30 de junho de 2009

Boa sorte, Honduras

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(A foto acima tem a função de usar a beleza para expurgar o blog das influências tóxicas do post anterior)


Esse tipo de golpe bananeiro desnorteia qualquer um, não apenas pelo fato em si, terrível, mas sobretudo pelo rastilho de reacionarismo histérico que se acende em todo o continente. São minorias, mas obtêm enorme visibilidade, porque sua ideologia está enraizada no espírito da elite encastelada nos medios. Todos os grandes jornais brasileiros relativizaram o golpe; criticam-no como que a contra-gosto, por causa da reação internacional; e todos, invariavelmente, põem parte de culpa na vítima, no presidente preso em sua casa às cinco horas da manhã e deportado para fora de seu país. A máscara democrata da mídia brasileira agora caiu de vez, mostrando sua carantonha golpista.

Desejo coragem aos hondurenhos, para enfrentar o que talvez seja uma das últimas batalhas pela consolidação de um espírito democrático autêntico na América Latina. Esses golpistas massacram a Constituição com o dedo apontado em parágrafos e cláusulas constitucionais. Ignorantes, que não conhecem a filosofia do direito. A justiça não está na Constituição, mas nos homens, porque são os homens que escrevem as Constituições. Não se aprende a ser bom e justo decorando a Constituição e sim entendendo a si mesmo e ao mundo. Numa democracia, o princípio basilar da justiça está no homem e em suas opções soberanas. Se o povo quer mudar a Constituição para poder reeleger um presidente mil vezes, e daí? As cidades-estado gregas mudavam de constituição frequentemente, às vezes adotando as leis mais estranhas, como aquela de Sólon, patriarca da democracia ateniense, que condenava todo cidadão que não tomasse partido.

O que permanece são os Princípios Fundamentais, que repito aqui:

TÍTULO I
Dos Princípios Fundamentais

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

I - a soberania;
II - a cidadania;
III - a dignidade da pessoa humana;
IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;
V - o pluralismo político.

Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.

Art. 2º São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;
II - garantir o desenvolvimento nacional;
III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;
IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Art. 4º A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios:

I - independência nacional;
II - prevalência dos direitos humanos;
III - autodeterminação dos povos;
IV - não-intervenção;
V - igualdade entre os Estados;
VI - defesa da paz;
VII - solução pacífica dos conflitos;
VIII - repúdio ao terrorismo e ao racismo;
IX - cooperação entre os povos para o progresso da humanidade;
X - concessão de asilo político.

Parágrafo único. A República Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações.


*


A justiça não está no papel, na Bíblia, num Alcorão qualquer misterioso, passível de interpretações duvidosas. Com alguma imaginação e técnica sofística, pode-se encontrar justificativas para assassinatos e estupro na Constituição. A justiça está em como entendemos e interpretamos a Constituição. Se alguém usa a Carta para, sem o devido direito à defesa, sem nenhum julgamento honesto e transparente, mandar prender um presidente da República eleito pela vontade soberana do povo, e deportá-lo para fora do país, é porque perdeu o juízo.

Afinal não somos governados pela Constituição, mas pelo juízo. As Constituições são um esforço das sociedades em produzirem leis que sejam as mais justas possíveis, mas é evidente que a imperfeição do homem o impede de criar leis perfeitas. No decorrer dos séculos a experiência fornece dados que nos permitem formular leis melhores. Não é por outra razão que elegemos, a cada quatro anos, 513 deputados federais e 81 senadores, para estarmos sempre atualizando as leis.

Desde que se tornou independente, o Brasil já teve oito constituições. Todas eram consideradas "sagradas" e todas contêm graves problemas. O poder não está, portanto, na Constituição. O poder emana do povo. Por isso, dos três poderes que constituem a república, a presidência é o mais importante, porque é o único constantemente julgado pelo escrutínio popular, pelo sufrágio universal. Deputados e senadores são votados apenas por seus conterrâneos de província. O presidente da república é votado por todos os brasileiros, ou por todos os hondurenhos. O presidente não está acima da lei, naturalmente, mas o Judiciário, que passa ao largo do sufrágio popular, também não. Não esqueçamos que nas democracias antigas, ateniense e romana, os juízes também eram escolhidos pelo povo.

Eu falo tudo isso apenas para derrubar o principio de qualquer argumentação constitucional. Mas não é o caso. O golpe de estado em Honduras foi um crime constitucional em todos os sentidos. Não se pode julgar um tema político com base em apenas um parágrafo ou outro da Constituição, e sim no todo, na íntegra do texto constitucional. Não fazer isso é realizar uma argumentação juridicamente debilóide. É evidente que esse golpe de estado violou centenas de leis hondurenhas. É absolutamente inconstitucional, em qualquer país democrático do mundo, permitir que o Exército derrube um presidente desta maneira, sem direito à defesa, na calada da noite.

A democracia tem uma longa e dolorosa história de lutas, onde não guerrearam apenas homens, mas também idéias. A vitória dos gregos sobre os persas, no século V antes de nossa era, significou o triunfo de uma idéia, da idéia democrática, que supunha a participação cidadã nas lutas de sua cidade e no debate político interno. Uma vitória do bom senso simples e democrático do pensamento grego, sobre o misticismo sofisticado, sedutor e pavorosamente oligárquico dos soberanos autocráticos da Ásia.

Esse espírito democrático é desafiado a cada vez que ocorrem golpes como esse, em Honduras. Ele - o espírito da democracia - ainda não conseguiu se restabelecer dos ferimentos sofridos nas últimas décadas. Nos anos 60, uma onda hedionda, sinistra, coesa e poderosa, de reacionarismo e totalitarismo político, esmagou a América Latina de ponta a ponta. Esses golpes aqui e ali (Venezuela e agora Honduras) são espasmos deste Leviatã nojento que dominou o continente por tantos anos, e que ainda não está morto totalmente. Como guerreiros liliputianos prosseguimos enterrando nossas lanças sobre o gigante odioso. Um dia ele morre. Tem de morrer.

29 de junho de 2009

Denúncia: Veja incita de golpe de Estado

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Eu gostaria de saber se é constitucional pregar um golpe de Estado no Brasil, como fez Reinaldo Azevedo, blogueiro da Veja. Registro aqui - antes que alguém queira esconder esse fato - para a história saber quem foi quem. Depois desta, por favor, queiram dar aos esgotos o destino que merecem. Parem de dar qualquer ibope para imbecis e golpistas desta laia. Reparem no primeiro comentário publicado no blog dele. Em muitas democracias ocidentais, esse tipo de brincadeira é considerado crime grave. Cliquem para ampliar.

O link está aqui:
http://veja.abril.com.br/blog/reinaldo/geral/o-brasil-e-os-militares-ou-honduras-como-metafora/







E, no último quadro, a posição do presidente da república do Brasil publicada no mesmo site que abriga o Esgoto. Também para registro histórico.



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Há tempos que percebi a debilidade mental de Reinaldo Azevedo. Por trás de toda aquela empáfia pseudo-erudita, esconde-se um fascistazinho chorão e safado. Não vale a pena nem que prestemos atenção. Abri uma exceção hoje porque se trata de uma denúncia muito grave. No ragionam di lor, ma guarda e passa, dizia o velho Dante, referindo-se aos condenados tão medíocres, que nem o inferno se dignava recebê-los. Não pense neles, apenas olha e passa.

O que me deixa pasmo é a falta de paixão por parte de jornalistas e editores. Onde está a indignação? Onde está a ênfase? Onde estão as histórias em detalhes sobre as prisões, os fechamentos de rádios, canais de TV? Onde está a dramaturgia jornalística? Não haviam ficado horrorizados com o Irã? Ué? Grande democratas. De um lado apóiam manifestantes que protestam contra sua própria derrota nas urnas, de outro escondem os protestos, muito mais sérios, contra um GOLPE DE ESTADO num país vizinho, num continente terrivelmente traumatizado por esse tipo de acontecimentos. Depois vem pregar democracia em Cuba... É... Fidel deveria ter se lançado a presidente no tempo de Fulgêncio Batista... Uma democracia em Cuba seria sólida, não? Ninguém tentaria golpe de Estado em Cuba, né? Cuba seria uma linda e próspera democracia nos anos 60 e 70, né? Que nem o Brasil, né?

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E neste exato momento, o Globo, em vez de dedicar reportagens mais aprofundadas para explicar aos brasileiros os fatos históricos que acontecem num país vizinho, fatos que motivaram reuniões de todos os presidentes, da OEA, da ONU, o Globo noticia a multidão na porta da casa de Michael Jackson. E fala da morte do primeiro brasileiro com gripe suína, sem enfatizar a notícia mais importante, de que a letalidade da doença caiu para 0,4% no mundo, e está em 0,17% no Brasil. Ou seja, o porquinho perdeu a agressividade e se tornou uma gripe quase convencional.

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Finalmente deram um quadro, de 2 minutos, sobre Honduras. Dedicaram muito mais tempo aos fãs do Michael Jackson, que morreu semana passada. Não falaram da greve geral.

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São mesmos uns golpistas filhos-da-puta.

Licença para trabalhar

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(Belo edifício da Lapa)

Pois é, meus amigos. Eu ainda chego lá, mas por enquanto esse blog não bota comida na mesa. Mesmo recebendo algumas contribuições de vez em quando, preciso arregaçar as mangas em outras searas para pagar as contas. Semana passada estive em Varre Sai, município do interior fluminense, para fazer uma matéria sobre os cafeicultores de lá [para quem não sabe, eu sempre fui jornalista especializado em café], e agora peguei um trabalho de tradução bastante pesado que vai me consumir 30 a 40 dias. Serei obrigado a interromper minha boa vida de tardes na biblioteca nacional, lendo Faulkner e pesquisando o histórico golpista da imprensa brasileira. Mas tá ótimo. É um trabalho para o qual serei muito bem pago, e que me permitirá, após esse período, voltar aqui com mais auto-confiança. Tenho a impressão que, apesar de numerosas exceções (incluindo eu mesmo), a falta de dinheiro mina o humor, a serenidade e a fé em si mesmo, prejudicando gravemente a visão de mundo do sujeito. Malcolm X estava certo. O negro precisa, sobretudo, conquistar a independência econômica. O negro somos todos nós, que não nascemos em berço esplêndido e lutamos pelos raios do sol.

Um amigo sugeriu que eu fizesse pequenos posts diariamente. Não é meu estilo. Posso até tentar, mas acho difícil (para isso existe o Twitter). Eu preciso de MUITO tempo para escrever um post, e gosto de me aprofundar, em detalhes, em cada assunto, oferecendo uma interpretação mais universal ao que, à primeira vista, é visto como banalidade. Preciso de sentimento, tranquilidade, inspiração. Não é nem tanto a questão de tempo, mas de estado de espírito, que por sua vez demanda tempo. Não é viadagem. É o que é. Quando eu tento fazer de outro jeito, quase nunca não dá certo.

Eu gostaria de comentar uns trezentos assuntos, a maioria relacionada aos barbantes ideológicos com os quais os brasileiros, candidamente, amarram seus próprios pés e mãos! Fica pra depois. O que me consola é perceber que a blogosfera tupi chegou à idade adulta. Não há mais, como há poucos anos, apenas pós-adolescentes alienados praticando perseguições ideológicas e ostentando erudição de cartão de crédito - esses blogs ainda existem, mas foram engolidos pelo amadurecimento recente de centenas de outros.

A blogosfera se tornou uma força irreversivel e avassaladoramente revolucionária. Ganhou em quantidade, qualidade, profundidade. Leiam Nassif. Leiam Eduardo Guimarães. Leiam o Idelber. Leiam o Azenha. E tantos outros, listados ao lado, com RSS ou sem RSS. Ah, e posso aconselhar uma excelente receita de paz espiritual? Não leiam jornais. Vejam filmes, leiam livros, naveguem pelos blogs, andem de bicicleta, bebam cerveja, façam filhos, estudem filosofia, assistam novela, mas, se quiserem ser mais felizes e mais fortes, parem de se intoxicar com essa porcaria inaudita que é a imprensa brasileira.

A blogosfera proporcionou um espaço de respiração, onde milhões de brasileiros podem encontrar o bom senso e a honestidade que falta na grande mídia. Acredito que já nas próximas eleições, a blogosfera representará uma tribuna fundamental para defesa da soberania e dos ideais humanistas. Existe ainda, no Brasil, um setor político que tenta associar avanços sociais e aperfeiçoamentos do Estado a regimes totalitários, fechados, passadistas, fingindo não ver o que foi realizado em toda a Europa, Japão e inclusive nos Estados Unidos pré-Ronald Reagan, onde se reuniram vastos programas de proteção social com amplos e democráticos investimentos do Estado na economia.

