8 de junho de 2009

Firulas literárias

(Mais sobradões da Gomes Freire, Lapa)

(Eu tinha apagado esse texto, que fazia parte de um post anterior, mas resolvi publicar de novo. É meio que covardia publicar e apagar depois. Qualquer confusão, eu explico nos comentários.)


Quero expressar uma insatisfação comigo mesmo e com as palavras. Depois que eu termino de escrever, é comum sair para dar uma volta na rua, com ou sem objetivo. Meus textos saem comigo, girando-me na cabeça. Penso numa palavra, numa frase. Quase sempre, repassando o texto mentalmente, descubro erros que provocam-me coceiras internas. Quero voltar logo, corrigir. Há erros fáceis de corrigir, outros que implicam em reformulações inteiras de um raciocínio. O problema reside na rebeldia natural de certas palavras, certos conceitos. Mal os formulo e publico-os, eles tomam vida própria e, ingratos, fogem por veredas opostas àquelas por mim esperadas. É irritante isso.

Por exemplo, num post passado, eu falei de intelectuais, elogiando-os, afirmando que eles são os maiores protagonistas da "liberdade de expressão". Depois lembrei-me, no entanto, quanta mediocridade, reacionarismo, pedantismo vulgar e idiotice existe nos meios intelectuais. Para vocês terem uma idéia, eu escrevi uma monografia na qual joguei meus pensamentos mais profundos sobre comunicação, estética, filosofia. Posso ter fracassado, mas a tentativa foi bastante nobre. Acreditam que a observação mais importante que um dos examinadores da minha banca conseguiu fazer foi que eu não havia feito justificação do texto à direita? Um professor universitário titular! É triste, mas já vi muitos casos similares.

Quando eu falo de intelectuais, portanto, falo apenas de mim mesmo. Não confio em mais ninguém. Não porque me considere mais inteligente ou coisa parecida. É que eu não conheço ninguém a não ser a mim mesmo, e olhe lá.

Muita gente tem implicância, e mesmo ódio, de intelectuais. Dou-lhes total razão. Não existe nada mais odioso do que um intelectual. E desconfio que intelectuais brasileiros são ainda mais irritantes. Porque o intelectual acha que sabe mais que os outros; e, no Brasil, esse sentimento de superioridade é agravado por razões históricas. Por exemplo: o sujeito que, atualmente, eu considero o mais imbecil dos seres humanos chama-se Roberto DaMatta. Ele me faz odiar intelectuais, além de causar-me um terror inaudito de um dia vir a tornar-me parecido com ele. Seu último artigo versa sobre um indivíduo que ele flagrou mijando na rua. Naturalmente, ele infere daí a desgraça profunda da personalidade brasileira. Eu também me aborreço muito com a mania dos cariocas de urinar na rua, mas usar isso para enfiar o dedo na ferida do brasileiro? Tenha dó!

Outro dia, ele gastou sua saliva melada para explicar como o hábito de assoviar para chamar o garçom correspondia a outra terrível inferioridade cultural do brasileiro, derivada de uma sociedade primitivamente escravocrata. O auge de seu brilhantismo, porém, deu-se quando ele narrou sua resposta a pergunta de sua filha sobre o porque de "hoje ser domingo": ele respondeu que a razão estava em amanhã ser segunda-feira - não sem antes auto-elogiar, sem ironia, a "profunda sabedoria" contida naquela frase.

Eu queria tanto encontrar uma expressão que ridicularizasse cabalmente esse tipo de puerilidade travestida em profundeza. É claro que um intelectual, um antropólogo, deve prestar atenção a cada detalhe do comportamento humano. Mas o intelectual, quando desprovido de bom senso, torna-se uma caricatura de si mesmo. Afinal, deve-se não apenas procurar as causas; é igualmente fundamental refletir sobre as consequências. Tudo se reúne, enfim, num sentido único, universal, cuja apreensão racional é o escopo de todo livre pensador. Não posso desculpar alguém que se leva tão à sério e se dá tanto valor como intelectual, usar um espaço nobre num jornal de grande circulação para reproduzir esse tipo de banalidade. De que mais irá falar DaMatta? Sobre o significado do peido na sociedade brasileira? Nem isso! Se falasse sobre o peido, pelo menos seria engraçado, e poderia até gerar algum pensamento original. DaMatta, contudo, se pretende extremamente sisudo e profundo. Sua descoberta sobre as diferenças culturais entre a esfera da casa e da rua valeram-lhe notoriedade acadêmica; seu inofensivismo beato e chulo de agora lhe valerá décadas de salário garantido. Se existir um inferno para intelectuais, no entanto, DaMatta seguramente terá um lugar reservado nos círculos mais tenebrosos. Qualquer dia eu releio a Divina Comédia para perguntar, ao mestre Dante, em qual círculo exatamente ardem os intelectuais pusilânimes e sonsos.

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Continuando o papo, peço desculpas a quem prefere posts concisos, mas tenho muito o que falar. Quando se fala de si mesmo também se aperta o botãozinho universal que liga e desliga o mundo. Também tenho muitas implicâncias, confesso. A pior de todas, quase uma doença, é a alergia a estereótipos. Irrita-me ser rotulado, embora saiba o quanto isso é inevitável e, portanto, o quanto minha irritação é inútil e infantil. Por exemplo, outro dia uma moça mandou-me email perguntando-me se eu queria participar de um movimento lá dela. Até aí tudo bem. O que me irritou foi que ela disse que havia conseguido meu contato através de um blogueiro que, provavelmente querendo se livrar da moça, disse a ela que eu "com certeza" toparia ajudá-la. Irritou-me profundamente alguém ter pretensão de me conhecer a ponto de falar que eu "com certeza" participaria de alguma coisa. Fiquei imaginando a figura que essa pessoa faria de mim: um sujeito que participa de qualquer coisa. São puerilidades, eu sei, mas isso é um blog com espaço sobrando, e não uma coluna no Globo com máximo de dez mil caracteres; e é importante pra mim contar isso, até porque se conecta ao que direi a seguir.

