(Rua do Lavradio, Lapa, Rio)
(Eis um artigo que escrevi para ser publicado numa revista, por isso tem uma linguagem talvez um pouco diferente das que vocês estão acostumados. A publicação não rolou, então entrego a leitura a vocês. O artigo prova, com estatísticas, que a América Latina é o maior e o melhor, de longe, mercado dos produtos brasileiros).
Na primeira semana de maio, a imprensa manchetou que a China havia superado os EUA e se tornado o maior comprador individual de produtos brasileiros nos primeiros quatro meses do ano. A notícia ganhou destaque em todos os jornais e em todos os sites do país. Digitando a frase “China se torna maior compradora de produtos brasileiros”, apareciam milhares de links para textos abordando o tema.(Eis um artigo que escrevi para ser publicado numa revista, por isso tem uma linguagem talvez um pouco diferente das que vocês estão acostumados. A publicação não rolou, então entrego a leitura a vocês. O artigo prova, com estatísticas, que a América Latina é o maior e o melhor, de longe, mercado dos produtos brasileiros).
Tratava-se, de fato, de uma notícia fundamental, que aponta mudanças não apenas no comércio exterior brasileiro, mas sobretudo na geopolítica global. Incomodou-me, no entanto, não ter encontrado nenhuma publicação que tenha se dado ao trabalho de usar dados anualizados, ou seja, de checar o quadro dos compradores de produtos brasileiros no acumulado de doze meses até abril deste ano. Análises de comércio exterior devem usar sempre – esta é uma lição que aprendi com meu pai, que trabalhou durante trinta anos com jornalismo especializado nesta área – dados anualizados, para evitar distorções sazonais.
Hoje qualquer cidadão, brasileiro ou não, pode acessar o Sistema Alice pela internet, um banco de dados alimentado mensalmente pelo Ministério do Desenvolvimento, com estatísticas completas sobre o comércio exterior nacional. Fi-lo e descobri o que eu já suspeitava. Na estatística anualizada, a situação permanece estável, com o bloco América Latina e Caribe ocupando o primeiro lugar dentre os maiores compradores de produtos brasileiros, acima da União Européia, Ásia e Estados Unidos.
Meu incômodo não parou aí. Procurei na internet, no Google, a seguinte frase: “América Latina torna-se maior compradora de produtos brasileiros”, e não achei... nada! Mudei a frase para “América Latina é maior compradora de produtos brasileiros” e, novamente... nada! Haverá alguma birra nacional contra a América Latina? Enfim, seja qual for a razão para o silêncio sepulcral sobre um dado econômico tão essencial para a geopolítica brasileira, ele deve ser rompido o mais rápido possível. Este artigo, portanto, é uma tentativa de suprir essa lacuna que, para mim, permanece inexplicável. Ou pelos menos não explicável nesse texto. Deixo a tarefa para outro momento. Ou para outra pessoa.
Antes de prosseguir, gostaria de - como bom brasileiro - reclamar mais um pouco. A “opinião pública” ou “opinião publicada”, o que preferirem, entorpecida com eternas denúncias e crises e imbróglios parlamentares, parece não estar preocupada em conhecer nossas estatísticas de comércio exterior. Em meados de abril deste ano (2009), aconteceu o Fórum Econômico da América Latina. Pesquisei matérias sobre o evento e não encontrei nenhuma referência ao fato do continente ter se tornado o principal mercado dos produtos brasileiros, nem qualquer estatística pertinente. Não é de hoje que a América Latina vem consolidando essa posição; mas, de uns anos pra cá, estes números alcançaram uma magnitude tal que a informação precisa forçosamente chegar a todos os brasileiros.
Quando afirmo que a América Latina é o maior mercado de produtos brasileiros, não digo tudo. Há um fator tão ou mais importante que isso: a América Latina é, sobretudo, o melhor comprador. Para efeito de comparação, voltemos à China. A festejada China importou do Brasil, em 2008, um total de 18,21 bilhões de dólares, o que representou um crescimento de 50% sobre o ano anterior, além de corresponder a 9,2% da receita total das exportações brasileiras. É um número fantástico, ainda mais se considerarmos que, na década de 90, as compras chinesas não passavam de 1,5 bilhão de dólares. Mas a China, mesmo aumentando de forma tão espetacular as compras de produtos brasileiros, não é nosso melhor comprador. É um comprador excelente, um mercado no qual devemos continuar investindo e acreditando, mas, por enquanto não é, definitivamente, o destino mais interessante das exportações nacionais.