Peço, portanto, um pouco de paciência com este blogueiro incapaz de fazer muitas coisas ao mesmo tempo.

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Também tenho um Twitter, que nesses momentos de pouco tempo para escrever é ótimo como válvula de emergência. Aliás, já comecei a postar mais por lá.

http://twitter.com/migueldorosario

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Por fim me despeço com uma música para deixar a todos bem animados.

18 de junho de 2009

Os platinados e as contradições anti-iranianas

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(esquina da Rezende com Gomes Freire, Lapa.
No prédio azul fica a sede da União da Juventude Socialista)


Daí que o Globo (e creio que seus primos paulistas enveredam pelo mesmo caminho) mergulhou de cabeça na campanha patrocinada pelo lobby armamentista para demonizar o Irã. Obama terá trabalho pra segurar o chifre desse touro brabo. Até aí eu entendo. Desde sua fundação, o Globo é cupincha servil dos interesses americanos, que os Marinho sempre colocaram muito acima dos interesses nacionais. O engraçado, e infantil, dessa história, é a tentativa de meter o Lula no imbróglio. Na terça ou quarta-feira (dia 16 ou 17 de junho), a primeira página da seção Mundo trazia um manchetão dizendo que o presidente brasileiro apóia Ahmadinejad, o mandatário iraniano reeleito com uma vitória esmagadora nas eleições realizadas semana passada. Manchete mentirosa, como sempre. Lula apenas dissera que as manifestações de rua no país eram choro de derrotados, e que não havia provas de fraude. Ora, é a pura verdade.

Não tenho nenhuma predileção por Ahmadinejad, embora eu confesse que estou quase chegando ao ponto em que tudo que o Globo diz que é bom, eu acho o contrário. Se o Globo é contra o Ahmadinejad, eu sou a favor. Do jeito que a coisa vai, em breve será muito fácil ter uma opinião política: ler o jornal de cabeça pra baixo. Bem, isso é ironia, desculpem-me.

Os platinados voltam à carga hoje. Só por ter feito observações lógicas sobre a necessidade de se respeitar um processo eleitoral, Lula virou o maior apoiador mundial de Ahmadinejad. É sempre assim. Todos os demônios (na opinião do Globo) do mundo são aliados de Lula. Em tudo de mal que acontece no planeta, lá está o dedinho do (ex)barbudo. Daqui a pouco vão dizer que Lula é culpado pela morte daquele jornalista da Folha, assassinado esta semana por Obama durante uma entrevista para a televisão. Vocês viram que espetáculo? Obama matou a mosca! Mas o PIG nacional irá dizer que foi o sapo (ex)barbudo que esticou sua língua, lá do outro lado do mundo, para apanhar o inseto.

Ahmadinejad foi eleito democraticamente em sufrágio universal. Alguém contestou a primeira eleição? Não, né? Ora, um presidente eleito uma vez com enorme vantagem sobre o adversário pode ser eleito uma segunda sobre outro concorrente. Se houve fraude, as instituições iranianas irão dizer. Não é grupinho de Twitter com alguns milhares de seguidores que decide eleição num país com 70 milhões de pessoas.

Um colunista americano, em artigo traduzido e publicado no Globo, disse que o Facebook do adversário do Ahmadinejad já tem 50 mil participantes, e que isso encheria qualquer "mesquita". Oh, que sociologia profunda! Alguém deveria avisar a este senhor que a comunidade brasileira Leu na Veja, Azar Seu! tem 60 mil participantes, a comunidade Eu Odeio Acordar Cedo tem 3,8 milhões de participantes, e ninguém cogita dar algum valor eleitoral a isso.

Se o adversário de Ahmadinejad não confia nas instituições democráticas iranianas não deveria ter participado do pleito. A sua atitude radical de, desde o início, negar o resultado, me soou extremamente golpista e antidemocrática. As pesquisas de intenção de voto sempre apontaram o atual presidente como favorito. Por que o espanto em torno do resultado?

A mídia brasileira, em vez de atacar gratuitamente o governo iraniano, deveria procurar informações sobre a metodologia usada nas eleições do Irã, para que pudéssemos ter alguma idéia sobre a veracidade das acusações de fraude. A diferença em favor de Ahmadinejad foi brutal, então a fraude teria que ser brutal. Quando o atual presidente do México ganhou as eleições sobre o candidato de esquerda por uma margem de apenas 1%, e milhares de mexicanos foram às ruas protestar, não vi mídia dar nenhum destaque ao fato. Eu mesmo não vi o protesto mexicano com bons olhos. Protesto de perdedor não vale. Se a sociedade não confia nas instituições democráticas de um país, que vá às ruas antes do pleito, pedindo auditorias independentes e observadores internacionais. Aliás, queria saber isso. Houve observadores internacionais no Irã? A mídia não informa nada. Aqui no Rio, milhares de gabeiristas foram à Cinelândia protestar contra a derrota de seu candidato nas últimas eleições municipais- palhaçada de elite arrogante que não admite perder. Diante do que li sobre a divisão classista iraniana, suspeito de um fenômeno similar.

Entretanto, o fato do Irã ter aceito fazer a recontagem é um excelente sinal. Caso a vitória seja confirmada, quem irá pedir desculpas ao mal causado à imagem das instituições iranianas e suas autoridades, acusadas de desonestidade?

Ah, morreram seis pessoas durante os protestos. É uma lástima. Mas a polícia de São Paulo mata algumas dezenas de pessoas por semana e a mídia não fala nada. Jovens protestam pacificamente contra a presença da polícia na USP e a mídia os chama de baderneiros. Já os jovens iranianos que protestam, esses são verdadeiros democratas. As imagens da TV e as reportagens informaram que os jovens que protestavam contra os resultados estariam quebrando lojas, bancos e patrimônio público. É uma hipocrisia inacreditável que a mídia agora defenda um tratamento carinhoso a esse tipo de atitude.

Sobre a repressão ao uso de internet no Irã, trata-se de uma agressão terrível à liberdade de expressão, mas essa é uma realidade em dezenas de outros países africanos e asiáticos, cujos governos se consideram desestabilizados por campanhas políticas patrocinadas por interesses externos. O Irã, pelo menos, tem eleições e sufrágio universal, à diferença da Arábia Saudita, do Paquistão e da China. É muito engraçado que a mesma mídia que tanto barulho fez contra a criação do blog da Petrobrás, que calunia sistematicamente a blogosfera brasileira, e que tenta inclusive aprovar leis anti-blogs, converta-se agora em defensora dos blogueiros iranianos.

Lula está certíssimo em apoiar o processo eleitoral iraniano. É prova de respeito aos Princípios Fundamentais da Constituição Federal brasileira, Artigo 4, Capítulos III e IV, que falam da autodeterminação dos povos e da não-intervenção. É obrigação de qualquer autoridade que se pretenda seguidora dos princípios mais elementares da diplomacia e do direito internacional dar a presunção de inocência e idoneidade ao processo eleitoral iraniano. Se houver fraude comprovada, os mandatários devem protestar, naturalmente, mas cabe às instituições iranianas resolver o caso. Não havendo fraude comprovada, deve-se o respeito à decisão soberana do povo iraniano em reeleger Ahmadinejad.

Enquanto isso, Cora Ronai, em sua coluna de hoje, afirma que, "assim como todos os brasileiros", sentiu vontade de se enfiar embaixo do sofá de tanta vergonha, ao assistir Lula defender as eleições iranianas. Ora, em primeiro lugar, desconheço o fato da população brasileira estar tão interessada no que acontece no Irã; em segundo lugar, Lula tem popularidade de 84% no Brasil, então não tem ninguém com "vergonha dele"; em terceiro lugar, Lula é, junto com Obama, o presidente mais prestigiado do planeta, tendo sido, semana passada, aplaudido de pé por seis vezes seguidas, durante uma convenção de direitos humanos da ONU. Do que eu tenho vergonha, senhora Cora Ronai, é de encontrar textos tão mal escritos como os vossos num jornal tão (infelizmente) lido pela classe média fluminense. Se a senhora tivesse realmente vergonha de alguma coisa, deveria guardá-la para sentir quando entendesse melhor o papel que teve o jornal para o qual a senhora trabalha na preparação do golpe militar que massacrou a democracia brasileira.

16 de junho de 2009

Notas sobre a Ditabranda

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(Gomes Freire, Lapa)



Dedico esse post àquele jornalista da Folha, com sobrenome de bicho fofinho, que admitiu sofrer falhas de memória.

Conforme já mencionei aqui, há muitos anos frequento a Biblioteca Nacional, que além de abrigar a maior variedade de livros do país, possui uma coleção microfilmada de todos os jornais brasileiros, de todos os tempos. As épocas que mais me interessam pesquisar, naturalmente, são aquelas de grande comoção nacional e por isso tenho fuçado sobretudo os meses de agosto de 1954, e março e abril de 1964.

Esta semana, passei uma tarde pesquisando as edições de março e abril de 1964 do jornal Folha de São Paulo, e topei com editoriais e notícias que, senão me causaram nenhuma surpresa, forneceram-me algumas peças para o quebra-cabeças que venho montando há tempos, tentando compreender um pouco mais a história contemporânea brasileira.

Por que houve um golpe militar no Brasil? Esta é uma questão que não pode, definitivamente, ser respondida com um dar de ombros. Quando se fala na importância da educação, costuma se omitir que educação não é ensinar aos brasileiros quem foi Pedro Álvares Cabral. Por trás, e acima, de qualquer boa vontade em melhorar o quadro educacional deve haver uma incessante produção de conhecimento.

No Brasil, existe a mania, um tanto tola e arrogante, de se distribuir títulos de ignorância e "semi-analfabetismo" a torto e direito, mas parece que poucos se dão conta do fato de que, se a ignorância é um defeito, este é um defeito que não se restringe aos conhecimentos sobre a língua portuguesa, mas também à história do país.

Devemos urgentemente, portanto, incluir nos acontecimentos de 1964 um ator político fundamental. Não se trata de culpar a mídia por tudo. Ao contrário, trata-se de lhe dar o status e o prestígio - para o bem e para o mal - que ela merece. Ela foi, afinal, um dos atores mais importantes da cena política que se descortinava e não se pode representar Othelo sem o personagem Iago. Os jornais eram tão cruciais nos anos 60 porque não havia uma tv relevante, as rádios eram fragmentadas, e não existia internet. A imprensa escrita constituía a grande, e única, tribuna política do país. Quer dizer, a imprensa não era apenas uma tribuna; era um Tribuno; os jornais brasileiros, como aliás seus congêneres em todo o mundo democrático ocidental, tinham opinião própria, muita opinião, sobre os fatos políticos.

Até aí tudo bem. Ocorre que em março de 1964, os jornais brasileiros deixaram de ser meros agentes de opinião (conservadora, católica, colonial, golpista) para se tornarem protagonistas naquele que certamente foi o mais terrível, o mais faccioso, o mais perverso crime jamais perpetrado contra o espírito de união nacional, contra a justiça, contra a democracia, contra a paz, contra a moral, contra nossa inocência e cordialidade, enfim contra todos os valores importantes por trás de uma nação como o Brasil.

Para começar, não éramos uma ditadura como a que existia em Cuba, com Fulgêncio Batista; nem uma autocracia medieval, como havia na Rússia cezarista. O Brasil possuía, em 1964, uma das democracias mais avançadas do mundo; aos trancos e barrancos, vinha se desenvolvendo a um ritmo invejável, a nível cultural, acadêmico, industrial, artístico, educacional, econômico, político. O Brasil havia produzido Guimarães Rosa, Glauber Rocha e Chico Buarque, apenas para citar três símbolos de uma cultura da qual parecia jorrar tanto entusiasmo e genialidade.

A academia brasileira vinha experimentando, por sua vez, um grande momento. O estereótipo do estudante sessentista, visto como baderneiro revolucionário e maconheiro, é injusto e preconceituoso. Tínhamos jovens estudiosos e politizados. O "engajamento" político dos anos 60 era autêntico, generoso, verdadeiro, criativo. O jovem que hoje participa de "micaretas", lá atrás, estudava Marcuse, Nietszche e escutava Ismael Silva.

