucionais que nos permitirão botar um humorista na linha? Qual a punição? Quem será o agente repressor?

Logo no início da Eneida, Virgílio escreve: "Tantaene animis caelestibus irae?", que se traduz para "Tanta ira em corações divinos?" Os corações dos internautas não são muito divinos, mas a pergunta vale: para que tanto ódio? Será que essa gente assiste, masoquistamente, ao CQC, só para ficar irritada? Confesso a vocês: eu nunca assisti. Quer dizer, assisti pedacinhos, o suficiente para saber que não é minha praia. Rafinha pode falar a merda que quiser, ser suspenso, demitido, recontratado, o raio que o parta. Não vou entrar em correntes de ódio. Ele pode falar que come a Wanessa Camargo, o bebê e a avó dela. Não estou nem aí. A Wanessa Camargo é uma moça rica que pode muito bem se defender. Se ele falasse assim com uma moça pobre, apareceriam certamente uma pá de rábulas para defendê-la e arrancar umas pratas do imprudente humorista. Ele ofendeu a Wanessa Camargo, não as mulheres em geral. Não vejo razão para transformar o episódio numa torquemada furiosa contra o comediante, nem contra toda uma tradição de humor trash que há muito tempo faz sucesso entre a garotada. Quanto à piada das feias que agradecem aos estupradores, trata-se de uma piada tosca de humor negro, na mesma linha daquelas sobre leprosos. Merece indiferença e talvez desprezo, mas não que seja distorcida numa "defesa do estupro".

A vítima dessa vez foi o Rafinha Bastos, mas muita gente já está com sangue na boca para ir na jugular do Pânico na TV. Daí voltaremos a ter apenas o humor "correto" e convencional da Rede Globo...

O Brasil viveu uma grande revolução social nos últimos anos e uma pequena revolução política na área da comunicação. Será uma pena que imitemos os erros apontados por Tocqueville e, empolgados com o poder popular das redes, implantarmos um novo "terror" contra aqueles que consideramos a aristocracia "podre" do humor televisivo. Ao final, todos serão degolados, inclusive os que hoje pedem a cabeça dos lordes. Os radicais franceses não perdoaram nem Robespierre nem Danton.

Aos que me xingaram e caluniaram na rede, eu só tenho uma resposta: o que vem de baixo não me atinge.

16 comentarios

Reginna Sampaio disse...

"Se ele falasse assim com uma moça pobre, apareceriam certamente uma pá de rábulas para defendê-la e arrancar umas pratas do imprudente humorista" . O que você quis dizer com isso ? Eu , como advogada , fiquei intrigada com isso .

Miguel do Rosário disse...

Quis dizer que ela poderia se defender de uma injúria. Não quis ofender os advogados. Usei a palavra rábula porque é um vocábulo interessante.

João Marcelo disse...

Miguel, tenho quase certo que você apenas provocou, sabiamente o fez, por saber que ser mais um batendo em Rafinha, não acenderia a luz da ribalta, contudo supondo que estou errado, o limite do humorista ficou estampado nos seus lamentos, o que limita o humor é a honra de quem vai ser satirizado, não é humor dizer que sua filha é vadia, que seu filho é ladrão, que sua mulher transa com o porteiro, isso não é humor, isso é agressão a honra e mesmo que o alvo seja uma celebridade, ela não deixa de ser filha de alguém, mãe de alguém e esposa de alguém.

SPIN IN PROGRESS disse...

Dias atrás alguém publicou um comentário sobre a corrupção com o qual não concordei, fiquei p. da vida. Respondi que a questão da corrupção tinha que ser mais genérica e não seletiva. O dono do Face respondeu-me de forma amigável. O artista plástico Edney Antunes, ele me respondeu com um abraço, o que me desarmou. Foi quando percebi que a rede se tornou uma loucura, nós nos digladiamos à toa.

Chanmo a atenção para um detalhe: respeitemos o Miguel, devemos a ele grandes momentos de aprendizado e entrentenimento.

Uma esquerda rancorosa não faz o menor sentido e faz mal à saude.

Vai esta frase que colhi agora no rodapé do spin: Não é o tédio a doença do aborrecimento de nada ter que fazer, mas a doença maior de se sentir que não vale a pena fazer nada.
Fernando Pessoa

jozahfa disse...