Nos quatro primeiros meses do ano corrente, período em que ela se tornou “a primeira compradora individual de produtos brasileiros”, a China importou do Brasil, basicamente, minérios e soja, que responderam juntos por 73% de suas compras. O item “minérios” respondeu por 46% das importações chinesas de produtos brasileiros. Esses minérios – com predomínio de ferro bruto – foram vendidos pela bagatela de 57 dólares a tonelada. Ou seja, a China comprou uma tonelada de minério brasileiro pela metade (ou um terço) do preço de um tênis Nike. Esse preço, aliás, até que melhorou muito. Há dez anos, o Brasil exportava ferro a menos de 20 dólares a tonelada. Na média, as exportações brasileiras para a China em 2008 registraram preço de 106 dólares a tonelada.
Há uma outra tabela que mostra bem como, em se tratando do gigante asiático, devemos evitar excessivo entusiasmo. Em 2008, a balança comercial brasileira com a China ficou negativa em 2,62 bilhões de dólares. E o Brasil, ao contrário da China, importa produtos de alto valor agregado de seu parceiro: metade das exportações chinesas para o Brasil é de produtos eletrônicos (com preço médio de 15.378 dólares a tonelada) e componentes para reator nuclear (preço médio de 8.053 dólares). No total, o preço médio das exportações chinesas para o Brasil, em 2008, ficou em 2.900 dólares a tonelada; e saltaram de 1,8 bilhão de dólares em 2002 para 20,83 bilhões em 2008.
Agora concentremo-nos sobre as exportações brasileiras para a América Latina e Caribe, que atingiram 51,19 bilhões de dólares em 2008, respondendo por 26% da receita cambial no período, com aumento de 22,5% sobre o ano anterior. Em virtude desse desempenho, a região isola-se no primeiro lugar no ranking dos principais importadores de produtos brasileiros, bem à frente da União Européia, Ásia e Estados Unidos. É interessante analisar a qualidade destas exportações: a América Latina se notabiliza como principal escoadouro dos manufaturados nacionais. Em 2008, o preço médio das exportações brasileiras para a América Latina alcançou 1.177 dólares a tonelada.
Comparem: em 2008, o preço médio das exportações brasileiras para a Europa ficou em 361 dólares, revelando que o Velho Mundo só importa mercadorias nacionais de baixo valor agregado, como minérios... e soja; o que me lembra uma frase de Adam Smith: “a variedade de mercadorias cuja importação está proibida na Grã Bretanha, de maneira absoluta ou em certas circunstâncias, supera em muito o que supõem os que não estão bem familiarizados com as leis alfandegárias”. A Europa ainda é fortemente protecionista.
Os principais produtos brasileiros vendidos para a América Latina são: veículos, petróleo, reatores nucleares, máquinas eletrônicas e aço, que possuem um alto valor agregado. Vejamos, por exemplo, o item “Máquinas, Aparelhos e Material Elétricos”, ou simplesmente eletrônicos, que inclui os produtos com o maior valor agregado da pauta comercial brasileira; em 2008, a exportação desses produtos gerou 6,89 bilhões de dólares, respondendo por 3,5% na balança comercial brasielira e situando-se acima das vendas dos tradicionalíssimos açúcar e café. Pois bem: a América Latina absorveu 58% das exportações brasileiras desse item (eletrônicos); os EUA vieram em segundo lugar, mas pagando preço médio bastante inferior: 9.694 dólares a tonelada, contra os 18.450 dólares obtidos nas vendas para a América Latina; a União Européia ficou num distante terceiro lugar; o destaque vai para a África, cujas importações de eletrônicos brasileiros cresceu 49% em 2008, atingindo 305,92 milhões de dólares, ultrapassando a demanda asiática.
