(trecho da Gomes Freire, Lapa)
(Eis aí outro longo artigo que será publicado na Carioquice, revista pertencente ao grupo Insight, o mesmo que edita a Inteligência. É um texto sobre a história da Lapa e do Rio Antigo. Custou-me alguns meses de pesquisa.)
Se o Rio é uma cidade partida, a rachadura fica na Lapa. Os Arcos, limitando os caóticos subúrbios cariocas e a esnobe zona sul, consolidaram-se, ao longo dos séculos, como o verdadeiro símbolo da cidade, com o qual todos os cariocas se identificam. Os Arcos da Lapa formam o único consenso ideológico do município. Instintivamente, os cariocas procuram, na Lapa, costurar o esquartejado corpo social do Rio de Janeiro. O Cristo Redentor pode ser o símbolo internacional mais famoso, mas o difícil acesso pelo Cosme Velho, o ingresso salgado, o peso turístico, esvaziam-lhe o valor doméstico; é um monumento antes para o mundo do que para os nativos, cuja maioria nasce e morre sem ao menos conhecer-lhe – e sem importar-se grandemente por isso. A estátua do Cristo com os braços abertos tem 78 anos de idade; os Arcos foram inaugurados em 1750.
Tanto o Cristo como o Pão de Açúcar (para citar apenas os principais), mesmo para quem pode pagar, continuam monumentos turísticos; os Arcos, por sua vez, integram a rotina do carioca. Não é preciso ser boêmio para passar por baixo dos Arcos várias vezes por ano – já que as ruas Riachuelo e a Mem de Sá formam o entroncamento mais importante entre zona sul, centro e zona norte.
O urbanista italiano Aldo Rossi, em seu livro A Arquitetura da Cidade, observa que a cidade é sintese de uma série de valores; o espaço político por excelência; uma idéia; a cidade é, por si mesma, depositária da história, a memória coletiva dos povos, e os bairros, segundo a morfologia social, seriam unidades morfológicas, com tendência a se especializarem em determinado tipo de serviço, a cumprir funções específicas para este organismo vivo e inquieto, a metrópole.
A literatura especializada cita as “áreas de transição”, que aureolam os centros históricos das cidades, como portadoras de valores e características similares em toda a parte. Em geral, compõem anéis urbanos decadentes, infestados de lúmpens, vagabundos e oportunistas. Há bairros parecidos em Nova York, Chicago, Tókio, Londres. No Rio, rodeando o centro, temos a Lapa, de um lado, e o Santo Cristo, de outro. Apesar dos sobrados caindo aos pedaços e do calçamento em petição de miséria, seria injustiça, todavia, aplicar integralmente a teoria das zonas de transição para a Lapa; pois, à diferença de outras grandes cidades, onde as elites logo migraram para áreas suburbanas, abandonando o centro às classes mais baixas, o Rio viveu uma situação inversa. Até a década de 40, as elites continuavam se concentrando em áreas próximas ao centro, e mesmo depois, elas custaram a se afastar, protagonizando um distanciamento vagaroso, a contragosto.
Este amor das elites pelo centro do Rio teve consequências importantes para o país. As reformas de Pereira Passos, realizadas de 1903 a 1906, que incluíram a demolição de 641 prédios coloniais e a abertura da Avenida Central (hoje Rio Branco), além da reforma do porto e abertura da Avenida Beira Mar, custaram quase metade do orçamento da União de um ano fiscal inteiro, de acordo com Maurício de Abreu, autor da obra “A Evolução Urbana do Rio de Janeiro” (Jorge Zahar, 1987). O dinheiro veio do governo federal, na época comandado por Rodrigues Alves, que obteve autorização do Congresso para pedir emprestado 8,5 milhões de libras esterlinas aos banqueiros Rothschild and Sons, de Londres.
Mas talvez a palavra amor não seja adequada, ou então se tratava de um amor bastante autodestrutivo, visto que, poucas décadas depois, quando os edifícios de lindas fachadas artísticas (selecionadas em disputado concurso público), construídos ao longo da recém inaugurada Avenida Central, ainda eram novos, iniciou-se nova fase de demolição, destes mesmos edifícios, para a construção dos arranha-céus que hoje lá vemos.