Quando abordamos o golpe militar, portanto, esse ato de barbárie que violentou um momento histórico tão importante, tão delicadamente belo e poderoso, é preciso analisar, atentamente, esse contexto.

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Então lá estava eu, numa tarde fria de junho de 2009, espiando o microfilme de edições antigas da Folha. Em março de 1964, o jornal dos Frias divulga uma notinha cultural interessante: jovens roqueiros ingleses são a nova sensação na Inglaterra; os Rolling Stones, com idades de 19 a 22 anos, parecem substituir os Beatles nas paradas de sucesso.

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Desde o final da II Guerra, quando a guerra fria ganha força no mundo, as notícias internacionais que chegam às redações brasileiras são publicadas com todos os filtros ideológicos impostos por Washington. O golpe de Estado contra Árbenz, na Guatemala, em 1954, por exemplo, assume ares de legalidade. A mesma coisa vale para a derrubada do regime democrático em Cuba, por Fulgêncio Batista.

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A leitura da Folha de 1964 esclareceu um ponto para mim. As três personagens políticas mais importantes para a preparação e realização do golpe de Estado foram os governadores de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais: respectivamente, Ademar de Barros, Carlos Lacerda e Magalhães Pinto. Ademar entrava com dinheiro, Lacerda com um discurso incendiário e terrorista, Magalhães com os tanques de guerra.

A Folha reproduzia o terrorismo lacerdiano com uma placidez cúmplice apenas comparável à tolerância e pusilanimidade com que a Europa deixou Hitler crescer e rearmar a Alemanha. Infelizmente, os microfilmes da Biblioteca Nacional não estão digitalizados, o que permitiria uma reprodução fácil na internet. Mas eu fiz algumas anotações. O mais impressionante, de longe, é o discurso de Carlos Lacerda, muito parecido ao terrorismo esquizóide e delirante de um Olavo de Carvalho.

Lendo a Folha, pode-se constatar que o plano dos golpistas consistia nos seguintes pontos:

1) Associar o governo ao comunismo e à ilegalidade.
2) Causar a impressão de perigo imediato para as instituições.
3) Criar a impressão de que eles, a oposição conservadora, tinham imenso apoio popular.

As eleições presidenciais aconteceriam em 1965. Goulart e todos os seus aliados não faziam a menor menção de mudar isso. Nem lhes interessariam mudar. Lacerda, no entanto, lançava diariamente a suspeita de que as eleições não ocorreriam e que Goulart tentaria se "perpetuar no poder". Lacerda pinta uma imagem cada vez mais diabólica do presidente Goulart, como se ele fosse um perigossíssimo comunista russo infiltrado no governo para derrubar a democracia brasileira. Aliás, quando o golpe ocorre, os jornais divulgam a seguinte afirmação de Lacerda: "A ditadura russa foi derrubada!" Podem rir.

Vejam o que Lacerda afirmava que Goulart faria nos próximos meses. A citação é textual (inclusive com itens numerados):

"1) Substituirá a Constituição por outra.
2) Dissolverá o Congresso Nacional.
3) Fará plesbicitos autoritários [essa é boa, héin?! Plebiscitos autoritários! Podiam ter ensinado essa ao Stálin, héin?]
4) Associação crescente entre comunismo e negocismo [!!!!!!!!!!! Não me perguntem o que é isso!]
5) Desmoralização das forças armadas.
6) Transformação do presidente em caudilho. Não haverá mais eleições.
7) Destruição da livre-iniciativa e sua substituição por um dirigismo incompetente e desvairado, logo substituído pelo controle totalitário de todas as atividades nacionais, inclusive o controle das consciências."

Esse era o Lacerda, "o bom administrador". A imprensa publicou esses tópicos sem permitir nenhuma resposta "do outro lado", e, o pior, sem criticá-los; ao contrário, chancelava-os em seus editoriais, conforme se verá logo a seguir. Detalhe: o governo vinha negando veementemente esse tipo de acusação. Mas como negar "boatos" sem base nenhuma na realidade? Lacerda nem ninguém apresentava qualquer prova de suas acusações insanas. Mas pra que provas, quando se tem apoio midiático?

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Pois bem, faltava apagar a impressão de que a oposição ao governo Goulart se restringia a uma elite retrógrada e diminuta. Começam os preparativos para a MARCHA DA FAMÍLIA COM DEUS PELA LIBERDADE. Essa marcha será fundamental para a deflagração do golpe militar, porque sinaliza, junto à cúpula militar e política que o organizava, que havia uma quantidade considerável de gente, ao menos no Rio e São Paulo, chancelando o discurso midiático-conservador.

Os jornais passam a publicar, diariamente, em letras garrafais, manchetes como: AUMENTAM O NÚMERO DE ADESÕES À MARCHA EM DEFESA DA CONSTITUIÇÃO; ou MAIS DE 300 MUNICÍPIOS DE SÃO PAULO ENVIARÃO ÔNIBUS; e tantas outras. Os governos de SP, Minas e Rio participavam ativamente da organização do evento, cedendo empregados e recursos financeiros.

A Folha divulga ainda um comunicado da FIESP, orientando seus filiados a que liberassem seus empregados durante a tarde do dia da manifestação, e mesmo que fechassem os estabelecimentos.

Depois disso tudo, ocorre a manifestação, com a presença de meio milhão de pessoas (segundo os jornais, o que me faz pensar na metade disso), e daí edições inteiras dos jornais são dedicadas ao evento. Os editorais repetem sempre a mesma ladainha: de que havia sido um evento "espontâneo". Sim, espontâneo... Os patrões "orientando" a presença de seus empregados na passeata, os jornais convocando a população... Tão espontâneo...

"Aquele mar humano formou-se espontaneamente, pelo natural".

"E formou-se de súbito, quase por milagre, ao simples apelo de um grupo de mulheres e organizações femininas".

"Nada de especial, nenhuma preparação psicológica."

Enquanto isso, Lacerda afirma, na mesma edição, que: "O sr.João Goulart é um fascista a serviço do comunismo", e "teremos guerra civil no Brasil a continuar a conspiração dos porões do palácio do presidente".

*

Por curiosidade, confiram um dos gritos lançados pela multidão, na tal Marcha da Liberdade, segundo reportagem da Folha:

"Basta! Basta! Basta!"

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E o jornal, não contente com uma manifestação tão deliciosamente "espontânea", também incita as Forças Armadas para que restabelecessem a ordem. Publicam isso com todas as letras.

*

Trecho do editorial da Folha do dia 20 de março de 1964:

"Nossa opinião

O povo
mesmo, não um ajuntamento suspeito e longamente preparado, reuniu-se espontaneamente, nas ruas desta cidade para exprimir seu sentimento e sua vontade. Foi uma dura lição para aqueles que necessitam de demorada propaganda, manipulação de cúpulas e tremendos dispositivos de força para concentrar massas humanas."

A quem o editorial se referia? Claro! Aos trabalhadores e estudantes, cujas manifestações, segundo a Folha, eram "longamente preparadas" e necessitavam obrigar as pessoas a participarem delas através de "tremendos dispositivos de força".

*

A Folha noticia que Lacerda se reúne, a portas fechadas, com Ademar de Barros e Magalhães Pinto. Eles realizam "conversas sigilosas", diz o jornal no dia 26 de março. Uma semana depois, ocorrerá o golpe.

*

Por fim, uma pérola editorial lida uma semana antes do golpe militar:

"A última moda, entre os que refletem o pensamento do governo federal, é apregoar a necessidade de 'democratização da imprensa'".

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Vale lembrar que os estudantes organizados, ou seja, a UNE, que era muito forte na época, assim como os sindicatos, apoiavam o governo Goulart. Realizavam manifestações constantes de apoio ao presidente. A mesma coisa vale para diversas categorias militares de baixa patente, que se sentiam exploradas e humilhadas pela alta oficialidade. Ou seja, quando Miriam Leitão escreveu, em meados de 2006 ou 2007, que a UNE era "rebelde a favor", tentando desmoralizar a entidade por apoiar o governo Lula, ela distorceu a história. A UNE foi contra a ditadura, claro, e pagou caro por isso; o mais importante a ser lembrado, porém, é que a UNE alinhava-se ao governo Goulart, porque tinha visão estratégica de que, diante da alternativa udenista reacionária, ele representava um tremendo progresso.

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Acontece o golpe. No dia seguinte, a Folha de São Paulo reproduz mensagem do governador Ademar de Barros: "o governador Ademar de Barros qualificou de ex-presidente da República ao sr. João Goulart".

Muitas outras "mensagens" de Ademar de Barros são obedientemente reproduzidas pela Folha. O tal criticismo político da Folha, pelo jeito, nunca ocorreu junto a seus governadores. A "mosquinha" não costuma pousar em nenhuma sopa servida no Palácio dos Bandeirantes...

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Editorial do dia 2 de abril de 1964, dia seguinte ao golpe:

"Não houve rebelião contra as leis, mas uma tomada de posição em favor da lei. Assim se deve enxergar o movimento que empolgou o país (...)"

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No dia seguinte, 3 de abril, novo editorial justificando o golpe:

"O Brasil continua

Voltou a nação, felizmente, ao regime de plena legalidade que se achava praticamente suprimida nos últimos tempos do governo do ex-presidente João Goulart".

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No mesmo dia (03 de abril), o DOPS, uma espécie de BOPE de SP, invade a faculdade de filosofia da USP e dissolve uma reunião de estudantes na base da porrada. Um fotógrafo da Folha presente (segundo nota da própria Folha) levou uma cacetada na nuca e foi preso com os estudantes. Foi liberado horas depois, sem os filmes, e com alguns ferimentos na cabeça.

Mesmo com seu próprio repórter espancado pela polícia, a Folha não faz nenhum comentário crítico.

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Dessa vocês vão gostar. Capa da Folha de São Paulo do dia 3 de abril de 1964:

"Petrobrás sem nenhum comunista: 'limpeza'".

O militar indicado para comandar a Petrobrás informa aos jornais que irá realizar uma "limpeza" ideológica na estatal, demitindo sumariamente qualquer pessoa com suspeita de ligações com os "comunistas".

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Os EUA felicitam o novo governo. Um secretário de Estado dos EUA anuncia que "será aumentada a ajuda financeira ao Brasil".

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A Fiesp comunica, pelo jornal, suas congratulações aos vitoriosos do golpe. A Folha noticia que o Brasil terá novas eleições em uma semana; que essas eleições serão "indiretas"; e que haverá um "candidato único", o Sr.Castello Branco, festejado pelo jornal como excelente nome para chefiar o Brasil. Quanta democracia! Quanta legalidade!

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Chefes militares declaravam aos jornais (que haviam se tornados verdadeiros boletins de guerra pró-ditadura, com gráficos e tudo) que estavam preparados para enfrentar qualquer reação ao golpe. Isso me fez pensar que o Brasil escapou (se é que tem sentido falar em escapar, neste caso) de uma guerra civil que poderia destruir o país, matando centenas de milhares, talvez milhões de pessoas. Por alguma razão, felizmente (e aqui novamente, temos uma palavra um tanto dúbia), isso foi evitado. Mas não se pode diminuir a gravidade do fato. O castigo deve ser aplicado tanto ao homem que tenta estuprar uma mulher como àquele que efetivamente o consegue. E quando falo em castigo, não penso em pôr fim à Anistia, e sim realizar um julgamento moral da história da ditadura brasileira, e discutir isso na televisão, nas revistas e nas escolas. Anistia serviu para perdoar juridicamente os funcionários públicos que participaram de arbitrariedades, mas não significa que devemos esquecer ou abafar o debate público necessário sobre o significado moral da ditadura, apontando, corajosamente, culpados e inocentes.

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Mudando de assunto, pero no mucho. A culpada pelos problemas de Simonal não foi a esquerda, e sim a ditadura militar, que fazia todos desconfiarem de todos, e criou um clima sufocante e totalitário no país, não dando espaço para nenhum tipo de "concessão" ou "tolerância" política por parte da intelectualidade e da classe artística. A culpa, repito, recai sobre a ditadura, e sobre os órgãos de imprensa que tanto a ajudaram a preparar o golpe militar que derrubou um presidente eleito democraticamente, substituindo-o por generais corruptos, reacionários e incompetentes.

