15 de julho de 2008

Onde os fracos têm vez


Anatole France dizia que a principal distinção entre homem e animais era a mentira. Não sei se concordo, porque os bichos sabem se disfarçar muito bem. Para mim, o que mais distingue os homens é sua fraqueza. E compreender e até gostar de suas fraquezas. Estou mais com Graciliano Ramos, que não queria livrar-se seus defeitos, porque sem eles, dizia, perderia sua própria personalidade. Lembro essas coisas para falar de uma peça de teatro.

Jornalista revoltado, ególatra, neurastênico, isola-se numa choupana distante da cidade, em busca de sossego. Um amigo o descobre lá e decide fazer uma visita, trazendo uma mala cheia de bebidas. Os dois iniciam um diálogo agressivo, marcado pelos furiosos desabafos do protagonista. Assim resumo personagens e trama de Efeito Urtigão, assinada e interpretada por Mario Bortolotto, com participação do ator Paulo de Tharso.

Marcos - o jornalista - não parece interessado na opinião de Emerson, o amigo. Diz, ou melhor, vocifera, o que pensa com uma franqueza brutal. O amigo está lá, atento. Vê-se, pelas caretas, que não aprova algumas coisas, mas entende tudo. Um dos elementos bonitos da peça é justamente essa compreensão. Que também é do espectador. O amigo de Marcos também somos nós, que ouvimos, divertidos, suas invectivas absurdas, ou nem tanto, tristemente sérias, hilariamente estapafúrdias.

O autor trabalha com muitos silêncios e uma trilha sonora extremamente precisa. Silêncio, olhares, discretas expressões faciais - realizando um teatro com notória influência do cinema, conforme o próprio autor reconhece. Com isso, faz um teatro dinâmico, moderno, sem cacoetes espetaculares ou circenses.

- Me diz o nome de uma só pessoa que gosta de você! Me dá um nome! Um só! - diz Marcos, desafiando o amigo (a citação é de memória, não literal). E aí temos outro elemento importante da peça: o afeto. Ou a falta de. A grande amargura, e também a grande liberdade, de Marcos é a ausência de afetos. Não tem amigos. Ou achava que não. Por isso a visita o perturba tanto. O amigo quer fazer uma reportagem sobre Marcos e sua vida de "Urtigão", o inesquecível personagem de Walt Disney. Eis um ponto engraçado: Marcos quer se comparar a Hunter Thompson, o fundador do jornalismo gonzo, que encerrou seus dias isolado num rancho, atirando nos raros e imprudentes visitantes. Mas Emerson prefere equipará-lo a um antipático caipira, que também perseguia, a tiros, os incautos intrusos.

Amizade, revolta e solidão. Eis os elementos centrais desse belo trabalho de Bortolotto, que aprendeu a fazer arte com os mil defeitos e fraquezas que nos fazem tão absurdos, patéticos - e surpreendentes.




PS: Neste final de semana, Bortolotto volta ao Rio com Kerouac, peça que ainda não assisti, mas da qual tenho excelentes referências. No teatro Ziembiski, de sexta a domingo.

1 comentário

josaphat disse...

Kerouac foi outro que se isolou...

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