A Lapa viveu seus anos dourados em meados do século XIX, quando a instalação da Corte portuguesa nas adjacências da Praça XV galvanizou o centro com o charme da monarquia e o dinheiro dos senhores de escravos. Em 1821, relata Abreu, 13 anos após a chegada da família real ao Brasil, o Rio ainda é uma cidade modesta, pequena, abrangendo, grosso modo, somente o espaço entre as praças XV e Mauá. As demais freguesias eram predominantemente rurais. A partir desta data, entretanto, continua Abreu, as classes dirigentes começam a dar preferência, para instalarem suas residências, de um lado, às áreas próximas à atual Igreja da Candelária (junto ao porto, na Praça Mauá), e, de outro, nas ruas recém-abertas da atual Lapa – a Inválidos, a Lavradio, a Resende e a Mata-Cavalos (hoje Riachuelo). Alguns, com maior mobilidade (ou seja, mais dinheiro e tempo), preferiam as terras situadas ao sul, os atuais bairros do Catete e Glória, seguindo os passos da rainha Carlota, que morava em Botafogo. Este movimento culminou com o estabelecimento do Catete, bairro imediatamente vizinho à Lapa, como o centro político e administrativo da nação brasileira, quando o governo instalou a sede da Presidência da República no Palácio do Catete.
As demais classes (continuo citando Abreu), com reduzido ou nenhum poder de mobilidade, e não podendo ocupar os terrenos situados a oeste da cidade, devido à existência do Saco de São Diogo, na atual Cidade Nova e Praça XI, onde hoje fica a sede da prefeitura, adensavam-se cada vez mais em freguesias vizinhas, especialmente nas de Santa Rita e Santana, dando origem aos bairros da Saúde, Santo Cristo e Gamboa.
A Lapa continuaria colada às artérias principais da economia da capital federal por muitos anos. Na segunda metade do século XIX, o Rio passou por diversos surtos de industrialização, com o surgimento de pequenos e numerosos estabelecimentos, sediados quase sempre no centro da cidade, dedicados à fabricação de calçados, chapéus, roupas, bebidas e mobiliário. Eram indústrias com baíxíssimo grau de mecanização, verdadeiros artesanatos, absorvendo, consequentemente, grande quantidade de força de trabalho. A Lapa, que integra o centro, interagia intensamente com este processo, especializando-se nos setores mais avançados: gráficas, tipografias, metalurgia leve.
Essa vitalidade econômica patrocinava uma grande intensidade cultural e boêmia. Os famosos “malandros da Lapa” eram os trabalhadores que viviam à sombra dessa fartura, realizando pequenos “bicos” ou esposando algumas das milhares de mulheres empregadas nessas indústrias. Os sindicatos de hoje não cansam de citar o poder aquisitivo dos trabalhadores cariocas no início do século, quando o salário mínimo correspondia, em valores corrigidos, a cerca de R$ 1.500,00. O Rio era servido por excelentes e abundantes escolas públicas, onde estudaram filhos de lavadeiras, como Machado de Assis, que adquiriam noções sólidas de cultura universal.
Em geral, o próprio centro histórico das cidades se notabiliza como área boêmia. É assim em Buenos Aires, em Londres, em Paris. No Rio, com os tolos decretos-lei, ainda vigentes, que praticamente criminalizaram-no enquanto espaço residencial, o centro histórico se tornou quase uma cidade fantasma à noite e nos finais de semana. E a Lapa, onde existe alta concentração populacional, é seu oposto: tem uma vida noturna intensa, 24 horas, todos os dias da semana.