12 de junho de 2009

Pancadaria "legal" e troco político

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(trecho da rua do Rezende, próximo à esquina com a Mem de Sá)


A pancadaria na USP gerou uma controvérsia muito interessante. Uma minoria barulhenta e sabichona se levantou em favor da atuação da polícia militar de São Paulo. Sempre com argumentos "técnicos" ou "jurídicos", pretendem impor sua opinião acima de todo o bom senso. Não importam as dezenas de relatos de professores, estudantes e funcionários agredidos brutalmente. Os "defensores" da pancadaria têm dois objetivos bem claros:

1) Conferir um ar de legitimidade "democrática" ou "legal" à agressão policial contra estudantes, trabalhadores e professores que realizavam manifestação pacífica, num ambiente pacífico que, nunca, antes da ditadura militar, fora invadido pela PM.

2) Eximir de responsabilidade o Executivo paulista, responsável direto pelas ações da Polícia Militar.

Vale tudo para cumprir esses objetivos. Quando lhes faltam argumentos, lembram fatos totalmente externos ao caso em questão, na tentativa de embaralhar a polêmica. Usam sofismas de baixíssima qualidade, embora eficazes, que comparo a defensivos agrícolas altamente tóxicos, que efetivamente matam as pragas que atrapalham o desenvolvimento das plantas, mas que também as impregnam com substâncias que irão contaminar o solo, os lençóis d'água e os consumidores.

Esses que justificam a pancadaria se acham muito espertos, mas, com sua tática, apenas colaboram para a destruição das forças políticas que defendem; as quais, sentindo-se "defendidas", não corrigem seus erros e continuam tropeçando politicamente, e cavando as suas próprias covas eleitorais.

Observo, nestes momentos, a tentativa de apequenar o próprio fato de existir uma luta política e partidária, quando ela é a própria razão de ser da democracia. O que não se admite, todavia, é o uso arbitrário da violência! Os europeus fazem greves monumentais, param trens, aeroportos, fábricas, escolas, mas os governantes nem cogitam em usar força policial contra os manifestantes. Sarkosy, presidente linha-dura da direita francesa, vem enfrentando greves terríveis na França, mas consegue contornar dialogando, ou não-dialogando, mas não é louco de permitir que suas forças de segurança brutalizem trabalhadores.

Aqueles que tentam eximir o governador José Serra das responsabilidades usam todo tipo de subterfúgio. Dizem: se o Lula não tem culpa da corrupção nos Correios, então Serra não tem culpa da pancadaria na USP. Palavras são realmente promíscuas, aceitam ser manuseadas por qualquer um. Esse é o preço de uma democracia. Temos liberdade, mas a liberdade pode ser tão ou mais manipulada numa democracia quanto numa ditadura.

Não falamos aqui, enfim, de corrupção, seja nos Correios ou no Metrô de São Paulo. Exemplos de corrupção, nós sabemos, abundam em todas as esferas do poder. Estamos falando de uma política de segurança deliberadamente brutal, arbitrária e antidemocrática.

Por acaso, é a primeira vez que a polícia de São Paulo comete arbitrariedades? Nos últimos anos, temos assistido, estarrecidos, as forças paulistas de segurança adotarem procedimentos verdadeiramente hediondos no tratamento de situações de conflito social e trabalhista. E sempre contra o povo. Sempre contra o lado mais fraco.

Parece-me que o governador de São Paulo optou seguir as tendências ideológicas mais odiosamente reacionárias, e a única explicação que encontro para atitude tão suicida do ponto-de-vista eleitoral é o fato d'ele acreditar no acerto de suas decisões por conta do apoio que recebe de setores da elite econômica e da mídia corporativa. Quando, além disso, blogueiros simpáticos colaboram nesta operação de "blindagem" política, eles ajudam a produzir um monstro político, descolado da opinião pública verdadeira. O que será preciso acontecer mais? Será necessário morrer um estudante? Morrer um professor? A morte de trabalhadores simples, por outro lado, parece não comover o grande público paulista...

Não consigo acreditar que trabalhadores e estudantes da universidade mais concorrida do Brasil sejam figuras tão perigosas cujas manifestações precisem ser reprimidas pelas forças de segurança com bombas de gás pimenta e balas de borracha.

O sacerdote ético-midiático, o Dr.Roberto Romano, não tem nada a dizer sobre o caso?

Impressiona-me, no entanto, como a mídia pode aceitar, submissamente, que o governador não manifeste, de forma bastante clara, a sua opinião sobre o tema. Nem ele, nem o secretário de Segurança, nem o secretário de Educação. Os colunistas da grande imprensa também parecem querer deixar o tema passar em branco...

Como assim? Aceitaremos agora que governantes mandem a polícia entrar nos campus universitários e espancar estudantes e professores? Até onde vai o sabujismo?

Não estou entendendo. Leio as colocações de quem defende a atuação da polícia e não consigo ver outra coisa se não um cinismo desvairado. Como alguém pode defender que professores idosos sejam mal tratados por quem lhes deveria tratar com infinito respeito? Como se pode tratar um caso desses como quem discute "firulas" jurídicas?

Sobre as responsabilidades de Serra no caso, o que importa aqui é notar que nem o governador nem nenhum secretário seu CONDENOU a atitude da polícia, tampouco indicou que haverá qualquer punição aos responsáveis pelo incidente; com isso, Serra chama a si a autoridade pela invasão, prisão de grevistas e espancamento das pessoas.

Voltando à questão partidária, admito que não sou simpático ao governador Serra. Mas tenho mil outras preocupações, e não perderia algumas horas do meu dia dos namorados escrevendo sobre o caso se não o achasse realmente preocupante para o futuro da democracia brasileira. Esses blogueiros que procuram minimizar a gravidade ou as responsabilidades nessa pancadaria realmente acreditam que é assim que devemos tratar greves e conflitos sociais? Com brutalidade policial? Acham que isso resolve?

Daí que ficamos sabendo que os professores de São Paulo recebem 4 reais de vale-refeição, por eles chamado de vale-coxinha; e a mídia ainda divulga a versão oficial que a decadência do ensino público em São Paulo advém apenas da falta de preparo e cultura dos professores?

O desprezo contra o funcionalismo público é uma característica ideológica predominante no tucanato. Tudo bem, podem desprezar à vontade. O que não podemos, definitivamente, aceitar, é que esse desprezo se converta em agressão covarde. Afinal, não são os tucanos que vão lá dar cacetada. Eles apenas dão ordens para que policiais mau pagos e sofredores façam o seu trabalho sujo.

Arrisco-me, no entanto, a prever profeticamente: para toda ação, uma reação; cada pancada, cada gás inalado, cada bala de borracha, terá o seu troco. Em dobro.


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O mau-caratismo não tem limites. A mídia paulista e seus satélites na blogosfera descobriram que o jurista Dalmo Dallari apóia a repressão na USP. Imediatamente, todos se agarraram às palavras de Dallari como salvação final. Alegam: "viram, se um simpatizante do PT concorda com a gente, então a discussão está acabada". Ora, é impressionante a cara-de-pau. Em vez de entrevistarem professores, funcionários e estudantes que testemunharam o incidente, pegam a opinião de um senhor distante de tudo, que não lê blogs, que acompanha tudo, provavelmente, pela mídia. E daí que ele é simpatizante do PT? Que hipocrisia! O que isso prova? Não quero saber a opinião do Dallari. Eu tenho a minha opinião. Eu queria saber a opinião do governador José Serra e não do Dallari! Queria saber a opinião do jornal a Folha de São Paulo e de seus colunistas e não do Dallari!

O pior, no entanto, vem aí. O blogueiro, no afã de embaralhar a polêmica, lembrou do Haiti, citando casos de haitianos mortos pelo exército brasileiro. Se culparem o Serra, chantageiam eles, então culpem Lula pelas mortes no Haiti. Ora, que mau-caratismo. Que comparação! O exército brasileiro foi convocado a ajudar a evitar uma guerra civil no Haiti pela Organização das Nações Unidas. A atuação brasileira foi elogiada em todo o mundo. Houve incidentes porque era um país vivendo uma guerra civil, mas, felizmente, conseguiram superar a terrível crise política que viviam, e realizaram eleições democráticas em clima de paz, com ajuda do exército brasileiro.

Como comparar um país em guerra civil, com 80% de desemprego, e uma manifestaçãozinha de estudantes universitários na cidade mais rica da América Latina? E mesmo que eles, do alto de seu filisteísmo e cinismo, considerem Lula responsável por mortes no Haiti, como isso isentaria o governador José Serra das violências ocorridas na USP? Eles estendem essa "isenção" também às atrocidades, documentadas inclusive pela grande imprensa paulista, em Paraisópolis, cometidas pela mesma PM?

E que história é essa de que Serra não tem NADA A HAVER com o incidente na USP? Se não tem, porque ele não vem a público e condena, veementemente, a violência perpetrada, e afirma que haverá investigações e pune os culpados?

11 de junho de 2009

Aniversário do blogueiro no sábado

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(Este é o local indicado, o prédio azul, à direita. Um bar tradicional e pé-sujo da Lapa, com muitas mesas e cadeiras, espalhadas pelo calçadão. A cerveja é barata e gelada. Não é bom pra comer, mas quem quiser fazê-lo basta andar uns passos e ir no bar em frente, ou na outra esquina).


Olá, neste sábado, dia 13 de junho, bebemoro meu aniversário no bar do Gerson (ou bar do Paulinho, como era mais conhecido), a partir das 21 horas. O local fica na esquina das ruas Riachuelo e Lavradio. Todos estão convidados. Grande abraço.

Considerações amorosas e econômicas sobre a Lapa

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(trecho da Gomes Freire, Lapa)


(Eis aí outro longo artigo que será publicado na Carioquice, revista pertencente ao grupo Insight, o mesmo que edita a Inteligência. É um texto sobre a história da Lapa e do Rio Antigo. Custou-me alguns meses de pesquisa.)


Se o Rio é uma cidade partida, a rachadura fica na Lapa. Os Arcos, limitando os caóticos subúrbios cariocas e a esnobe zona sul, consolidaram-se, ao longo dos séculos, como o verdadeiro símbolo da cidade, com o qual todos os cariocas se identificam. Os Arcos da Lapa formam o único consenso ideológico do município. Instintivamente, os cariocas procuram, na Lapa, costurar o esquartejado corpo social do Rio de Janeiro. O Cristo Redentor pode ser o símbolo internacional mais famoso, mas o difícil acesso pelo Cosme Velho, o ingresso salgado, o peso turístico, esvaziam-lhe o valor doméstico; é um monumento antes para o mundo do que para os nativos, cuja maioria nasce e morre sem ao menos conhecer-lhe – e sem importar-se grandemente por isso. A estátua do Cristo com os braços abertos tem 78 anos de idade; os Arcos foram inaugurados em 1750.

Tanto o Cristo como o Pão de Açúcar (para citar apenas os principais), mesmo para quem pode pagar, continuam monumentos turísticos; os Arcos, por sua vez, integram a rotina do carioca. Não é preciso ser boêmio para passar por baixo dos Arcos várias vezes por ano – já que as ruas Riachuelo e a Mem de Sá formam o entroncamento mais importante entre zona sul, centro e zona norte.

O urbanista italiano Aldo Rossi, em seu livro A Arquitetura da Cidade, observa que a cidade é sintese de uma série de valores; o espaço político por excelência; uma idéia; a cidade é, por si mesma, depositária da história, a memória coletiva dos povos, e os bairros, segundo a morfologia social, seriam unidades morfológicas, com tendência a se especializarem em determinado tipo de serviço, a cumprir funções específicas para este organismo vivo e inquieto, a metrópole.

A literatura especializada cita as “áreas de transição”, que aureolam os centros históricos das cidades, como portadoras de valores e características similares em toda a parte. Em geral, compõem anéis urbanos decadentes, infestados de lúmpens, vagabundos e oportunistas. Há bairros parecidos em Nova York, Chicago, Tókio, Londres. No Rio, rodeando o centro, temos a Lapa, de um lado, e o Santo Cristo, de outro. Apesar dos sobrados caindo aos pedaços e do calçamento em petição de miséria, seria injustiça, todavia, aplicar integralmente a teoria das zonas de transição para a Lapa; pois, à diferença de outras grandes cidades, onde as elites logo migraram para áreas suburbanas, abandonando o centro às classes mais baixas, o Rio viveu uma situação inversa. Até a década de 40, as elites continuavam se concentrando em áreas próximas ao centro, e mesmo depois, elas custaram a se afastar, protagonizando um distanciamento vagaroso, a contragosto.

