21 de julho de 2005

A crise não é de hoje

Arte Contemporânea Chinesa

A atual crise brasileira insere-se numa crise maior do moderno socialismo mundial. Esse socialismo democrático que decidiu não romper com as regras jurídicas globais sobre questões chave como o direito à propriedade privada e às liberdades individuais.

A liberdade de expressão, outro princípio fundamental das democracias modernas, também é aceita e defendida incondicionalmente pelo socialismo contemporâneo que pregam os partidos de esquerda da atualidade. No entanto, vemos como a liberdade de imprensa se volta contra as próprias instituições democráticas, visto que a imprensa é privada e representa interesses de seus próprios donos mais do que os interesses da nação.

O problema é que, após a queda dos regimes comunistas do Leste Europeu e da Rússia, e da avalanche teórica produzida pelos economistas neo-liberais, a esquerda ficou realmente desamparada do ponto-de-vista conceitual.

Após o fracasso econômico, social e político de diversos regimes neo-liberais na América Latina, os partidos de esquerda começam a tomar o poder. No entanto, o mesmo vazio conceitual, a mesma perplexidade teórica, que tinham enquanto oposição aos regimes conservadores, eles demonstram no poder.

Chávez, Kirchnner, Lula, e qualquer outro governante de "esquerda", enfrenta e enfrentará esse tipo de problema.

Naturalmente, o exercício do poder pelas esquerdas é que, somente agora, possibilitará aos intelectuais contemporâneos, escreverem as novas receitas, lastreados em experiências reais, em crises reais, e não mais em abstratas teses acadêmicas sobre como seriam governos de esquerda na América Latina.

Kant já dizia que todo e qualquer conhecimento só começa pela experiência. Isso porque, apesar de existirem juízos puros, que não são dependentes da experiência para serem demonstrados, somente a experiência nos toca os sentidos e nos faz pensar sobre o ser e o mundo.

Se este processo é doloroso e angustiante, isso só corrobora sua dignidade e sua necessidade, pois as grandes descobertas conceituais costumam sempre ser acompanhadas de algum tipo de sofrimento.

A deficiência da esquerda estava ligada justamente à distância que estava do poder. Na medida em que ela atinge o poder, todos os seus dilemas e crises internas são extraordinariamente amplificados, porque são expostos à sociedade, porque são cobrados diretamente pelos outros poderes da democracia, o legislativo e o judiciário, instâncias que, dependendo do momento histórico, atuam do lado conservador ou do lado progressista.

Com os erros de Lula e do partido dos trabalhadores, poderemos construir, para o futuro próximo, uma nova esquerda, que seja lastreada em sólidos fundamentos econômicos, políticos e éticos. Não estou dizendo que o governo Lula e o PT acabaram. Pelo contrário, caso tenham musculatura política para vencer a oposição golpista, Lula e o PT sairão da crise mais experientes. Todos saíremos mais experientes.

Os políticos de esquerda no Brasil estão desorientados diante da crise porque é o próprio socialismo que ainda não foi devidamente modernizado, enriquecido, conformado às realidades complexas das sociedades contemporâneas. É impressionante como a direita consegue, às vezes, ser bem sucedida em seus ataques conceituais, e ainda mais impressionante como a extrema esquerda se junta no mesmo palanque dessa direita para enfiar, sem dó, o dedo na ferida que também é dela, visto que a extrema-esquerda também não sabe como vencer, por exemplo, o imperialismo americano. A extrema-esquerda não consegue nem eleger vereador, como saberá enfrentar o poderio das classes conservadoras no Brasil?

Marx foi um grande pensador, o maior filósofo de todos os tempos, segundo pesquisa recente feita por uma respeitada instituição inglesa. No entanto, creio que até Marx enfrentaria muitas crises se ele tivesse tido a oportunidade de exercer o poder. Creio que muitos dos dilemas enfrentados por Lênin, Mao, Stálin e Fidel, seriam também vividos por Marx e ele seria obrigado a responder da mesma forma.

Outro pensamento importante que tive em relação à crise atual é que a história é feita pela força e pelo pensamento. Mas é a força o elemento preponderante quando se vive, no calor do momento, a história. Vale o sangue frio, o cálculo, a capacidade de argumentação, a força militar, a força física mesmo.

O pensamento não é afeito às correrias do momento. É por isso que a sociedade brasileira, no momento em que se atacava Getúlio, apoiou o ataque. Mas após a morte do líder trabalhista, que possibilitou uma profunda reflexão, a opinião pública mudou de lado. È por isso que a sociedade brasileira, sobretudo grande parte da classe média e a quase totalidade da classe alta, apoiou o golpe militar; mas mudou de opinião após pensar melhor sobre a questão. É por isso que tanta gente no Brasil, envolvido pela atmosfera opressiva de confusão, adere ao discurso "forte" da direita e da extrema-esquerda, como sempre subitamente "fortalecida" pela grande mídia, que a usa, como sempre usou, para seus próprios interesses.