Há um fator extremamente importante. Na balança comercial brasileira com a América Latina e Caribe, o saldo em favor do Brasil atingiu o recorde de 22,61 bilhões de dólares em 2008. Este saldo registrou seu primeiro pulo de 2002 para 2003, quando passa de 3,13 bilhões para 6,47 bilhões; no ano seguinte, outro pulo, para 12,45 bilhões; daí em diante, vem batendo recordes sucessivos. Comparando: em 2008, registramos saldo positivo de 1,84 bilhão de dólares com os EUA, de 10,20 bilhões com a Europa, e saldo negativo de 2,6 bilhões com a China. No cômputo geral, o saldo cambial brasileiro no ano passado totalizou 24,83 bilhões de dólares.
Está claro, portanto, que a América Latina tem sido, nos últimos anos, a principal responsável pelos saldos positivos de nossa balança comercial. Guarde esses dados na memória, e pense neles quando ouvir alguém acusando o Brasil de estar sendo tolerante em excesso com seus vizinhos, ou desmerecendo encontros oficiais entre líderes latino-americanos. Eles – los hermanos - podem ser criticados por nacionalizar nossas refinarias na Bolívia, alongar suas dívidas em Itaipu, ou barganhar com a Odebretch no Equador; mas é injusto omitir que são nossos mais nobres e importantes parceiros comerciais.
Na América Latina e Caribe, os parceiros do Brasil mais importantes são Argentina, Venezuela, Chile, México, além da pequena ilha anglófona de Santa Lucia – que importa grande quantidade de petróleo brasileiro. Peru, Colômbia, Uruguai, Bolívia e Equador também merecem destaque. Comecemos analisando nossa relação com a Argentina.
A balança brasileira com a Argentina era negativa até 2003. A partir de 2004, o Brasil começa a registrar saldos positivos expressivos, com recorde em 2008, quando atingiu 4,34 bilhões de dólares. A corrente de comércio - exportação + importação – entre Brasil e Argentina cresceu formidavelmente nos últimos anos, alcançando 30,86 bilhões de dólares, valor similar ao que os EUA registravam até 2003. Também é próxima à atual corrente de comércio registrada entre Brasil e China, que em 2007 ficou em 25 bilhões de dólares (e em 2008 foi de 39 bilhões). Considerando que a Argentina tem uma população de 40 milhões, contra 303 milhões nos EUA e 1,32 bilhão na China, vê-se que é um volume estupendo.
Os principais produtos brasileiros exportados para a Argentina são: veículos, reatores nucleares, eletrônicos; os mais nobres de nossa pauta comercial. Nossos eletrônicos - indicados no item Máquinas, Aparelhos e Material Elétricos - foram exportados para a Argentina por 19.216 dólares a tonelada, patamar muito superior ao registrado nas vendas de artigos similares para Europa e EUA. No total, o Brasil exportou 1,71 bilhão de dólares em eletrônicos para a Argentina. A exportação do mesmo produto (eletrônicos) para os 27 países-membros da União Européia totalizou 758,20 milhões de dólares, com preço médio de 9.449 dólares a tonelada.
Outro mercado latino interessantíssimo é a Venezuela. Quem ler nossos jornais pensará que se trata de um país altamente nocivo para a economia brasileira. A verdade, porém, é que, independente do que se pensa sobre Hugo Chávez, a Venezuela consolidou-se como um de nossos compradores mais qualificados, importando do Brasil manufaturados de altíssimo valor. Os principais artigos brasileiros vendidos para a Venezuela são eletrônicos, autopeças e reatores nucleares, além de carne, leite e animais vivos. As exportações brasileiras de carne para a Venezuela passaram de zero há dez anos para 960,02 milhões de dólares em 2008; em relação ao ano anterior, o crescimento foi de 193%. A venda deste item – assim como de leite, animais vivos e cereais - provavelmente conecta-se a problemas temporários de abastecimento no país, mas isso mostra que o Brasil estabeleceu-se como fornecedor confiável de gêneros alimentícios de primeira necessidade. O Brasil vendeu ainda um total de 624,15 milhões de dólares em eletrônicos para a Venezuela, a um preço médio notável, de 30.170 dólares a tonelada. A balança comercial brasileira com a Venezuela, que era negativa nos anos 90, começou a se tornar positiva na virada do século e encerrou o ano 2008 em 4,61 bilhões de dólares.