Este amor das elites pelo centro do Rio teve consequências importantes para o país. As reformas de Pereira Passos, realizadas de 1903 a 1906, que incluíram a demolição de 641 prédios coloniais e a abertura da Avenida Central (hoje Rio Branco), além da reforma do porto e abertura da Avenida Beira Mar, custaram quase metade do orçamento da União de um ano fiscal inteiro, de acordo com Maurício de Abreu, autor da obra “A Evolução Urbana do Rio de Janeiro” (Jorge Zahar, 1987). O dinheiro veio do governo federal, na época comandado por Rodrigues Alves, que obteve autorização do Congresso para pedir emprestado 8,5 milhões de libras esterlinas aos banqueiros Rothschild and Sons, de Londres.

Mas talvez a palavra amor não seja adequada, ou então se tratava de um amor bastante autodestrutivo, visto que, poucas décadas depois, quando os edifícios de lindas fachadas artísticas (selecionadas em disputado concurso público), construídos ao longo da recém inaugurada Avenida Central, ainda eram novos, iniciou-se nova fase de demolição, destes mesmos edifícios, para a construção dos arranha-céus que hoje lá vemos.

A Lapa viveu seus anos dourados em meados do século XIX, quando a instalação da Corte portuguesa nas adjacências da Praça XV galvanizou o centro com o charme da monarquia e o dinheiro dos senhores de escravos. Em 1821, relata Abreu, 13 anos após a chegada da família real ao Brasil, o Rio ainda é uma cidade modesta, pequena, abrangendo, grosso modo, somente o espaço entre as praças XV e Mauá. As demais freguesias eram predominantemente rurais. A partir desta data, entretanto, continua Abreu, as classes dirigentes começam a dar preferência, para instalarem suas residências, de um lado, às áreas próximas à atual Igreja da Candelária (junto ao porto, na Praça Mauá), e, de outro, nas ruas recém-abertas da atual Lapa – a Inválidos, a Lavradio, a Resende e a Mata-Cavalos (hoje Riachuelo). Alguns, com maior mobilidade (ou seja, mais dinheiro e tempo), preferiam as terras situadas ao sul, os atuais bairros do Catete e Glória, seguindo os passos da rainha Carlota, que morava em Botafogo. Este movimento culminou com o estabelecimento do Catete, bairro imediatamente vizinho à Lapa, como o centro político e administrativo da nação brasileira, quando o governo instalou a sede da Presidência da República no Palácio do Catete.

As demais classes (continuo citando Abreu), com reduzido ou nenhum poder de mobilidade, e não podendo ocupar os terrenos situados a oeste da cidade, devido à existência do Saco de São Diogo, na atual Cidade Nova e Praça XI, onde hoje fica a sede da prefeitura, adensavam-se cada vez mais em freguesias vizinhas, especialmente nas de Santa Rita e Santana, dando origem aos bairros da Saúde, Santo Cristo e Gamboa.

A Lapa continuaria colada às artérias principais da economia da capital federal por muitos anos. Na segunda metade do século XIX, o Rio passou por diversos surtos de industrialização, com o surgimento de pequenos e numerosos estabelecimentos, sediados quase sempre no centro da cidade, dedicados à fabricação de calçados, chapéus, roupas, bebidas e mobiliário. Eram indústrias com baíxíssimo grau de mecanização, verdadeiros artesanatos, absorvendo, consequentemente, grande quantidade de força de trabalho. A Lapa, que integra o centro, interagia intensamente com este processo, especializando-se nos setores mais avançados: gráficas, tipografias, metalurgia leve.

Essa vitalidade econômica patrocinava uma grande intensidade cultural e boêmia. Os famosos “malandros da Lapa” eram os trabalhadores que viviam à sombra dessa fartura, realizando pequenos “bicos” ou esposando algumas das milhares de mulheres empregadas nessas indústrias. Os sindicatos de hoje não cansam de citar o poder aquisitivo dos trabalhadores cariocas no início do século, quando o salário mínimo correspondia, em valores corrigidos, a cerca de R$ 1.500,00. O Rio era servido por excelentes e abundantes escolas públicas, onde estudaram filhos de lavadeiras, como Machado de Assis, que adquiriam noções sólidas de cultura universal.

Em geral, o próprio centro histórico das cidades se notabiliza como área boêmia. É assim em Buenos Aires, em Londres, em Paris. No Rio, com os tolos decretos-lei, ainda vigentes, que praticamente criminalizaram-no enquanto espaço residencial, o centro histórico se tornou quase uma cidade fantasma à noite e nos finais de semana. E a Lapa, onde existe alta concentração populacional, é seu oposto: tem uma vida noturna intensa, 24 horas, todos os dias da semana.

Até meados do século XIX, a riqueza do Rio superava, de longe, a de estados gigantescos como Minas Gerais e Rio Grande do Sul, e emparelhava com o estado de São Paulo. O “ouro negro” que mais tarde refundaria o estado de São Paulo em novas bases econômicas e industriais, ocupava quase todos os vales do rio Paraíba do Sul, que corta longitudinalmente o estado do Rio, empregando milhões de escravos e trabalhadores. Essas fazendas irão entrar em processo falimentar após a lei Áurea, liberando uma grande masssa de mão-de-obra negra, necessária para suprir a demanda criada com os intensos surtos industriais que o Rio experimenta antes e depois da virada do século. Até hoje, a população da Lapa é predominantemente negra – tornando-se, por isso, o bairro preferido pelos imigrantes de Angola.

Com a industrialização e a invasão de gente preta, a Lapa deixou de ser um bairro desejável pelas elites, que o abandonaram para sempre. Em meados do século XX, é estabelecido tacitamente que as famílias decentes deveriam morar distantes da Lapa. Naquele momento, a Lapa experimentou o seu verdadeiro nascimento enquanto bairro boêmio, onde trabalhadores e empresários iriam gastar seu dinheiro, juntos, nos cabarés.

A migração das elites para a zona sul, ou para alguns bairros da zona norte (como Tijuca e Vila Isabel), fez os preços dos aluguéis despencarem na Lapa, abrindo espaço para a chegada de estudantes, jornalistas e modestos funcionários públicos. Até hoje, os aluguéis na Lapa estão entre os mais baixos do Rio de Janeiro, inclusive comparado a lugares afastados do subúrbio. Muita gente tinha preconceito de morar na Lapa, cujo nome era associado a imagens profanas e à degradação moral.

A vida noturna se intensificou com a instalação de gráficas modernas e jornais nas redondezas (Correio da Manhã, Tribuna da Imprensa, O Globo), que empregavam enormes contingentes de trabalhadores, os quais, após o serão junto às impressoras, espaireciam nos bares das redondezas, além dos jornalistas e repórteres, que ali trocavam idéias sobre as eternas crises políticas. Hoje as gráficas (que ainda existem) não tem tanta importância econômica para o Lapa, mas o bairro ainda recebe, com destaque para a noite de sexta-feira, as milhões de pessoas que trabalham no centro.

A boemia lapiana, nas primeiras décadas do século XX, era chic. Num prédio junto ao beco do Rato, Manuel Bandeira manteve, por muitos anos, sua garçoniére, para onde conduzia suas amantes. Era o tempo de Madame Satã e suas brigas cinematográficas, nas quais destruía bares inteiros e espancava, sozinho, dezenas de adversários. Foi na Lapa que Augusto Frederico Schmidt, mescla de empresário, boêmio, poeta e editor, perdeu os originais de “Caetés”, primeiro romance de Graciliano Ramos, após uma noitada, só os encontrando meses depois, quando o editor, desesperado, imaginava-os perdidos para sempre.

Os principais responsáveis pela destruição criminosa do patrimônio arquitetônico do Rio Antigo, notadamente de seu centro histórico, foram governos autoritários. O primeiro grande vilão chama-se Henrique Dodsworth, nomeado prefeito por Vargas em 1937, após o golpe do Estado Novo. Dodsworth já se tornara conhecido do público carioca por ocasião da demolição do morro do Castelo, da qual foi defensor entusiasta. Até hoje arquitetos, entre eles Sérgio Poggi de Aragão, do BNDES, perguntam-se que razões culturais e ideológicas levaram autoridadades, com beneplácito da imprensa, a destruirem tão apaixonadamente o nucleo histórico do Rio de Janeiro.

Esse clima de demolições e autoritarismo refletia-se no bairro boêmio, que ingressou num longo período de decadência e obscuridade. Na década de 60, o governador do Distrito Federal, Carlos Lacerda, decidiu realizar uma série de intervenções urbanísticas na área junto aos Arcos da Lapa, e dezenas de sobrados históricos foram implacavelmente destruídos.

O progressivo afastamento da praia foi outro fator que prejudicou o bairro. Antes da reforma de Pereira Passos, que realizou um primeiro aterro, a Rua Joaquim Silva terminava numa murada que dava numa belíssima vista da baía de Guanabara. Mesmo com a construção da Praça Paris, a praia continuava próxima, bastando contornar a praça e se debruçar sobre a recém-inaugurada e charmosa Avenida Beira Mar, ornada com árvores frondosas e postes elétricos trabalhados artisticamente. O aterro do Flamengo, levado a cabo por Lacerda, afastou definitivamente a Lapa do litoral. Mas não sejamos tão ranhetas, já que o bairro tornou-se vizinho de um dos mais belos e extensos parques urbanos do mundo.

Carlos Lessa, autor de um dos mais completos e apaixonados livros sobre o Rio de Janeiro, o “Rio de Todos os Brasis”, explica-nos a reviravolta urbanística mais significativa ocorrida na cidade: o centro do Rio, por séculos debruçado sobre o mar, voltou-lhe as costas. Os aterros sucessivos produziram um primeiro afastamento: a construção de avenidas de alta velocidade, um segundo: a ruptura total aconteceu com a construção de viadutos elevados, sobretudo a Perimetral. Esta última, do ponto de vista viário, foi muito útil para a cidade; para avaliar seu efeito estético sobre o centro, porém, devemos imaginar o que aconteceria se o mesmo viaduto fosse construído diante da praia de Copacabana.

Somando o descaso com a poluíção progressiva da baía de Guanabara, que se acentuou muito a partir da década de 60, nota-se que o centro da cidade, aí incluindo a Lapa, o constructo que simbolizava a principal referência ideológica do município, deixou de ser interessante às classes dominantes. As principais ruas da Lapa - Inválidos, Resende, Lavradio - foram abandonadas pelo poder público e privado, deixadas inclusive sem serviços constantes de lixo e com suas redes de esgoto comprometidas pela falta de conservação; disso resultou brutal processo de desvalorização dos imóveis (muito dos quais, abandonados pela falta de condições de pagar o imposto predial, foram invadidos por “posseiros”), apenas revertido nos últimos anos, com a retomada dos investimentos comerciais e imobiliários na Lapa, uma história sobre a qual iremos discorrer agora.

A última onda de revitalização da Lapa coincide com o tempo em que o autor destas linhas mudou-se para lá. Em algum dia do ano de 1999, entrei, pela primeira vez, num conjugado minúsculo da Rua da Lapa. Cito as razões que me levaram a morar na Lapa porque elas foram, provavelmente, as mesmas que produziram sua revitalização. Era uma das áreas com aluguel mais baixo no município (mais barato, inclusive, que muitos bairros do esnobado subúrbio carioca); era próxima ao centro, onde eu trabalhava; e estava ao lado dos bares que eu frequentava, na Joaquim Silva.

Nesse ano ainda não haviam sido inaugurados nenhum dos barzinhos da moda de hoje. Todos eles têm menos de dez anos; a maioria, menos de cinco; muitos foram abertos no ano passado. Em abril deste ano, Kadu Tomé, dono do Bracarense, legendário ponto-de-encontro da boemia do Leblon, abriu o Será o Benedito?, um bar com desenho arrojado e proposta ambiciosa, na Rua Gomes Freire 599.

A quantidade de gente que passa pela Lapa todas as noites, com destaque para as sextas-feiras, merece o respeito e atenção dos estudiosos de fenômenos urbanos e sociais, além, é claro, dos escritores, sempre atentos aos movimentos da boemia, mormente quando adquirem o vulto e a qualidade que atingiram na Lapa. Veteranos do bairro dizem que a Lapa vive o seu melhor momento da história, melhor mesmo que os famosos anos 20 e 30, tempos de Madame Satã e Manuel Bandeira. Naqueles tempos, havia cabarés frequentados por gente rica e elegantes casas de prostituição, mas não tinha a vitalidade popular de hoje. A Lapa é atualmente um dos maiores concentradores - regulares - de gente do mundo ocidental. Uma noite comum de sexta-feira, na Lapa, reúne centenas de milhares de pessoas, esparramadas pelas ruas Joaquim Silva, Mem de Sá, Riachuelo, Lavradio e Gomes Freire.