Até meados do século XIX, a riqueza do Rio superava, de longe, a de estados gigantescos como Minas Gerais e Rio Grande do Sul, e emparelhava com o estado de São Paulo. O “ouro negro” que mais tarde refundaria o estado de São Paulo em novas bases econômicas e industriais, ocupava quase todos os vales do rio Paraíba do Sul, que corta longitudinalmente o estado do Rio, empregando milhões de escravos e trabalhadores. Essas fazendas irão entrar em processo falimentar após a lei Áurea, liberando uma grande masssa de mão-de-obra negra, necessária para suprir a demanda criada com os intensos surtos industriais que o Rio experimenta antes e depois da virada do século. Até hoje, a população da Lapa é predominantemente negra – tornando-se, por isso, o bairro preferido pelos imigrantes de Angola.
Com a industrialização e a invasão de gente preta, a Lapa deixou de ser um bairro desejável pelas elites, que o abandonaram para sempre. Em meados do século XX, é estabelecido tacitamente que as famílias decentes deveriam morar distantes da Lapa. Naquele momento, a Lapa experimentou o seu verdadeiro nascimento enquanto bairro boêmio, onde trabalhadores e empresários iriam gastar seu dinheiro, juntos, nos cabarés.
A migração das elites para a zona sul, ou para alguns bairros da zona norte (como Tijuca e Vila Isabel), fez os preços dos aluguéis despencarem na Lapa, abrindo espaço para a chegada de estudantes, jornalistas e modestos funcionários públicos. Até hoje, os aluguéis na Lapa estão entre os mais baixos do Rio de Janeiro, inclusive comparado a lugares afastados do subúrbio. Muita gente tinha preconceito de morar na Lapa, cujo nome era associado a imagens profanas e à degradação moral.
A vida noturna se intensificou com a instalação de gráficas modernas e jornais nas redondezas (Correio da Manhã, Tribuna da Imprensa, O Globo), que empregavam enormes contingentes de trabalhadores, os quais, após o serão junto às impressoras, espaireciam nos bares das redondezas, além dos jornalistas e repórteres, que ali trocavam idéias sobre as eternas crises políticas. Hoje as gráficas (que ainda existem) não tem tanta importância econômica para o Lapa, mas o bairro ainda recebe, com destaque para a noite de sexta-feira, as milhões de pessoas que trabalham no centro.
A boemia lapiana, nas primeiras décadas do século XX, era chic. Num prédio junto ao beco do Rato, Manuel Bandeira manteve, por muitos anos, sua garçoniére, para onde conduzia suas amantes. Era o tempo de Madame Satã e suas brigas cinematográficas, nas quais destruía bares inteiros e espancava, sozinho, dezenas de adversários. Foi na Lapa que Augusto Frederico Schmidt, mescla de empresário, boêmio, poeta e editor, perdeu os originais de “Caetés”, primeiro romance de Graciliano Ramos, após uma noitada, só os encontrando meses depois, quando o editor, desesperado, imaginava-os perdidos para sempre.
Os principais responsáveis pela destruição criminosa do patrimônio arquitetônico do Rio Antigo, notadamente de seu centro histórico, foram governos autoritários. O primeiro grande vilão chama-se Henrique Dodsworth, nomeado prefeito por Vargas em 1937, após o golpe do Estado Novo. Dodsworth já se tornara conhecido do público carioca por ocasião da demolição do morro do Castelo, da qual foi defensor entusiasta. Até hoje arquitetos, entre eles Sérgio Poggi de Aragão, do BNDES, perguntam-se que razões culturais e ideológicas levaram autoridadades, com beneplácito da imprensa, a destruirem tão apaixonadamente o nucleo histórico do Rio de Janeiro.
Esse clima de demolições e autoritarismo refletia-se no bairro boêmio, que ingressou num longo período de decadência e obscuridade. Na década de 60, o governador do Distrito Federal, Carlos Lacerda, decidiu realizar uma série de intervenções urbanísticas na área junto aos Arcos da Lapa, e dezenas de sobrados históricos foram implacavelmente destruídos.