Em terceiro lugar no ranking dos principais importadores latino-americanos de produtos brasileiros, vem o Chile, grande comprador de petróleo, veículos, reatores nucleares, aço e eletrônicos. O preço médio das exportações para o Chile em 2008 atingiu 1.227 dólares a tonelada. O Brasil obteve saldo comercial positivo com o Chile de apenas 713,07 milhões de dólares, porque o país, além de comprar muitas mercadorias brasileiras, também exporta grande quantidade de artigos para o Brasil. As exportações brasileiras para o Chile totalizaram 4.79 bilhões de dólares, ao passo que o Brasil importou o equivalente a 4,07 bilhões em produtos chilenos.
Adam Smith defendia uma tese que, como tantas outras de sua lavra, continua válida hoje. Afirmava que a riqueza das nações não está na quantidade de ouro ou prata acumulada em cofres particulares ou públicos; o principal tesouro das nações reside na produção de mercadorias, incluindo aí os recursos naturais disponibilizados para consumo interno e exportação. “Se houver falta de matérias-primas para a indústria, esta tem que parar. Se houver falta de gêneros alimentícios, a população passa fome. Mas se faltar dinheiro, o escambo supre a sua falta, embora com muitos inconvenientes. Para remediar esses inconvenientes, poder-se-á comprar e vender a crédito, ou então, os diversos comerciantes poderão compensar seus créditos entre si, uma vez por mês ou uma vez por ano. Por outro lado, um sistema de papel-moeda bem organizado pode suprir a falta de dinheiro em moeda, não somente sem inconveniente algum, mas até, em certos casos, com alguma vantagem. (...) As mercadorias podem servir a muitos outros objetivos, além de comprar dinheiro, ao passo que o dinheiro não serve para nenhum outro objetivo, senão comprar mercadorias. Por conseguinte, o dinheiro necessariamente corre atrás das mercadorias, ao passo que estas nem sempre ou necessariamente correm atrás do dinheiro.” Analisando as terríveis e prolongadas guerras empreendidas pela Inglaterra, Smith conclui que só foi possível financiá-las através da produção e exportação de mercadorias. “A enorme despesa da última guerra deve ter sido paga, principalmente, não pela exportação de ouro e prata, mas pela exportação de mercadorias britânicas de várias espécies. (...) As mercadorias mais adequadas para serem transportadas a países distantes, a fim de lá comprar o pagamento e as provisões de um exército, parecem ser os manufaturados mais finos e mais aperfeiçoados”.
Falamos, enfim, de um país que, pela primeira vez na história, vislumbra uma luz no longuíssimo túnel de pobreza e subdesenvolvimento em que se meteu desde o seu descobrimento. Um país que exportou, em 2008, quase 200 bilhões de dólares, um valor quatro vezes superior ao praticado uma década atrás; e importou 173,10 bilhões, o que representou igualmente um crescimento surpreendente. Há dez anos, o Brasil registrava exportação de 48,01 bilhões e importação de 49,30 bilhões de dólares. Ao constatar o fluxo circular da vida econômica, Joseph Schumpeter afirma que todo indivíduo, mesmo sem disso ter consciência, é um sujeito econômico completo, comprador não apenas de pão, leite e carne, mas também, direta ou indiretamente, de minérios, ouro e bens de capital; e também, direta ou indiretamente, participa de todo processo de produção. “O processo social, na realidade”, diz o economista, “é um todo indivisível”. Para saber em que país vivemos e quem somos nós, portanto, importa conhecermos, minuciosamente, o que vendemos, pra quem vendemos, e qual o preço que nos pagam.
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E aqui você faz um download de 52 tabelas sobre o comércio exterior brasileiro com a América Latina (incluindo alguma coisa com a China, Europa e EUA).