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Ser escritor, por exemplo. Esse é outro conceito que me entedia. A literatura contemporânea, a meu ver, tornou-se alienada, reacionária e, o que é o pior de tudo, extremamente enfadonha; e quando afirmo isso, imediatamente me incomodo com a possibilidade de alguém reagir com bocejos, pensando: "hum, que saco, o escritor engajado continua tagarelando..." Esse rótulo de escritor engajado me aborrece. Não gosto de me considerar um escritor engajado. Não quero ser "engajado". Quero ser um cidadão, um intelectual, um blogueiro, só isso; além disso, a literatura, na minha opinião, existe numa esfera destituída daquela moral que absorve os aposentados de Copacabana, e, portanto, sua mistura à política é sempre pertubardora aos politiqueiros de plantão.

Mas eu realmente entristeço-me ao observar artistas vestindo o figurino que lhes é oferecido. Calados, inofensivos, sonsos, astutos. Compreendo perfeitamente a necessidade de ser astuto. Invejo esse tipo de inteligência. Outra virtude que invejo é a ambição. Há momentos em que sinto-me aterrorizado com a ausência, em mim, de qualquer tipo de ambição. Como se eu fosse um mutilado, cujo destino miserável e obscuro já estaria traçado. Quer dizer, eu tenho ambições. Mas todas são exclusivamente subversivas, tipo ler os clássicos, antigos e modernos, em suas línguas originais.

Não sei. Venho formando algumas convicções literárias e esse blog é meu bloco de rascunho. Ne jamais parler de littérature, era o lema de Stendhal e seus amigos. Eles discutiam política e economia, falavam de amor e guerra, não perdiam tempo com literatices. Literatura era seu ganha-pão, a paixão secreta de cada um. Mas a literatura fala de coisas reais, concretas, fome, angústia, revolução. Lima Barreto seguia essa linha; construiu sua trajetória literária em jornais alternativos, onde praticava a esgrima ideológica contra o PIG da época. Mas é errado procuramos exemplos nos compêndios amarelados da história. O passado oferece modelos para todos os gostos, e pegamos, naturalmente, os que nos convém. Devemos ser originais, ora bolas! E que outros sigam nosso exemplo!

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Quando falo de literatura toco em pontos que interessam a todos, porque suas consequências extravasam o campo estético. Há uma discussão que se repete nos fóruns literários, e hoje, sexta-feira 05 de junho, o Globo publicou entrevista com o escritor português Lobo Antunes em que ele se alinha aos que consideram a linguagem a única esfera válida para a literatura. O conteúdo, para os escritores dessa escola, não importa.

Eu discordo profundamente. Acho que essa é uma visão retrógrada, ingênua e confortável, de quem pretende justificar esteticamente sua própria incompetência narrativa. Claro que o conteúdo é importante! Faulkner revolucionou a forma, mas seus livros nunca seriam obras-primas não fossem possuídos de um profundo cuidado em torno do conteúdo. A mesma coisa vale para Guimarães Rosa, James Joyce, e para todos os escritores que se notabilizaram como mestres da forma. Forma e conteúdo operam juntos, inseparáveis, e querer dar prioridade a um desses fatores em detrimento do outro é sinal apenas de complexo de inferioridade em escritores que se acham fracos num deles.

2 comentarios

Digo Letras disse...

A discussão na verdade me parece seguir pelo viés da apropriação do conhecimento, ou seja, pelo que a academia considera bom ou ruim. Eu estudo na UFMG e percebo que o que importa de fato não é a discussão a respeito dos diversos temas, mas as propostas pré-concebidas do professores. Aos alunos que querem discordar levanta-se um coral de outros alunos a apoiar os professores, e não porque concordem com suas idéias, mas porque tem medo de questionar. Pior, porque não se acham capazes de "rivalizar" com o conhecimento dos "mestres". Creio que é o medo de pensar pela própria cabeça.
De qualquer modo, questionar é necessário, mesmo que não se proponha nada, acredito no poder do questionamento, até porque ele pode abrir as portas para novas propostas.
Quanto a esta coisa do contéudo, fico pensando que talvez seja mais um fenômeno do tempo, porque vivemos em uma época profundamente apolínea. Assim, a literatura parece refletir isso, uma poética vazia de significação. De fato, a arte, no meu ponto de vista, tem duas grandes funções, que vão além de seu aspecto puramente estético: estimular a reflexão e servir como um documento de seu tempo, isto é, trazer marcada em sua expressão o tempo, a cultura e os valores em que foi produzida; ainda que os gênio acabem por extravazar seu tempo e costumam andar à frente de sua época.
Bom, é isso aí.

Um abraço.

Miguel do Rosário disse...

Olá Rodrigo, pois é, o questionamento tem um valor fundamental porque, mesmo que intuitivo, e por isso mesmo, mesmo que, eventualmente, equivocado, ele abre a discussão para novas formas de ver as coisas.

abraço,
miguel

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