O progressivo afastamento da praia foi outro fator que prejudicou o bairro. Antes da reforma de Pereira Passos, que realizou um primeiro aterro, a Rua Joaquim Silva terminava numa murada que dava numa belíssima vista da baía de Guanabara. Mesmo com a construção da Praça Paris, a praia continuava próxima, bastando contornar a praça e se debruçar sobre a recém-inaugurada e charmosa Avenida Beira Mar, ornada com árvores frondosas e postes elétricos trabalhados artisticamente. O aterro do Flamengo, levado a cabo por Lacerda, afastou definitivamente a Lapa do litoral. Mas não sejamos tão ranhetas, já que o bairro tornou-se vizinho de um dos mais belos e extensos parques urbanos do mundo.
Carlos Lessa, autor de um dos mais completos e apaixonados livros sobre o Rio de Janeiro, o “Rio de Todos os Brasis”, explica-nos a reviravolta urbanística mais significativa ocorrida na cidade: o centro do Rio, por séculos debruçado sobre o mar, voltou-lhe as costas. Os aterros sucessivos produziram um primeiro afastamento: a construção de avenidas de alta velocidade, um segundo: a ruptura total aconteceu com a construção de viadutos elevados, sobretudo a Perimetral. Esta última, do ponto de vista viário, foi muito útil para a cidade; para avaliar seu efeito estético sobre o centro, porém, devemos imaginar o que aconteceria se o mesmo viaduto fosse construído diante da praia de Copacabana.
Somando o descaso com a poluíção progressiva da baía de Guanabara, que se acentuou muito a partir da década de 60, nota-se que o centro da cidade, aí incluindo a Lapa, o constructo que simbolizava a principal referência ideológica do município, deixou de ser interessante às classes dominantes. As principais ruas da Lapa - Inválidos, Resende, Lavradio - foram abandonadas pelo poder público e privado, deixadas inclusive sem serviços constantes de lixo e com suas redes de esgoto comprometidas pela falta de conservação; disso resultou brutal processo de desvalorização dos imóveis (muito dos quais, abandonados pela falta de condições de pagar o imposto predial, foram invadidos por “posseiros”), apenas revertido nos últimos anos, com a retomada dos investimentos comerciais e imobiliários na Lapa, uma história sobre a qual iremos discorrer agora.
A última onda de revitalização da Lapa coincide com o tempo em que o autor destas linhas mudou-se para lá. Em algum dia do ano de 1999, entrei, pela primeira vez, num conjugado minúsculo da Rua da Lapa. Cito as razões que me levaram a morar na Lapa porque elas foram, provavelmente, as mesmas que produziram sua revitalização. Era uma das áreas com aluguel mais baixo no município (mais barato, inclusive, que muitos bairros do esnobado subúrbio carioca); era próxima ao centro, onde eu trabalhava; e estava ao lado dos bares que eu frequentava, na Joaquim Silva.
Nesse ano ainda não haviam sido inaugurados nenhum dos barzinhos da moda de hoje. Todos eles têm menos de dez anos; a maioria, menos de cinco; muitos foram abertos no ano passado. Em abril deste ano, Kadu Tomé, dono do Bracarense, legendário ponto-de-encontro da boemia do Leblon, abriu o Será o Benedito?, um bar com desenho arrojado e proposta ambiciosa, na Rua Gomes Freire 599.
A quantidade de gente que passa pela Lapa todas as noites, com destaque para as sextas-feiras, merece o respeito e atenção dos estudiosos de fenômenos urbanos e sociais, além, é claro, dos escritores, sempre atentos aos movimentos da boemia, mormente quando adquirem o vulto e a qualidade que atingiram na Lapa. Veteranos do bairro dizem que a Lapa vive o seu melhor momento da história, melhor mesmo que os famosos anos 20 e 30, tempos de Madame Satã e Manuel Bandeira. Naqueles tempos, havia cabarés frequentados por gente rica e elegantes casas de prostituição, mas não tinha a vitalidade popular de hoje. A Lapa é atualmente um dos maiores concentradores - regulares - de gente do mundo ocidental. Uma noite comum de sexta-feira, na Lapa, reúne centenas de milhares de pessoas, esparramadas pelas ruas Joaquim Silva, Mem de Sá, Riachuelo, Lavradio e Gomes Freire.