Mas volto ao ano de 1999, quando a Lapa não reunia multidões. Ainda era um bairro maldito e ainda existiam bordéis, já muito decadentes, na Rua Mem de Sá. O Circo Voador e o Asa Branca eram as únicas casas de show, sendo que o Circo permaneceu fechado de 1996 a 2004, consequência de um imbroglio entre o prefeito Luiz Paulo Conde e banda Ratos de Porão.

Nos anos seguintes, a revitalização da Lapa se daria de maneira inteiramente espontânea, sem nenhum investimento público ou privado. A Rua Joaquim Silva foi literalmente tomada por pessoas de todas as partes da cidade, e por dezenas de vendedores ambulantes. Logo surgiram iniciativas populares para trazer música aos frequentadores. No auge da Joaquim Silva, por volta de 2002 ou 2003, havia cerca de oito pontos de música na rua: 1) os roqueiros, que improvisavam um palquinho no bar junto aos Arcos; 1,5) ainda em frente aos Arcos, mas do outro lado da rua, funcionava o Semente, que se tornou célebre por reunir os maiores nomes do chorinho carioca; 2) uma rodinha de samba no botequim ao lado; 3) a turma do hip-hop organizava disputas musicais na esquina com a Travessa Mosqueira, as caixas de som no meio da rua; 4) um estabelecimento, no quarteirão seguinte, especializou-se em forró, cobrando ingresso a preços módicos; 5) mais adiante, um espaço dedicado exclusivamente ao reagge, com entrada gratuita; 6) no bar conhecido por Bar do Seu Cláudio, ocorriam rodas de samba altamente profissionais, na calçada; 7) Mais adiante, mais rock ao vivo, no meio da rua, num palco cercado por cordinhas; 8) finalmente, ao longo da escadaria dos azulejos, paravam diversos grupos – entre eles muitas comunidades hippies - em volta de violeiros que tocavam Raul Seixas. A droga preferida era a maconha, usada e abusada em toda a parte, particularmente nas rodas dos violeiros.

Essas verdadeiras festas públicas, comparáveis talvez ao que pode ter ocorrido no Central Park, nos anos 60, ou indo mais longe, às festas sagradas das cidades gregas, não duraram, todavia, muito tempo. Autoridades e imprensa não viam com bons olhos aquela agitação. Não havia grandes investimentos privados, o Estado prosseguia ausente e a área, chamada por alguns de “República da Lapa”, exercia um fascínio subversivo que incomodava os “homens de bem”. Enfim, um belo dia, o jornal O Globo publicou um reportagem bombástica. A matéria, em linguagem de denúncia, informava que as pessoas cheiravam cocaína sobre as mesas, e o uso de maconha era liberado. Foi a senha para se acabar com a diversão. No dia seguinte, a Joaquim Silva encheu-se de policiais. Proibiu-se o comércio ambulante – que depois voltou, como sempre. As noites voltaram ao normal – a Joaquim Silva voltou a ser o ambiente sórdido, escuro, frequentado por marginais, conforme vinha sendo há décadas. Essa luta contra a Joaquim Silva durou anos. Os artistas populares tentavam voltar, mas a repressão constante acabou com todas as manifestações culturais instaladas na rua. A maioria dos bares recém-abertos foram fechados pela prefeitura. E a Joaquim Silva morreu de novo. Nos anos seguintes, a rua renasceria, embora sem o glamour e a febre de antes, perdendo terreno para a Rua Mem de Sá, que passou a atrair o público mais “interessante”, ou seja, com maior poder aquisitivo. Hoje a Joaquim Silva compõe uma das zonas “populares” da Lapa, onde ainda predomina o comércio ambulante, com o surgimento de depósitos que vendem bebida a preços mais baixos. Os ambulantes, por sua vez, criaram uma associação, muito atuante, vinculada a diversos vereadores, que negocia patrocínios e parcerias diretamente com fábricas de bebida e distribuidoras.

A “vanguarda boêmia” migrou para a Mem de Sá, para os quarteirões situados entre os Arcos e a Gomes Freire, onde surgiram dezenas de barzinhos. A atmosfera subversiva da Lapa esvaneceu-se. Os “barzinhos cariocas”, que se proliferaram em São Paulo nos anos 90, chegaram ao Rio, num troca-troca curioso. A tendência atual é essa: bares que mesclam a inventidade e a espontaneidade cariocas com serviços e preços de São Paulo. Todas as franquias de bar instaladas na zona sul abriram suas filiais no bairro. O capitalismo contemporâneo, enfim, engoliu a Lapa, e parece ter gostado do sabor. Os intelectuais da Escola de Frankfurt adorariam analisar esse fenômeno. Os nostálgicos daquela Lapa subversiva de outrora se apertam nos raros barzinhos do bairro onde o preço da cerveja ainda não incorporou o ágio dos novos investimentos.

A inauguração de um enorme edifício da Justiça do Trabalho, na Lavradio, somou-se ao aumento do número de funcionários da Petrobrás e do BNDES, cujas sedes situam-se ali perto, na Avenida Chile, criando um importante público de alto poder aquisitivo para os comerciantes da região. As construtoras notaram o filão e a Klabin Segall abriu caminho, lançando um enorme condomínio tipo classe média na Rua do Riachuelo, a dois quarteirões dos Arcos. Reza a lenda que os 688 apartamentos ofertados foram vendidos em duas horas, com o projeto ainda na planta. Na esquina da Inválidos com a Relação, há outro grande condomínio sendo construído, com recursos do fundo de funcionários da Petrobrás. Esse tipo de empreendimento, normal em outros bairros do Rio, não aconteciam há uns 30 anos na Lapa.

A entrada de capital, todavia, não aniquilou totalmente a espontaneidade lapiana. O bairro é grande. Surgem novas periferias. Fora dos corredores da moda, encontram-se botequins tradicionais, frequentados por seus clientes de sempre. Há muita energia adormecida sob as ruas centenárias.

O bairro, entretanto, ainda carece de muitas reformas. Os serviços da prefeitura permanecem precários. Há montes de lixo por toda a parte. Na rua do Resende, todos os bueiros estouram regularmente, gritando por uma reforma sanitária que deveria ter sido feita há décadas. O Instituto Médico Legal continua na Mem de Sá, apesar da promessa do governador Sérgio Cabral de transferi-lo para São Cristóvão (onde já se construiu um prédio para abrigá-lo, na Francisco Bicalho). A esperança dos moradores e dos que amam a Lapa é que, com a chegada de gente com mais mais influência junto à Secretaria de Receita Tributária, a prefeitura e o estado tratem o bairro com o carinho que ele merece.


Afinal, o que é a Lapa? Qual o seu significado para o Rio de Janeiro, para o Brasil? Reunindo dezenas de milhares de pessoas todas as semanas, oriundas de todas as regiões da cidade e de todas as classes sociais, é óbvio que o lugar concentra uma intensa vitalidade democrática. Arrisco-me a afirmar que, na Lapa, germina a ideologia, ainda em formação, ainda obscura, que os brasileiros desejam forjar para si mesmos. Os candidatos já perceberam isso e, em épocas de eleições, realizam campanhas noturnas no bairro, distribuindo santinhos e conversando com seus frequentadores. A vanguarda musical do país continua passando por suas casas de show. Artistas plásticos continuam abrindo ateliês e galerias no bairro. Enquanto as noites de Paris e Londres terminam às duas da manhã, esta é a hora em que as coisas começam a acontecer no bairro boêmio. Renascesse na Lapa, o grego Anacreonte, um dos fundadores da lírica (leia-se boemia) ocidental, ver-se-ia bem à vontade para recitar seus versos: “sempre que bebo o alegre vinho, bem a meu gosto, em taça grande, minha alma simples se expande, ao som dos coros jovens, com prazer!”

Longos bicos sobre o petróleo brasileiro

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Recebi, por email, o seguinte artigo, e achei-o muito importante para o momento atual, porque contém informações relevantes para se compreender a conjuntura política em torno do petróleo brasileiro. A fonte é o HSLiberal, onde a matéria foi originalmente publicada. A entrevista citada no artigo encontra-se no site da Associação de Engenheiros da Petrobrás.



Estragos na Petrobrás

“Estragos produzidos na Petrobrás, pelo governo FHC, visando desnacionalizá-la” (1) Foi como o presidente da Associação dos Engenheiros da Petrobras (AEPET), Fernando Siqueira, descreveu as ações contra o Sistema Petrobrás nos anos do príncipe das privatizações. O artigo foi publicado no site da AEPET em abril/2009 quando os tucanos, por falta de discurso político, criaram uma CPI contra a Petrobrás. Em resumo:

As ações deletérias começaram quando FHC, ainda ministro, fez um corte de 52% no orçamento da Petrobrás previsto para o ano de 1994, sem nenhuma justificativa técnica. Prosseguiram com manipulações para menor da estrutura de preços: desvio de 3 bilhões de dólares anuais para o cartel internacional. Em 1995, a proibição de informações de estatais ante o Congresso Nacional facilitou as manipulações da imprensa privatista. (...)

Também em 1995, FHC deflagrou o contrato e a construção do Gasoduto Bolívia-Brasil, o pior contrato que a Petrobrás assinou em sua história. Atendeu aos interesses das estrangeiras Enron e Repsol, donas do gás da Bolívia. Para isso, suspendeu a construção de 15 hidrelétricas e provocou o “apagão” do setor no Brasil. Um contrato totalmente prejudicial aos interesses dos governos do Brasil e da Bolívia. (...)

Em 1995, o governo tentou desmoralizar o movimento sindical após 30 dias de greve, reprimida com tropas do Exército. Tentativa de calar a oposição às privatizações. No mesmo ano, cinco alterações profundas na Constituição incluíam o fim do monopólio da Estatal. Custo para o Congresso Nacional: barganha política, liberação de emendas, chantagens e compra de votos. Em 1996, outras manobras ampliam as ações privatistas. (...)

Em 1997, FHC criou a Agência Nacional do Petróleo e nomeou o genro, David Zylberstajn, que havia se notabilizado no governo de São Paulo pela desnacionalização de empresas de energia por preços irrisórios. Na sua posse, bradou no auditório repleto de estrangeiros: “O petróleo agora é vosso”. E passou a ser, como provam os generosos leilões de blocos de exploração cedidos à exploração do cartel internacional. (...)

1998, a Petrobrás é impedida pelo governo FHC de obter empréstimos baratos (6% ao ano) no exterior para tocar seus projetos, e de emitir debêntures que visavam à obtenção de recursos para os seus investimentos. No mesmo ano, FHC cria o REPETRO que libera as empresas estrangeiras do pagamento de impostos pelos seus produtos importados. Mas sem, contudo, dar a contrapartida às empresas nacionais. (...)

Isto, somado à abertura do mercado nacional iniciada por Fernando Collor, liquidou as 5.000 empresas fornecedoras de equipamentos para a Petrobrás, gerando desemprego e perda de tecnologias brutais para o País. A abertura do capital da Petrobrás à bolsa de Nova York resultou na desnacionalização de 30% das ações da empresa, vendidas por preços irrisórios (cerca de 10% do valor, como na venda/doação da Vale do Rio Doce).

Um blog revolucionário

O movimento da mídia e de políticos da oposição em favor da CPI da Petrobrás não é somente uma manobra política oportunista, eleitoreira (por falta de um programa eleitoral para enfrentar o crescimento da aprovação ao governo). Também não é tão só uma jogada política de grupos de interesses que usa um senado por demais desmoralizado para tentar reaver antigos privilégios da grande empresa nacional.

É tudo isso, também, e muito mais. A CPI da Petrobrás é uma manobra urdida nos mesmos porões escusos da era FHC. O objetivo é tentar fragilizar a Estatal para desviar o foco das atuais discussões em torno de um novo marco legal que favorece o retorno do monopólio estatal sobre os combustíveis. Por que? A Petrobrás é, hoje, a quarta maior empresa do setor no mundo. É a primeira de maior credibilidade internacional.

