19 de julho de 2005

Mais crise

Nadando contra a corrente

Por Miguel do Rosário*

Para encontrar algumas respostas sobre a atual crise política, precisamos sair um pouco do Brasil, onde o ar parece empestiado e fazer uma breve visita a nosso irmão do norte. Por exemplo, sempre me perguntei, perplexo, como um país como os Estados Unidos, com uma elite intelectual tão poderosa, pôde se curvar à racionalidade estúpida da guerra?

Durante os meses que antecederam a invasão do Iraque, acompanhei obsessivamente a imprensa norte-americana, seus colunistas, suas coberturas sobre os perigos de Saddam, suas reportagens sobre os filhos de Saddam. Lembro que notei, em todo o período, um grande "acordão" entre a grande mídia no sentido de produzir uma legitimidade crítica, democrática, lastreada na opinião pública, sobre a importância dos EUA invadirem o Iraque. Os intelectuais que combatiam essa racionalidade não tinham estatura ou bagagem conceitual para serem efetivos. E quando o tinham, como o linguista Noam Chomsky, eram completamente excluídos da grande mídia.

Aqui no Brasil, vejo uma situação semelhante no que toca ao uso da mídia para a realização de determinados objetivos políticos.

Dito isto, centremos nosso debate sobre a crise política ora em curso no país. Setores da esquerda acusam a direita de estar patrocinando a crise, através de seus braços midiáticos e partidários. Outros, tanto da esquerda, quanto da grande área "neutra", que inclui sobretudo jornalistas e analistas políticos, acreditam que a crise foi produzida pela própria esquerda, como um homem-bomba que explodisse em casa, matando sua própria família.

Como quase todas as verdades, o correto está na média ponderada destas duas opiniões. A crise política vivida pelo PT é a eclosão de uma crise reprimida até o momento, contida pela aura de vitória provocada pela eleição de Lula e pelo crescimento do partido, uma crise do próprio socialismo mundial. Naturalmente, a direita, com auxílio luxuoso de seu histórico aliado, a mídia oligárquica, sabe explorar ao máximo essa crise interna do socialismo. Da mesma forma que a esquerda também nunca deixou de se beneficiar das contradições, erros e fraquezas conceituais nas idéias e projetos de seus adversários.

Antes de prosseguirmos, façamos uma breve digressão sobre os termos esquerda e direita. Muita gente, hoje em dia, incluindo grande parte do mundo acadêmico, não gosta mais desses conceitos. Os termos são, de fato, ultrapassados, mas não temos, por enquanto, outros mais adequados. Eu uso esses termos utilizando o senso comum. A linguagem, apesar de dinâmica, é sempre conservadora. Mudar, de forma significativa, uma forma de falar, leva décadas, para não dizer séculos.

Nesse momento, psicografo críticas de vários leitores: "Mas e a corrupção? E o caixa 2 do PT? E Delúbio Soares, Marcos Valério, onde ficam nessa história? Você está tergiversando... A crise não é ideológica. De fato, o que há é somente corrupção, e só isso".

Respeitando a opinião de todos, discordo. Em primeiro lugar, a questão criminal ainda não está esclarecida. O que há, confessadamente, é caixa 2 de campanha. Admite-se que todos os partidos o fazem. Se todos os fazem, é uma prática política, e a legislação eleitoral terá que ser atualizada ou, então, autuar a todos os partidos. Culpa-se o PT por ter pregado a ética e a diferença, mas novamente temos aí uma hipocrisia generalizada. Chegaria o PT aonde chegou sem usar dos mesmos instrumentos de seus adversários? As regras de uma luta não são impostas por um ou outro contendor, mas pela própria luta. Se há erros, é na própria disputa, não no PT. Os segmentos sociais representados pelo PT exigiam a vitória política e não a intransigência a princípios jurídicos. Se os trabalhadores fossem tão agarrados a princípios jurídicos, conforme agora se decreta na mídia, não haveria invasões de terra ou de prédios vazios.

Sei que incorro agora em argumentos arriscados, mas é preciso que ponhamos os pontos nos is. O PT foi um partido fundado por trabalhadores; seus erros, portanto, não são apenas de seus dirigentes, são erros da classe trabalhadora em sua ânsia, justificada, legítima e nobre, de atingir o poder. Em outros tempos, os trabalhadores já fizeram muito pior do que caixa 2 de campanha: já fizeram revoluções sangrentas. É claro que a classe média moralista arrepia-se ao escutar o argumento de que "os fins justificam os meios". Não se trata disso. No caso, trata-se de disputa política. As relações de poder só mudam quando os de cima perdem suas cabeças. Sem a vitória política, os trabalhadores nunca chegariam ao poder, e a sociedade brasileira seria mantida, sabe-se lá por mais quantos anos, na obscuridade quanto às práticas partidárias e à corrupção estatal.

Os trabalhadores no poder foram desajeitados? Não tiveram competência de abafar CPIs? Não conseguiram abafar os escândalos de corrupção? Não conseguiram mentir? Excelente. Isso mostra, mais uma vez, que a classe trabalhadora possui uma moral superior à moral das elites.