Mas volto ao ano de 1999, quando a Lapa não reunia multidões. Ainda era um bairro maldito e ainda existiam bordéis, já muito decadentes, na Rua Mem de Sá. O Circo Voador e o Asa Branca eram as únicas casas de show, sendo que o Circo permaneceu fechado de 1996 a 2004, consequência de um imbroglio entre o prefeito Luiz Paulo Conde e banda Ratos de Porão.
Nos anos seguintes, a revitalização da Lapa se daria de maneira inteiramente espontânea, sem nenhum investimento público ou privado. A Rua Joaquim Silva foi literalmente tomada por pessoas de todas as partes da cidade, e por dezenas de vendedores ambulantes. Logo surgiram iniciativas populares para trazer música aos frequentadores. No auge da Joaquim Silva, por volta de 2002 ou 2003, havia cerca de oito pontos de música na rua: 1) os roqueiros, que improvisavam um palquinho no bar junto aos Arcos; 1,5) ainda em frente aos Arcos, mas do outro lado da rua, funcionava o Semente, que se tornou célebre por reunir os maiores nomes do chorinho carioca; 2) uma rodinha de samba no botequim ao lado; 3) a turma do hip-hop organizava disputas musicais na esquina com a Travessa Mosqueira, as caixas de som no meio da rua; 4) um estabelecimento, no quarteirão seguinte, especializou-se em forró, cobrando ingresso a preços módicos; 5) mais adiante, um espaço dedicado exclusivamente ao reagge, com entrada gratuita; 6) no bar conhecido por Bar do Seu Cláudio, ocorriam rodas de samba altamente profissionais, na calçada; 7) Mais adiante, mais rock ao vivo, no meio da rua, num palco cercado por cordinhas; 8) finalmente, ao longo da escadaria dos azulejos, paravam diversos grupos – entre eles muitas comunidades hippies - em volta de violeiros que tocavam Raul Seixas. A droga preferida era a maconha, usada e abusada em toda a parte, particularmente nas rodas dos violeiros.
Essas verdadeiras festas públicas, comparáveis talvez ao que pode ter ocorrido no Central Park, nos anos 60, ou indo mais longe, às festas sagradas das cidades gregas, não duraram, todavia, muito tempo. Autoridades e imprensa não viam com bons olhos aquela agitação. Não havia grandes investimentos privados, o Estado prosseguia ausente e a área, chamada por alguns de “República da Lapa”, exercia um fascínio subversivo que incomodava os “homens de bem”. Enfim, um belo dia, o jornal O Globo publicou um reportagem bombástica. A matéria, em linguagem de denúncia, informava que as pessoas cheiravam cocaína sobre as mesas, e o uso de maconha era liberado. Foi a senha para se acabar com a diversão. No dia seguinte, a Joaquim Silva encheu-se de policiais. Proibiu-se o comércio ambulante – que depois voltou, como sempre. As noites voltaram ao normal – a Joaquim Silva voltou a ser o ambiente sórdido, escuro, frequentado por marginais, conforme vinha sendo há décadas. Essa luta contra a Joaquim Silva durou anos. Os artistas populares tentavam voltar, mas a repressão constante acabou com todas as manifestações culturais instaladas na rua. A maioria dos bares recém-abertos foram fechados pela prefeitura. E a Joaquim Silva morreu de novo. Nos anos seguintes, a rua renasceria, embora sem o glamour e a febre de antes, perdendo terreno para a Rua Mem de Sá, que passou a atrair o público mais “interessante”, ou seja, com maior poder aquisitivo. Hoje a Joaquim Silva compõe uma das zonas “populares” da Lapa, onde ainda predomina o comércio ambulante, com o surgimento de depósitos que vendem bebida a preços mais baixos. Os ambulantes, por sua vez, criaram uma associação, muito atuante, vinculada a diversos vereadores, que negocia patrocínios e parcerias diretamente com fábricas de bebida e distribuidoras.
