Passei quatro meses na Itália no ano passado, em Florença. Minha mulher arrumou um emprego num restaurante e eu não fazia nada. Quer dizer, eu tinha meu trabalho burocrático, que me consumia algumas horas diárias de internet. O resto do tempo eu matava passeando pela cidade, e logo descobri várias bibliotecas. Resolvi usar meu tempo livre para ler a Divina Comédia, do Dante Alighieri, no original. Lia os jornais, La Reppublica e Corriere de la Sera, constatando, um pouco divertido, que a Itália conseguia ter ainda mais crises politicas que o Brasil. Na época do Romano Prodi, que havia conseguido vencer o indefectível Silvio Berlusconi, as crises eram diárias, sempre dramáticas, sempre ameaçando derrubar o governo. O sorriso triunfante de Berlusconi era presença obrigatória nas páginas políticas. Pouco tempo depois que eu saí de lá, o governo de Prodi caiu, e Berlusconi reassumiu o poder.
Eu lia Dante numa das bibliotecas comunales próximas à Piazza della Reppublica. Li todo o Inferno e comprei uma edição usada que trouxe para o Brasil, para ler a obra na íntegra, um dia desses.
Outro lugar que eu costumava ir era a Biblioteca Isolotto. Comprei uma bicicleta e pedalava até lá, passando por um belo parque às margens do rio Arno, atrás do hipódromo La Cascine. Fazia quase sempre sol e era um passeio muito agradável. Também costumava correr por lá e quando voltei ao Brasil, havia perdido uns cinco quilos e aprendido a fazer todo tipo de macarrão, que era o alimento mais acessível para um brasileiro ganhando em reais e gastando em euros. Descobri outros autores também. Li vários livros do Alberto Moravia e gostava de consultar autores latinos, sobretudo o elegante Sêneca, tentando me transplantar para os tempos do império.
Por fim, descobri Giacomo Leopardi, considerado o maior poeta italiano moderno. É uma poesia diferente, despretensiosa, culta, simples e enigmática. Sua grandiosidade é deliberadamente modesta, como um Beethoven tocado por uma flauta doce. O poema transcrito abaixo, e traduzido adiante, é um dos mais famosos, e um dos mais fáceis de serem assimilados em seu singelo mistério.
É um poema que me lembra muito a canção É doce morrer no mar, de Dorival Caymmi, até porque o poema encerra justamente quase repetindo o verso de nosso saudoso baiano.
*
Como chegamos na Itália? Um dia explico. Adianto apenas que não pagamos passagem. E nosso tempo estorou, ficamos ilegais, e não podíamos voltar antes de juntar dinheiro suficiente. Maior aventura. Não a repetiria hoje, porque a Itália endureceu severamente as leis contra imigrantes (que não era nosso caso, enfim, mas vá explicar isso para um carabinieri). Na verdade, na Itália, o turista pode ficar apenas 8 dias! Para ficar mais tempo, deve registrar-se na polícia. O tempo máximo de permanência é de 3 meses, válido para toda Europa. Quer dizer, se você ficar 2 meses na França, só pode ficar 1 mês na Itália.
A gente pensou, inicialmente, que os três meses valiam para cada país da Europa. Ou seja, podíamos ficar 3 meses na França, 3 meses na Itália, 3 meses na Alemanha, assim por diante, e quando, em Florença, visitamos o cônsul honorário para pedir maiores explicações, ele apenas nos olhou espantado e disse: agora é rezar para a polícia não pegar vocês!
A colônia brasileira em Florença é enorme. São os imigrantes mais tranquilos e trabalhadores. Há muita gente do sul do país por lá, trabalhando sobretudo nas feiras de rua. Ganha-se mais de mil euros por mês em qualquer trabalho que se faça. Apesar das coisas serem caras, há sempre opções bastante econômicas. A massa, o molho de tomate e o queijo, por exemplo, são mais baratos que no Brasil. A cerveja, bastante cara se comprada na rua, é barata no supermercado. Depois que a Priscila começou a trabalhar no restaurante e nossa situação financeira ficou um pouco mais folgada, eu comprava cerveja de vez em quando, geralmente a marca Moretti, ou então a Heineken, que era apenas 50 cents mais cara, mas era minha preferida. Aliás, de forma geral, a Heineken é minha cerveja preferida.
O imigrante brasileiro, como quase todo imigrante, é extremamente ligado às suas raízes e vive morrendo de saudades da terrinha. A grande maioria são pessoas simples, classe média baixa, que optam por viver na Itália pelas facilidades da língua (é muito mais fácil que o francês, o alemão e mesmo o inglês), de família (muita gente tem cidadania italiana, por possuir descendentes no país) e pela oportunidade de ganhar dinheiro com serviços que não dariam quase nada no Brasil. Por exemplo, passamos em dia em Roma, para resolver um negócio no consulado brasileiro, e conhecemos um rapaz que vendia coxinhas de galinha diariamente no local. Seu público-alvo era justamente os muitos brasileiros que procuram o consulado. Ele vendia muito e ganhava bastante dinheiro. Que jovem, no Brasil, pode ganhar a vida decentemente apenas vendendo coxinha de galinha? Não estou dizendo que o Brasil é pior que a Itália, mas simplesmente que na Itália é mais fácil ganhar dinheiro. Quer dizer, era. A coisa tá ficando feia por lá. Testemunhei centenas de perseguições a imigrantes africanos, o alvo principal das autoridades italianas. Os africanos são os que mais sofrem, porque poucos dão emprego a eles, que vão trabalhar então no comércio ambulante ilegal. Vendem produtos pirata de todos os tipos. Muito comuns são as bolsas imitação de marcas européias famosas, como Louis Vitton, Victor Hugo, etc. Essas bolsas, mesmo piratas, são caras e os africanos estão sempre correndo daqui para lá com elas, fugindo da polícia.
*
Sempre caro mi fu quest'ermo colle,
e questa siepe, che da tanta parte
dell'ultimo orizzonte il guardo esclude.
Ma sedendo e mirando, interminati
spazi di là da quela, e sovrumani
silenzi, e profondissima quiete
io nel pienser mi fingo; ove per poco
il cor non si spaura. E come il vento
odo stormir tra queste plante, io quello
infinito silenzio a questa voce
vo comparando: e mi sovvien l'eterno
e le morte stagioni, e la presente
e viva, e il suon di lei. Cosí tra questa
immensità s'annega il pienser mio:
e il naufragar m'é dolce in questo mare.
Giacomo Leopardi
*
Sempre me foi caro esse monte solitário
e estas árvores, que de vários pontos
escondem o horizonte.
Sentado e contemplando os intermináveis
espaços desde lá até as árvores, e os sobrehumanos
silêncios, e sua profunda calma,
eu mergulho em fantasia; e por pouco
o coração não pára. E ouvindo o vento
bramir entre as plantas, eu
comparo o infinito silêncio a esta voz (do vento)
e me sobrevêm o eterno
e as mortas estações e a presente
e viva, e o som delas. Assim, em meio a esta
imensidade se afunda meu pensamento:
e naufragar é doce neste mar.
(Tradução: Miguel do Rosário)
12 de setembro de 2008
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