Às classes conservadoras sempre interessou a existência de uma esquerda de fachada, histéria, inofensiva, insignicante eleitoralmente, para transmitir ao mundo a imagem de que vivemos uma democracia real.

A ironia disso tudo é que os trabalhadores nunca obtiveram avanços expressivos enquanto foram respeitadores do Estado de Direito. Até porque o Estado de Direito sempre foi um instrumento usado pelas classes dominantes para conservar o poder.

Vargas fez uma revolução porque o processo eleitoral no qual venceu seu adversário foi uma farsa, uma grande corrupção. Usou a força física. O PT, enquanto integrante de uma frente maior pela democracia e inimigo visceral de estratégias de força física, dificilmente conseguiria chegar ao poder enquanto não usasse das mesmas regras usadas por seu adversários.

O erro foi interpretar esse advérbio "dificilmente" em sua pior acepção. O erro foi cair na tentação de optar pelo caminho mais fácil.

Errou sim, e feio. Mas não morreu. Todos nós erramos. Aprendemos com nossos erros. O PT ainda é o principal partido de esquerda da América Latina. Seu fim seria uma derrota terrível não apenas para os trabalhadores brasileiros, mas de todo mundo. É notório que os olhos dos trabalhadores do mundo inteiro estão, desde a vitória de Lula, voltados para o Brasil.

A luta pela justiça social não nasceu com Lula ou PT. É uma luta muito antiga, que talvez tenha nascido junto com a espécie humana, e desta fonte, estou seguro, é que jorram todas as coisas boas da humanidade: poesia, filosofia e teorias políticas.

Não subestimemos a importância do Estado para as artes e para a felicidade social. É interessante reler a Razão na História, de Hegel, para entendermos como as artes, a filosofia, a religião, dependem da existência do Estado, assim como o Estado depende da existência da arte, da filosofia e da religião. Sim, também da religião, pois esta é que nos ensina a produzir mentalmente algo superior à nós mesmos. As leis humanas são transcrições modernas das leis religiosas. Nas profundezas do espírito humano é o respeito às leis divinas que respeitamos mais. Não matamos porque temos medo de sermos presos, mas porque possuímos uma moral universal.

O que estamos vivendo agora servirá como injeção de adrenalina em toda pessoa politizada. Para a esquerda, vale o alerta para seus intelectuais e artistas. As populações pobres da América Latina não merecem outra decepção histórica. Elas não suportam mais sofrimento.

Quero ainda advertir as classes altas no Brasil: a criminalidade nas grandes metrópoles chegou a um nível insuportável e somente o desenvolvimento social irá trazer paz às cidades. Que não tentem depor um líder carismático como Lula. Isso acarretaria um terrível risco de convulsão social. Os pobres não lêem o Globo. Eles amam Lula e acreditam nele, porque Lula simboliza o povo. Que achem então alguém melhor que Lula, mas não tentem tirá-lo para colocar Alckmin no lugar. Não vai dar certo. Também não acredito no Garotinho, com sua política de segurança pública violenta e seu menosprezo pelas instituições.

É hora de voltar aos livros, de lermos e relermos os clássicos e, principalmente, de escrevermos os clássicos politicos da modernidade. Não esqueçamos de que o domínio do conhecimento é a única coisa que, no longo prazo, garante o poder. A fragilidade das esquerdas ainda é essa: falta-lhe solidez conceitual para superar os conservadores. A classe dominante sabe escrever, sabe falar, sabe manipular mentes e corações, sabe exatamente onde atacar o governo Lula, como destruir suas bases sociais. Muitos políticos e intelectuais de esquerda ainda não sabem como se defender. A própria fragilidade conceitual do socialismo moderno os deixa desamparados. Não vale mais citar Marx. O momento é de produzirmos novos pensamentos, novas respostas a um mundo cujos modos de produção se desenvolvem febrilmente, produzindo novas classes, novos dilemas e, felizmente, novas soluções a cada instante.

Intelectuais: chega de desencanto, chega de covardia, chega de melancolia. É hora de botar a cachola pra funcionar e produzirmos os livros que embasarão os governos progressistas latino-americanos dos próximos cem anos.

Nesse momento, é necessária uma união firme e combativa de trabalhadores e intelectuais contra o sofisticado, discreto e perigoso golpismo das elites e da mídia. No curto prazo, a história é escrita pela força, então mostremos, sindicatos, movimentos sociais, estudantes, intelectuais e povo em geral, nossos músculos. Mas não resolveremos os dilemas atuais do socialismo apenas atacando a direita brasileira e seu braço midiático. A esquerda, desde que optou pela democracia, pelo respeito as leis e pela convivência com a liberdade da imprensa, estará sempre vulnerável a crises desse tipo enquanto não tiver produzido uma bibliografia sólida que permita, assim como permitiu pessoas como Lênin e Mao, elaborar programas de ação que eletrizem as massas com uma esperança que não se dissolva na primeira crise, mas que seja dura como o diamante; duradoura e firme como o anseio milenar dos homens por justiça e liberdade.

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