Agora, é preciso esclarecer. A classe trabalhadora erra. Não se pode confundir a classe trabalhadora com um coro de anjos. Os trabalhadores bebem, gostam de mulheres (ou homens), gostam de viagens, diversão, tem problemas financeiros, ficam doentes, suas esposas (ou maridos) também gostam de roupas bonitas, assistir filmes, ir à praia. Enfim, a classe trabalhadora é composta de seres humanos, vulneráveis, como todos, à corrupção. O fato de que, em sua grande maioria, o político que representa a classe trabalhadora ter sido sempre pobre e tenha passado por necessidades financeiras, não ajuda em nada. Pelo contrário, sabe-se que grande parte dos corruptos vieram de famílias humildes. É a velha história, a velha promessa de "nunca mais passarei fome" e daí para o vale tudo é um pulo.

Agora, quando vemos parlamentares do PFL tentarem cassar o próprio partido dos trabalhadores por motivo de corrupção, temos uma violação inadmissível das regras democráticas. Parlamentares do PSDB, PFL e PMDB sempre estiveram envolvidos em práticas de corrupção, caixa 2, e nunca sequer se cogitou em cassar os partidos, e sim as pessoas acusadas.

Qualquer candidato a vereador nesse país sabe que, para se eleger, é preciso dinheiro. Esse, aliás, é o grande problema do capitalismo democrático. Elege-se com dinheiro. O marketing, a publicidade, as relações públicas, são instrumentos necessários, essenciais, mas extremamente dispendiosos. Eu tenho uma parente que tentou se eleger vereador por Juiz de Fora, pelo PCdoB, perdeu e está endividada até hoje.

Em outros termos, a classe trabalhadora também precisa de dinheiro para eleger seus candidatos. Marcos Valério conseguiu empréstimos para o partido dos trabalhadores? O problema é de Marcos Valério e da direção do partido naquele momento. Valério, na época, era um sujeito de ficha limpa. E muitas empresas, para conseguir empréstimo no banco, apresentam como garantia contratos com estatais. Isso é normal. Fidel Castro conseguiu dinheiro até com a CIA para financiar a guerrilha.

No caso de Marcos Valério, ele não apenas tinha contratos ainda maiores com empresas privadas, como também com o governo tucano de Minas. E, sempre é bom lembrar, a maioria de seus contratos vieram do governo federal anterior.

Tem problemas aí? Com certeza, deve ter. Dirigentes do PT erraram ao aceitarem a intermediação de Valério. Arriscaram demais e puseram em risco o próprio patrimônio ético e político do PT. Mas daí a culpar o próprio partido dos trabalhadores, é jogar a culpa de um erro de alguns sobre toda a classe trabalhadora representada pelo PT.

Está se produzindo uma grande confusão na opinião pública, com vistas a invialilizar a reeleição de Lula em 2006. Fatos díspares, sempre negativos ao PT, são lançados diariamente na mídia. Não importa a correlação entre eles. Muitos deles são falsos, distorcidos, misturados a acusações reais. O que importa é debilitar, ou mesmo destruir, politicamente a mais forte instituição democrática já construída pelo proletariado nacional.

Sem apoio dos principais meios de comunicação, dos principais segmentos econômicos, Lula e o PT, serão obrigados a comunicar-se diretamente com as massas.

Valter Pomar, vice-presidente recém empossado do PT, escreveu artigo interessante publicado no site do partido, entitulado "Don't Panic: a saída está na margem esquerda", em que argumenta que há um novo projeto político e econômico querendo ser imposto no Brasil, e que não inclui o aumento do salário mínimo que Lula prometeu e vem cumprindo (lenta e prudentemente, mas firmemente). Não inclui o fim do endividamento externo. Não inclui uma Alca soberana para o Brasil. Esse projeto pretende trazer um forte crescimento econômico lastreado numa redução brutal dos gastos públicos, elevação do superávit para até 7% e super-exploração dos trabalhadores.

É esse o Brasil que nos espera, caso o PSDB consiga retomar as rédeas da nação. Infelizmente, não tenho ilusões quanto à posição da maioria dos intelectuais. Um crescimento desse porte pode trazer grande benefício para as classes letradas, no curto prazo. É bom pra classe média, e pode inclusive ser bom pra cultura no curto prazo (venda de livros, peças de teatro, cinema, etc). A opinião pública visível (cartinhas pra jornais, sites e revistas) entrará, como sempre entrou, na onda anti-PT e anti-Lula. Convencer o povo será tarefa mais difícil, mas com um bombardeio televisivo intenso, talvez dê resultados satisfatórios.

Esse projeto político, contudo, é ruim para o povo, para a agricultura familiar, para a grande massa de excluídos. No longo prazo, é um projeto insustentável. É novamente a burguesia querendo chupar o sangue do povo, buscando manter seus privilégios por mais uma ou duas décadas. Mesmo a cultura será prejudicada, pois continuará restrita ao mesmo grupo de privilegiados. A indústria do livro nunca atingirá a massa da população, permanecendo, após um breve boom, estagnada como sempre.

Isso sem contar que, dominando o Brasil, líder da América do Sul, a alta burguesia dá um passo importante para a derrubada de outros governos progressistas do continente: Venezuela, Argentina, Uruguai e os próximos governos de esquerda do Chile, Peru e Bolívia.

Odeio teorias conspiratórias, mas não há como deixar de observar que os serviços de inteligência dos Estados Unidos (CIA e Casa Branca) podem ter detectado que a única maneira de freiar os ímpetos revolucionários que começam a despertar na América Latina é derrubar Lula e recolocar um governante submisso aos interesses do capitalismo norte-americano: a saber, Geraldo Alckmin ou qualquer outro candidato do PSDB.

* 30 anos, jornalista e escritor. Editor do site Arte & Política (www.arteepolitica.com.br). Colunista da revista Novae (www.novae.inf.br).

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