Miguel, só uma provocaçãozinha: Senta, então, num formigueiro, procê ver! :)

Juliano Guilherme disse...

briga do Miguel com o Eduardo Guimaraes? Me inclui fora dessa!

Anônimo disse...

Do Zé Augusto, do Blog Os Amigos do Presidente Lula

Geralmente é difícil discordar do que escreve o Miguel do Rosário em seu blog. Mas dessa vez acho que seu post "Em defesa do Rafinha Bastos" rende um bom debate.

Para situar, se é que alguém ainda não esteja sabendo, Rafinha Bastos é aquele humorista do programa de TV CQC, afastado provisoriamente por ter reincidido em piadas infelizes sobre estupro.

Não concordo com o Miguel, em minimizar a ação do indivíduo Rafinha, e direcionar as críticas apenas para as empresas de mídia.

Mas....

Segue link para o texto

http://osamigosdopresidentelula.blogspot.com/2011/10/rafinha-bastos-desafiou-para-um-duelo-e.html

Anônimo disse...

Juliano, concordo, os dois já tiveram brigas homéricas mas na hora do pega prá capar estão juntos isso é o que importa

spin

Anônimo disse...

Volte e meia estas questões incendeiam a blogosfera e a direita cai matando
Até parece que não temos amigos a enfrentar
Aí enfrentamos a nós mesmos

Paulão

Miguel do Rosário disse...

Juliano, não estou brigando com ninguém, muito menos com o Eduardo Guimarães, que ideia! Talvez ele não seja da mesma opinião, só isso.

Paulão, esse fogo é que dá vida à blogosfera. E o objetivo mais nobre da existência de um ser humano, segundo Sócrates, é examinar a si mesmo, numa autocrítica constante para aprimorar-se.

O tema liberdade de expressão é fundamental. E na minha opinião, iremos desmoralizar a nossa justa crítica à mídia se enveredarmos pelo caminho da censura. Uma leitora disse muito bem no outro post: todo humor é negro. É da essência do humor trabalhar as tragédias, os preconceitos, de uma maneira surpreendente, promovendo a catarse. Nem sempre o humorista é feliz. Evidentemente há limites, mas estes limites são às vezes misteriosos e instáveis. Uma coisa que se diz hoje ontem poderia ser inconcebível. E a minha defesa é pela liberdade. Acho que devemos coibir as calúnias e as distorções da imprensa, através da instituição de uma lei mais justa quanto ao direito de defesa. Quanto ao resto, acho que quanto mais liberdade melhor. E liberdade de expressão traz juntos todos esses riscos de ouvirmos o que não gostamos. É normal, portanto, que as pessoas critiquem o Rafinha, mas eu desaprovo essa atmosfera de linchamento e a defesa de restrições ao trabalho de um comediante. Um colega disse aí que ele "não era comediante". Poxa, o cara trabalha como comediante há muitos anos, é um dos pioneiros da nova onda de stand ups. Pode-se não gostar dele, odiá-lo, mas qual o sentido em negar que ele é um humorista profissional. Ontem eu fui a uma festa e conversei com um rapaz de 22 anos, um jovem paulistano, que não me pareceu nem um pouco degenerado, ou maluco, ou mau caráter. Ele disse que já foi em vários stand ups do Rafinha em São Paulo, e que deu muita risada. Disse que ele fala coisas muito mais pesadas do que essas aí que provocaram essa crise. Disse que viu recentemente um vídeo do Rafinha no youtube muito engraçado, etc. Enfim, Rafinha pode provocar profundo desagrado em algumas pessoas, mas agrada outras. Sei que dói para a esquerda ouvir isso, mas tem que ouvir: Rafinha é um trabalhador. Ele é um garoto que veio de uma familia simples do Sul e está ganhando a sua vida.

Outra coisa que as pessoas tem de entender. Alguem por acaso já pensou nas dificuldades de ser humorista em São Paulo? E ainda mais do tipo do Rafinha, que trabalha sobretudo com o improviso. Imagine a pressão psicológica e o risco de ter que se inventar, sem ter tempo para pensar ou refletir, uma coisa muito engraçada. Nem sempre dá certo, obviamente. É muito fácil vir aqui no blog ou no twitter e dizer uma gracinha adequada aos ouvidos de todos, que faça todos rirem e não desagrade a ninguém. Outra é inventar na lata, ao vivo.