A “vanguarda boêmia” migrou para a Mem de Sá, para os quarteirões situados entre os Arcos e a Gomes Freire, onde surgiram dezenas de barzinhos. A atmosfera subversiva da Lapa esvaneceu-se. Os “barzinhos cariocas”, que se proliferaram em São Paulo nos anos 90, chegaram ao Rio, num troca-troca curioso. A tendência atual é essa: bares que mesclam a inventidade e a espontaneidade cariocas com serviços e preços de São Paulo. Todas as franquias de bar instaladas na zona sul abriram suas filiais no bairro. O capitalismo contemporâneo, enfim, engoliu a Lapa, e parece ter gostado do sabor. Os intelectuais da Escola de Frankfurt adorariam analisar esse fenômeno. Os nostálgicos daquela Lapa subversiva de outrora se apertam nos raros barzinhos do bairro onde o preço da cerveja ainda não incorporou o ágio dos novos investimentos.
A inauguração de um enorme edifício da Justiça do Trabalho, na Lavradio, somou-se ao aumento do número de funcionários da Petrobrás e do BNDES, cujas sedes situam-se ali perto, na Avenida Chile, criando um importante público de alto poder aquisitivo para os comerciantes da região. As construtoras notaram o filão e a Klabin Segall abriu caminho, lançando um enorme condomínio tipo classe média na Rua do Riachuelo, a dois quarteirões dos Arcos. Reza a lenda que os 688 apartamentos ofertados foram vendidos em duas horas, com o projeto ainda na planta. Na esquina da Inválidos com a Relação, há outro grande condomínio sendo construído, com recursos do fundo de funcionários da Petrobrás. Esse tipo de empreendimento, normal em outros bairros do Rio, não aconteciam há uns 30 anos na Lapa.
A entrada de capital, todavia, não aniquilou totalmente a espontaneidade lapiana. O bairro é grande. Surgem novas periferias. Fora dos corredores da moda, encontram-se botequins tradicionais, frequentados por seus clientes de sempre. Há muita energia adormecida sob as ruas centenárias.
O bairro, entretanto, ainda carece de muitas reformas. Os serviços da prefeitura permanecem precários. Há montes de lixo por toda a parte. Na rua do Resende, todos os bueiros estouram regularmente, gritando por uma reforma sanitária que deveria ter sido feita há décadas. O Instituto Médico Legal continua na Mem de Sá, apesar da promessa do governador Sérgio Cabral de transferi-lo para São Cristóvão (onde já se construiu um prédio para abrigá-lo, na Francisco Bicalho). A esperança dos moradores e dos que amam a Lapa é que, com a chegada de gente com mais mais influência junto à Secretaria de Receita Tributária, a prefeitura e o estado tratem o bairro com o carinho que ele merece.
Afinal, o que é a Lapa? Qual o seu significado para o Rio de Janeiro, para o Brasil? Reunindo dezenas de milhares de pessoas todas as semanas, oriundas de todas as regiões da cidade e de todas as classes sociais, é óbvio que o lugar concentra uma intensa vitalidade democrática. Arrisco-me a afirmar que, na Lapa, germina a ideologia, ainda em formação, ainda obscura, que os brasileiros desejam forjar para si mesmos. Os candidatos já perceberam isso e, em épocas de eleições, realizam campanhas noturnas no bairro, distribuindo santinhos e conversando com seus frequentadores. A vanguarda musical do país continua passando por suas casas de show. Artistas plásticos continuam abrindo ateliês e galerias no bairro. Enquanto as noites de Paris e Londres terminam às duas da manhã, esta é a hora em que as coisas começam a acontecer no bairro boêmio. Renascesse na Lapa, o grego Anacreonte, um dos fundadores da lírica (leia-se boemia) ocidental, ver-se-ia bem à vontade para recitar seus versos: “sempre que bebo o alegre vinho, bem a meu gosto, em taça grande, minha alma simples se expande, ao som dos coros jovens, com prazer!”