Mais ainda: a Petrobrás é a única empresa do setor, em plena crise mundial, a manter seu cronograma de investimentos. Uma CPI, no entanto, pode ser prejudicial aos interesses da empresa e do país, principalmente porque o sistema Petrobrás envolve amplos e diversos interesses corporativos. E, pelas manifestações prévias, teremos um festival de pirotecnia, bem ao gosto da mídia e de políticos da oposição.

Para tentar barrar o comportamento habitualmente irresponsável da manipulação midiática e oposicionista no processo da CPI, a Petrobrás resolveu inovar: passará a dispor ao público todas as informações passadas à imprensa. Dessa forma, o leitor poderá conhecer as respostas da Petrobrás que a mídia e os políticos desprezam ou distorcem porque não atendem aos interesses de suas argumentações e pirotecnias.

Diante do revolucionário blog da Petrobrás, FATOS E DADOS (2) (inaugurado neste sábado, 6/06, e já obtendo quase 100 mil acessos), iram-se os principais jornais do país. Por que? Porque passam a perder o monopólio da informação e, consequentemente, o poder sobre os leitores. Porque permite aos leitores identificar o processo de manipulação com que usualmente se abusa das suas confianças e consciências críticas.

“A empresa tem o direito de se acautelar, através das informações que difunde no blog, contra as distorções em que os meios de comunicação têm incorrido, como a própria ABI registrou em matéria publicada da edição de 31 de maio de um dos jornais que agora se insurgem contra o blog da empresa”. É o que diz em carta a Associação Brasileira de Imprensa, que vê na reação dos jornais “inegável cunho político”.

(1) Em Boletim H S Liberal você tem acesso às fontes desta postagem e pode comentá-la.
(2) http://petrobrasfatosedados.wordpress.com/

10 de junho de 2009

A truculência de Serra

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(Sobradão decadente, mas conservando ainda beleza e elegância, dos arredores da Lapa)



(esquina da Lavradio com Mem de Sá, Lapa)

As notícias sobre a violência policial na USP mostram o grave risco que a estabilidade democrática brasileira e o frágil equilíbrio social atingido nos últimos anos sejam enviados para as cucúias caso o governador José Serra vença as eleições presidenciais em 2010.

Leiam o relato de um professor da USP sobre o caso.

Não, não se trata de "estudantes" vagabundos que não deixam outros estudarem. Ocorreu uma greve de funcionários, o governador mandou a polícia militar para o local, e professores e alunos aderiram à greve em protesto.

Serra continua sem falar nada. Mudo. E não há questionamentos na mídia. Não há editoriais ou colunistas abordando o tema. A mídia também se emudece. Quer dizer, a mídia procura minimizar o caso, não humanizando as reportagens com relatos dos personsagens envolvidos.

O que me impressiona é que não é o primeiro conflito semelhante causado pela truculência do governo paulista. O governo de José Serra alimenta uma agressividade latente, uma brutalidade desumana, uma hostilidade constante, contra o funcionalismo público paulista. Há um fundo ideológico nesses sentimentos. Em todos os comentários pró-Serra que lemos em blogs observamos sempre esse desprezo contra o funcionalismo público. E há um preconceito partidário repugnante. As demandas trabalhistas dos funcionários sempre são atribuídas ao jogo partidário. O grevista, na tosca visão ideológica alimentada pela grande mídia e pelo próprio governador de SP, não é um cidadão que almeja condições melhores de trabalho; não, ele é um petralha desprezível querendo desgastar a gestão Serra. Na questão da polícia, Serra atribuiu os conflitos entre a PM e a Polícia Civil ao PT e à CUT, embora os sindicatos e os trabalhadores que vivenciaram o imbróglio tenham garantido que essas entidades não tinham nada a ver com isso. Eu fico pensando: e quando grevistas ou manifestantes pertencerem ao PT? É ilegal? Isso os torna menos dignos? Menos honestos e sinceros em suas demandas por melhores condições de trabalho? O fato é que, por uma razão óbvia, os trabalhadores organizados, em sua grande maioria, pertencem à agremiações de esquerda; são opositores, portanto, das forças conservadoras que detêm o poder em São Paulo; isso não legitima, porém, nenhuma truculência; os trabalhadores possuem o direito democrático de se filiarem ao partido que desejarem, e isso não pode desmerecer a sinceridade de suas demandas trabalhistas. Quando empresários ou grandes agricultores fazem lobby junto ao governo para exigirem tal ou qual auxílio, com vistas a manterem o nível de emprego de suas atividades, ninguém lhes indaga o partido de sua preferência; são representantes de setores econômicos importantes e a sociedade entende a necessidade de ajudá-los de vez em quando.

O mais grave é que a brutalidade contra professores, médicos, trabalhadores, sem-terra, sem-teto, é encarada pelos correligionários de Serra como virtude política e apanágio ideológico.

Um blogueiro Judas tenta minimizar o fato alegando que a PM apenas "cumpria ordens judiciais" e que, não o fizesse, aí sim é que Serra estaria agindo ditatorialmente. Ora, o juiz ordenou a reocupação por pedido da reitora, aliada de Serra e indicada por ele; e mesmo assim, a decisão final sempre fica por conta do governador, que pode solicitar o cancelamento da ida da PM e, em última instância, orientar as forças de segurança para que evitem, a todo custo, agressões contra estudantes e trabalhadores.

Aí a mídia trata uma situação em que policiais com armas de fogo, escudos, bombas de gás lacrimogênio e gás pimenta, cacetetes, além de todo treinamento (e os inevitáveis vícios daí decorrentes) para combater bandidos perigosos, atacam jovens estudantes e trabalhadores desarmados e sem nenhum preparo (ou mesmo intenção) militar, como "enfrentamento", ou como se os policiais estivessem apenas reagindo às "pedras" lançadas pelos estudantes.

Ora, o vestibular da USP é um dos mais difíceis do Brasil. Então, por mais revoltados que sejam os estudantes (e todo estudante universitário é revoltado; é uma condição biológica e, portanto, passível de tolerância e compreensão), eles representam uma das elites intelectuais mais importantes do Estado de São Paulo. É incrível, é trágico, é risível, que sejam tratados com tamanha truculência.

Se o governador de São Paulo fosse alguém de outro partido, a imprensa certamente estaria voltando todas as suas baterias contra ele, e com razão. Por que é um absurdo e como tal deve ser tratado. O fato da imprensa abafar, minimizar e distorcer os acontecimentos, apenas reforça um sentimento que se torna cada vez maior: o de que os grandes jornais perderam o pouco escrúpulo que tinham em aparentar um mínimo de isenção e honestidade e ética.

Há outro fator, porém, que explica o desprezo das elites paulistanas e seus jornais para com os estudantes da USP. É que, há algum tempo, esta elite desistiu, de uma vez por todas, em matricular seus filhos em universidades públicas, e com a ascenção social de milhões de brasileiros, houve uma democratização natural da USP. A presença de jovens pertencentes às famílias mais ricas diminuiu bastante na USP e em outras universidades públicas. Então, pau neles!

Que seja! Serra e seus asseclas na mídia, na internet e na sociedade continuam a subestimar a inteligência, a força e a cultura do povo brasileiro! E quando falo povo, não esqueçam, incluo aí as suas vanguardas intelectuais. Pra continuar a tendência dos últimos posts, termino com uma citação, desta vez de Glauber: "mais fortes são os poderes do povo!"

*

O professor Hariovaldo e seus comentaristas, como sempre, realizaram uma cobertura impagável dos acontecimentos.

*

Depois da Associação Brasileira de Imprensa e da Ordem dos Advogados do Brasil defenderem o blog da Petrobrás, o Globo finalmente descobriu alguém disposto a atacar a iniciativa: o filósofo Roberto Romano! Que novidade! O "especialista em ética"! O sacerdote supremo da grande imprensa! Quem falta entrevistar agora? Marco Antonio Vila?

*

Legal a crônica do Carrara, sobre as mazelas políticas recentes.

Os ricos também amam

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Por incrível que pareça, ainda tem gente que atribui a popularidade de Lula exclusivamente ao Bolsa Família. Outro dia, encontrei um amigo, advogado, que repetiu a ladainha. Pois bem, preparei uma ilustração com os últimos dados do Datafolha para, mais uma vez, mostrar aos incautos que o charme lulista já seduziu também os extratos mais altos da sociedade. Tantos os indivíduos com curso superior completo, como aqueles cuja renda familiar mensal ultrapassa 5.000 reais, consideram o governo Lula ótimo ou bom. Confiram o gráfico acima.

Não incluo aqui os dados referentes às outras classes e com mais baixa escolaridade, porque, junto a estes, não há novidade: o lulismo impera absoluto e soberano. Também não incluo a categoria Regular e Não Sabe, que são respostas neutras. Eu queria apenas mostrar, pela milésima vez, que a popularidade de Lula não é explicável somente pelo bolsa família, quer dizer, não são apenas pessoas que recebem assistência social do governo que aprovam Lula. A classe média brasileira "lulou" há algum tempo. Os donos de jornais, cujas famílias não ganham 5.000 reais por mês, mas 5 milhões pra cima, podem não gostar do governo, mas "como já dizia Jorge Maravilha, prenhe de razão: você não gosta de mim, mas sua filha gosta".

8 de junho de 2009

Veias e$perta$ da América Latina

Seja o primeiro a comentar!

(Rua do Lavradio, Lapa, Rio)

(Eis um artigo que escrevi para ser publicado numa revista, por isso tem uma linguagem talvez um pouco diferente das que vocês estão acostumados. A publicação não rolou, então entrego a leitura a vocês. O artigo prova, com estatísticas, que a América Latina é o maior e o melhor, de longe, mercado dos produtos brasileiros).

Na primeira semana de maio, a imprensa manchetou que a China havia superado os EUA e se tornado o maior comprador individual de produtos brasileiros nos primeiros quatro meses do ano. A notícia ganhou destaque em todos os jornais e em todos os sites do país. Digitando a frase “China se torna maior compradora de produtos brasileiros”, apareciam milhares de links para textos abordando o tema.

Tratava-se, de fato, de uma notícia fundamental, que aponta mudanças não apenas no comércio exterior brasileiro, mas sobretudo na geopolítica global. Incomodou-me, no entanto, não ter encontrado nenhuma publicação que tenha se dado ao trabalho de usar dados anualizados, ou seja, de checar o quadro dos compradores de produtos brasileiros no acumulado de doze meses até abril deste ano. Análises de comércio exterior devem usar sempre – esta é uma lição que aprendi com meu pai, que trabalhou durante trinta anos com jornalismo especializado nesta área – dados anualizados, para evitar distorções sazonais.

Hoje qualquer cidadão, brasileiro ou não, pode acessar o Sistema Alice pela internet, um banco de dados alimentado mensalmente pelo Ministério do Desenvolvimento, com estatísticas completas sobre o comércio exterior nacional. Fi-lo e descobri o que eu já suspeitava. Na estatística anualizada, a situação permanece estável, com o bloco América Latina e Caribe ocupando o primeiro lugar dentre os maiores compradores de produtos brasileiros, acima da União Européia, Ásia e Estados Unidos.

Meu incômodo não parou aí. Procurei na internet, no Google, a seguinte frase: “América Latina torna-se maior compradora de produtos brasileiros”, e não achei... nada! Mudei a frase para “América Latina é maior compradora de produtos brasileiros” e, novamente... nada! Haverá alguma birra nacional contra a América Latina? Enfim, seja qual for a razão para o silêncio sepulcral sobre um dado econômico tão essencial para a geopolítica brasileira, ele deve ser rompido o mais rápido possível. Este artigo, portanto, é uma tentativa de suprir essa lacuna que, para mim, permanece inexplicável. Ou pelos menos não explicável nesse texto. Deixo a tarefa para outro momento. Ou para outra pessoa.

Antes de prosseguir, gostaria de - como bom brasileiro - reclamar mais um pouco. A “opinião pública” ou “opinião publicada”, o que preferirem, entorpecida com eternas denúncias e crises e imbróglios parlamentares, parece não estar preocupada em conhecer nossas estatísticas de comércio exterior. Em meados de abril deste ano (2009), aconteceu o Fórum Econômico da América Latina. Pesquisei matérias sobre o evento e não encontrei nenhuma referência ao fato do continente ter se tornado o principal mercado dos produtos brasileiros, nem qualquer estatística pertinente. Não é de hoje que a América Latina vem consolidando essa posição; mas, de uns anos pra cá, estes números alcançaram uma magnitude tal que a informação precisa forçosamente chegar a todos os brasileiros.