Temos que reduzir esses melindres. O Estado tem que investir numa educação de qualidade, inclusive seria necessário uma cadeira só sobre mídia às crianças e aos adolescentes, para prepará-los para serem cidadãos críticos e fortes; para que aprendam a enfrentar, psicologicamente, os absurdos que fatalmente irão assistir na mídia. Mas a liberdade na mídia é fundamental. Se não a defendermos, achando que estamos prejudicando apenas os grandes meios de comunicação, cometeremos um erro terrível, porque a censura se voltará mais tarde, se radicalizada, contra nós mesmos, contra a internet e a blogosfera.

Juliano Guilherme disse...

Falei briga no sentido de debate acalorado. Vocês dois argumentam muito bem e as vezes se atem com certa desmedida a suas argumentações. Em bom português, são teimosos.
Os ditos blogueiros sujos de vez enquando se envolvem em polêmicas que vão além da simples discordância de opinião. Não é caso, ainda bem. Porque aquela história de "feminazi" encheu o saco. Me incluí fora daquilo

Miguel do Rosário disse...

João Marcelo, o humor não costuma respeitar a honra de ninguém. São conceitos diferentes. Existe o humor canalha, o humor negro, mas ainda assim é um tipo de humor e um dos mais populares e antigos. O limite entre humor e respeito à honra está no bom senso do humorista, da maneira com a coisa é dita, do contexto, e sobretudo da maneira como a coisa é interpretada. No colégio, a gente chama uns aos outros de filho-da-puta num sentido engraçado, que era quase uma maneira carinhosa. Um humorista pode subir ao palco e, dentro de um determinado contexto, dizer que "esse Lula é um filho da puta!". Dependendo do contexto, ele pode até estar fazendo um elogio carinhoso ao ex-presidente, no sentido de que Lula foi um cara "fudido de bom", "danado de corajoso", etc.

No caso da Wanessa Camargo, ele foi grosseiro, tanto é que foi suspenso, mas ele não chamou a Wanessa de puta ou nada disso. Não ofendeu a honra dela. Ela foi mau-educado e ofensivo, mas a honra dela permaneceu intocada. Ele falou como um peão da obra falaria. A honra ofendida, deliberadamente, é do próprio humorista, que assim faz piada com seu próprio cafajestismo.

Anônimo disse...

Quais os limites da liberdade de expressão? Não sei. Mas se vale um indivíduo ofender grosseiramente milhões de pessoas através de uma concessão pública, vale milhões de pessoas criticarem um indivíduo usando todos os meios disponíveis. Seria de se perguntar também: o que é um linchamento?

André Martins

Miguel do Rosário disse...

Oi André, está certo. Vale milhões de pessoas criticarem um indivíduo. Valer, vale. É perfeitamente democrático. Mas eu acho uma tremenda perda de tempo. É burrice, além disso, porque dá cartaz a quem você não gosta. E a acusação de "ofender grosseiramente milhões de pessoas" é somente uma interpretação. Nelson Rodrigues dizia que "toda mulher gosta de apanhar, apenas as neuróticas reclamam". A intenção dele era "ofender milhões de pessoas"? Não, claro que não. Era humor.

Anônimo disse...

Miguel,

O Nelson Rodrigues falava para um público muito mais restrito. Mas mesmo assim, as milhares de mulheres que realmente apanham poderiam se sentir ofendidas e cobrá-lo duramente. Creio que a responsabilidade pelo entendimento da mensagem deve ser compartilhada entre o emissor e o receptor.

André Martins

PS: pelo nível dos comentários que seu post recebeu lá no Nassif eu tenho que concordar que o clima na internet não anda bom. Espero que seja algo passageiro, fruto dessa revolução em andamento na comunicação.

Garcez disse...

Miguel do Rosário, seu texto traz uma boa reflexão sobre esse pensamento vigilante-carola que alguns setores da esquerda possuem. Parabéns pelo texto e pelo blog.

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