Quando afirmo que a América Latina é o maior mercado de produtos brasileiros, não digo tudo. Há um fator tão ou mais importante que isso: a América Latina é, sobretudo, o melhor comprador. Para efeito de comparação, voltemos à China. A festejada China importou do Brasil, em 2008, um total de 18,21 bilhões de dólares, o que representou um crescimento de 50% sobre o ano anterior, além de corresponder a 9,2% da receita total das exportações brasileiras. É um número fantástico, ainda mais se considerarmos que, na década de 90, as compras chinesas não passavam de 1,5 bilhão de dólares. Mas a China, mesmo aumentando de forma tão espetacular as compras de produtos brasileiros, não é nosso melhor comprador. É um comprador excelente, um mercado no qual devemos continuar investindo e acreditando, mas, por enquanto não é, definitivamente, o destino mais interessante das exportações nacionais.

Nos quatro primeiros meses do ano corrente, período em que ela se tornou “a primeira compradora individual de produtos brasileiros”, a China importou do Brasil, basicamente, minérios e soja, que responderam juntos por 73% de suas compras. O item “minérios” respondeu por 46% das importações chinesas de produtos brasileiros. Esses minérios – com predomínio de ferro bruto – foram vendidos pela bagatela de 57 dólares a tonelada. Ou seja, a China comprou uma tonelada de minério brasileiro pela metade (ou um terço) do preço de um tênis Nike. Esse preço, aliás, até que melhorou muito. Há dez anos, o Brasil exportava ferro a menos de 20 dólares a tonelada. Na média, as exportações brasileiras para a China em 2008 registraram preço de 106 dólares a tonelada.

Há uma outra tabela que mostra bem como, em se tratando do gigante asiático, devemos evitar excessivo entusiasmo. Em 2008, a balança comercial brasileira com a China ficou negativa em 2,62 bilhões de dólares. E o Brasil, ao contrário da China, importa produtos de alto valor agregado de seu parceiro: metade das exportações chinesas para o Brasil é de produtos eletrônicos (com preço médio de 15.378 dólares a tonelada) e componentes para reator nuclear (preço médio de 8.053 dólares). No total, o preço médio das exportações chinesas para o Brasil, em 2008, ficou em 2.900 dólares a tonelada; e saltaram de 1,8 bilhão de dólares em 2002 para 20,83 bilhões em 2008.

Agora concentremo-nos sobre as exportações brasileiras para a América Latina e Caribe, que atingiram 51,19 bilhões de dólares em 2008, respondendo por 26% da receita cambial no período, com aumento de 22,5% sobre o ano anterior. Em virtude desse desempenho, a região isola-se no primeiro lugar no ranking dos principais importadores de produtos brasileiros, bem à frente da União Européia, Ásia e Estados Unidos. É interessante analisar a qualidade destas exportações: a América Latina se notabiliza como principal escoadouro dos manufaturados nacionais. Em 2008, o preço médio das exportações brasileiras para a América Latina alcançou 1.177 dólares a tonelada.

Comparem: em 2008, o preço médio das exportações brasileiras para a Europa ficou em 361 dólares, revelando que o Velho Mundo só importa mercadorias nacionais de baixo valor agregado, como minérios... e soja; o que me lembra uma frase de Adam Smith: “a variedade de mercadorias cuja importação está proibida na Grã Bretanha, de maneira absoluta ou em certas circunstâncias, supera em muito o que supõem os que não estão bem familiarizados com as leis alfandegárias”. A Europa ainda é fortemente protecionista.

Os principais produtos brasileiros vendidos para a América Latina são: veículos, petróleo, reatores nucleares, máquinas eletrônicas e aço, que possuem um alto valor agregado. Vejamos, por exemplo, o item “Máquinas, Aparelhos e Material Elétricos”, ou simplesmente eletrônicos, que inclui os produtos com o maior valor agregado da pauta comercial brasileira; em 2008, a exportação desses produtos gerou 6,89 bilhões de dólares, respondendo por 3,5% na balança comercial brasielira e situando-se acima das vendas dos tradicionalíssimos açúcar e café. Pois bem: a América Latina absorveu 58% das exportações brasileiras desse item (eletrônicos); os EUA vieram em segundo lugar, mas pagando preço médio bastante inferior: 9.694 dólares a tonelada, contra os 18.450 dólares obtidos nas vendas para a América Latina; a União Européia ficou num distante terceiro lugar; o destaque vai para a África, cujas importações de eletrônicos brasileiros cresceu 49% em 2008, atingindo 305,92 milhões de dólares, ultrapassando a demanda asiática.

Há um fator extremamente importante. Na balança comercial brasileira com a América Latina e Caribe, o saldo em favor do Brasil atingiu o recorde de 22,61 bilhões de dólares em 2008. Este saldo registrou seu primeiro pulo de 2002 para 2003, quando passa de 3,13 bilhões para 6,47 bilhões; no ano seguinte, outro pulo, para 12,45 bilhões; daí em diante, vem batendo recordes sucessivos. Comparando: em 2008, registramos saldo positivo de 1,84 bilhão de dólares com os EUA, de 10,20 bilhões com a Europa, e saldo negativo de 2,6 bilhões com a China. No cômputo geral, o saldo cambial brasileiro no ano passado totalizou 24,83 bilhões de dólares.

Está claro, portanto, que a América Latina tem sido, nos últimos anos, a principal responsável pelos saldos positivos de nossa balança comercial. Guarde esses dados na memória, e pense neles quando ouvir alguém acusando o Brasil de estar sendo tolerante em excesso com seus vizinhos, ou desmerecendo encontros oficiais entre líderes latino-americanos. Eles – los hermanos - podem ser criticados por nacionalizar nossas refinarias na Bolívia, alongar suas dívidas em Itaipu, ou barganhar com a Odebretch no Equador; mas é injusto omitir que são nossos mais nobres e importantes parceiros comerciais.

Na América Latina e Caribe, os parceiros do Brasil mais importantes são Argentina, Venezuela, Chile, México, além da pequena ilha anglófona de Santa Lucia – que importa grande quantidade de petróleo brasileiro. Peru, Colômbia, Uruguai, Bolívia e Equador também merecem destaque. Comecemos analisando nossa relação com a Argentina.

A balança brasileira com a Argentina era negativa até 2003. A partir de 2004, o Brasil começa a registrar saldos positivos expressivos, com recorde em 2008, quando atingiu 4,34 bilhões de dólares. A corrente de comércio - exportação + importação – entre Brasil e Argentina cresceu formidavelmente nos últimos anos, alcançando 30,86 bilhões de dólares, valor similar ao que os EUA registravam até 2003. Também é próxima à atual corrente de comércio registrada entre Brasil e China, que em 2007 ficou em 25 bilhões de dólares (e em 2008 foi de 39 bilhões). Considerando que a Argentina tem uma população de 40 milhões, contra 303 milhões nos EUA e 1,32 bilhão na China, vê-se que é um volume estupendo.

Os principais produtos brasileiros exportados para a Argentina são: veículos, reatores nucleares, eletrônicos; os mais nobres de nossa pauta comercial. Nossos eletrônicos - indicados no item Máquinas, Aparelhos e Material Elétricos - foram exportados para a Argentina por 19.216 dólares a tonelada, patamar muito superior ao registrado nas vendas de artigos similares para Europa e EUA. No total, o Brasil exportou 1,71 bilhão de dólares em eletrônicos para a Argentina. A exportação do mesmo produto (eletrônicos) para os 27 países-membros da União Européia totalizou 758,20 milhões de dólares, com preço médio de 9.449 dólares a tonelada.

Outro mercado latino interessantíssimo é a Venezuela. Quem ler nossos jornais pensará que se trata de um país altamente nocivo para a economia brasileira. A verdade, porém, é que, independente do que se pensa sobre Hugo Chávez, a Venezuela consolidou-se como um de nossos compradores mais qualificados, importando do Brasil manufaturados de altíssimo valor. Os principais artigos brasileiros vendidos para a Venezuela são eletrônicos, autopeças e reatores nucleares, além de carne, leite e animais vivos. As exportações brasileiras de carne para a Venezuela passaram de zero há dez anos para 960,02 milhões de dólares em 2008; em relação ao ano anterior, o crescimento foi de 193%. A venda deste item – assim como de leite, animais vivos e cereais - provavelmente conecta-se a problemas temporários de abastecimento no país, mas isso mostra que o Brasil estabeleceu-se como fornecedor confiável de gêneros alimentícios de primeira necessidade. O Brasil vendeu ainda um total de 624,15 milhões de dólares em eletrônicos para a Venezuela, a um preço médio notável, de 30.170 dólares a tonelada. A balança comercial brasileira com a Venezuela, que era negativa nos anos 90, começou a se tornar positiva na virada do século e encerrou o ano 2008 em 4,61 bilhões de dólares.

Em terceiro lugar no ranking dos principais importadores latino-americanos de produtos brasileiros, vem o Chile, grande comprador de petróleo, veículos, reatores nucleares, aço e eletrônicos. O preço médio das exportações para o Chile em 2008 atingiu 1.227 dólares a tonelada. O Brasil obteve saldo comercial positivo com o Chile de apenas 713,07 milhões de dólares, porque o país, além de comprar muitas mercadorias brasileiras, também exporta grande quantidade de artigos para o Brasil. As exportações brasileiras para o Chile totalizaram 4.79 bilhões de dólares, ao passo que o Brasil importou o equivalente a 4,07 bilhões em produtos chilenos.

Adam Smith defendia uma tese que, como tantas outras de sua lavra, continua válida hoje. Afirmava que a riqueza das nações não está na quantidade de ouro ou prata acumulada em cofres particulares ou públicos; o principal tesouro das nações reside na produção de mercadorias, incluindo aí os recursos naturais disponibilizados para consumo interno e exportação. “Se houver falta de matérias-primas para a indústria, esta tem que parar. Se houver falta de gêneros alimentícios, a população passa fome. Mas se faltar dinheiro, o escambo supre a sua falta, embora com muitos inconvenientes. Para remediar esses inconvenientes, poder-se-á comprar e vender a crédito, ou então, os diversos comerciantes poderão compensar seus créditos entre si, uma vez por mês ou uma vez por ano. Por outro lado, um sistema de papel-moeda bem organizado pode suprir a falta de dinheiro em moeda, não somente sem inconveniente algum, mas até, em certos casos, com alguma vantagem. (...) As mercadorias podem servir a muitos outros objetivos, além de comprar dinheiro, ao passo que o dinheiro não serve para nenhum outro objetivo, senão comprar mercadorias. Por conseguinte, o dinheiro necessariamente corre atrás das mercadorias, ao passo que estas nem sempre ou necessariamente correm atrás do dinheiro.” Analisando as terríveis e prolongadas guerras empreendidas pela Inglaterra, Smith conclui que só foi possível financiá-las através da produção e exportação de mercadorias. “A enorme despesa da última guerra deve ter sido paga, principalmente, não pela exportação de ouro e prata, mas pela exportação de mercadorias britânicas de várias espécies. (...) As mercadorias mais adequadas para serem transportadas a países distantes, a fim de lá comprar o pagamento e as provisões de um exército, parecem ser os manufaturados mais finos e mais aperfeiçoados”.

Falamos, enfim, de um país que, pela primeira vez na história, vislumbra uma luz no longuíssimo túnel de pobreza e subdesenvolvimento em que se meteu desde o seu descobrimento. Um país que exportou, em 2008, quase 200 bilhões de dólares, um valor quatro vezes superior ao praticado uma década atrás; e importou 173,10 bilhões, o que representou igualmente um crescimento surpreendente. Há dez anos, o Brasil registrava exportação de 48,01 bilhões e importação de 49,30 bilhões de dólares. Ao constatar o fluxo circular da vida econômica, Joseph Schumpeter afirma que todo indivíduo, mesmo sem disso ter consciência, é um sujeito econômico completo, comprador não apenas de pão, leite e carne, mas também, direta ou indiretamente, de minérios, ouro e bens de capital; e também, direta ou indiretamente, participa de todo processo de produção. “O processo social, na realidade”, diz o economista, “é um todo indivisível”. Para saber em que país vivemos e quem somos nós, portanto, importa conhecermos, minuciosamente, o que vendemos, pra quem vendemos, e qual o preço que nos pagam.

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E aqui você faz um download de 52 tabelas sobre o comércio exterior brasileiro com a América Latina (incluindo alguma coisa com a China, Europa e EUA).