Há gente perdida em dimensões ideológicas fantasmas. Enquanto discutimos política presente e futura, analisando as perspectivas do capitalismo moderno brasileiro, que mescla, como qualquer capitalismo, pitadas de socialismo, umbanda e hip hop, ouvimos seu grito esganiçado, confuso, agressivo, acusando-nos de matar trezentos milhões de chineses e prender dissidentes políticos da Coréia do Norte.
Gostaria de entender que espécie de capitalismo é esse que eles defendem tanto, onde a economia afunda, o desemprego explode e, quando o país parece ter chegado ao fundo do poço, o governo decide tungar os contribuintes em mais 1 trilhão de dólares para... ajudar bancos e seguradoras gigantes falidas!
Definitivamente, há uma grande ignorância sobre o que é democracia, capitalismo e socialismo. Acredita-se que socialismo se restringe à fórmula soviética do início do século passado, com o Estado dominando os meios de produção. Esta é uma concepção pobre e atrasada. A Europa já experimentou, nas últimas décadas, diversas formas de socialismo. Países como Noruega, Finlândia e Suécia, por exemplo, há muito tempo praticam uma espécie de socialismo onde o capital e a propriedade privada convivem harmoniosamente com o Estado e políticas de justiça social. O retrocesso político do PSDB aconteceu porque ele negou essas raízes socialistas, convertendo-se num partido direitista neo-liberal, abraçando todos os preconceitos anti-estatistas e anti-socialistas que a social democracia original buscou superar.
A grande confusão é a ideologização distorcida de bandeiras como "justiça social", "combate à pobreza" e "distribuição de renda". Por isso a direita brasileira sempre foi burra e mais retrógrada que suas congêneres estrangeiras: ela não enxergava que a distribuição de renda era condição sine qua non para desenvolvimento e consolidação do capitalismo no país. Mas a cegueira vai mais longe. Em toda a América Latina, floresceu uma direita extremista neoliberal que concebe um capitalismo abstrato, sem consumidores, e uma democracia country club, sem povo. Ou seja, é uma direita fora da realidade. Contraditória. Ao mesmo tempo em que criminaliza ideologicamente qualquer política voltada aos mais pobres, acusando-a de "estatismo", essa mesma direita sempre viveu às custas do Estado, dominando a alta burocracia estatal, os principais cargos políticos e com suas empresas dependentes de encomendas do Estado e benevolências fiscais.
A direita acusa - ou acusava até pouco tempo - o Bolsa Familia de ser um programa proto-comunista, uma esmola estatal, que incentivava as pessoas a não trabalharem. Os colunistas repetiam isso. Ninguém se dava ao trabalho de apurar as ajudas estatais existentes nos países capitalistas ricos, como EUA, Europa e Japão. São ajudas muito mais consistentes. Nos EUA, por exemplo, pátria do capitalismo liberal, milhões de americanos, nos últimos 50 anos, atravessaram fases difíceis de suas vidas recebendo seguro desemprego e pensões diversas, pagas pelo Estado. A era neo-liberal, pós Ronald Reagan, reduziu muitos desses benefícios, e o resultado foi o que estamos vendo agora. A mesquinhez neoliberal só é válida para os pobres. Na hora de emprestar aos ricos, eles são super generosos.
O debate ideológico é importante, mas não se trata aqui de resgatar o maniqueísmo capitalismo X socialismo, ou mesmo esquerda X direita. Uma das teorias que venho procurando provar há tempos é que o capitalismo não é um sistema de governo, não é um regime político, nem mesmo um regime econômico. É simplesmente uma utopia ideológica, assim como o socialismo.
Nosso regime político e econômico é a Constituição, onde está prevista a obrigação do Estado de promover o bem estar e a justiça social, regular os abusos de poder dos grupos privados, e dar educação e saúde gratuita para todos os cidadãos. Está tudo lá, no livrinho. Extremistas de direita como Olavo de Carvalho já perceberam isso, e por isso vivem à beira da histeria: para eles, vivemos num mundo socialista. Isso porque eles são utópicos, e como tal, semi-dementes. A ONU, para eles, virará uma grande organização internacional que exercerá o poder político planetário. Estão certos, mas e daí? Que outra solução eles queriam? O mundo regido pela Casa Branca? E que isso tem de comunismo, Mon Dieu? Eles vivem sob terror constante, acusando jornalistas e artistas de serem "petistas", "comunistas", "vermelhos", como outrora simpatizantes das KKK perseguiam qualquer pessoa com a pele não adequadamente branca e os nazistas fuzilavam quem tivesse uma gota de sangue judaico. Eles não percebem que isso não tem mais importância. Com a consolidação das organizações internacionais, o mundo entrou numa fase, senão de consenso, mas de harmonia ideológica. Por isso Chávez concordou em abraçar Uribe. Ainda existem tensões políticas entre os países, mas a ideologia não é mais a razão principal. Se é que algum dia foi. A própria tensão ideológica no âmbito doméstico dos países sul-americanos não é mais que a luta pelo poder entre diferentes grupos econômicos.
Veja o caso de Evo Morales. Ele decidiu usar parte do dinheiro arrecadado com a venda de gás para o pagamento de pensões para idosos. Que isso tem de comunismo? Que tem isso a ver com autoritarismo? Trata-se de uma política que poderia ser feita por qualquer político de direita, e não me venham dizer que um político de direita seria mais "democrático". Se há falta de espírito democrático na Bolívia é sobretudo nas províncias "separatistas" da Bolívia, que não apenas desrespeitam sistematicamente o presidente eleito do país, como demonstram não possuir nenhum espírito democrático. Montesquiet afirmava, com todas as letras: só ama a democracia quem ama a igualdade.
No entanto, qualquer conceito, palavra, idéia, podem ser distorcidos e interpretados tendenciosamente. "A verdade é uma nuance entre mil erros", dizia Renan. Não há verdades fáceis, mas também não há mentiras fáceis. A dificuldade de se compreender a verdade, todavia, não é uma virtude erudita, nem mesmo intelectual. Daí o meu ceticismo quanto à sagacidade conceitual e ideológica dos intelectuais. A principal ferramenta da inteligência humana é a intuição. E não se pode comprar a intuição. Pode-se comprar faculdades em Yale e Sorbonne. Pode-se comprar conhecimento de línguas. Enfim, o dinheiro pode comprar todo um código cultural de elite, mas a intuição é como o talento: é um mistério, que mistura dom, experiência, estudo, coragem e renúncia. A intuição vale para tudo. Por que não para a política? Vale para a literatura, com certeza. Vale para a música, é óbvio. E para o amor, naturalmente.
*
Enfim, termino esse artigo vendendo meu peixe. Convido os leitores a fazerem uma assinatura da revista Manuskripto. Por R$ 48,00, você receberá a revista até agosto de 2009, 12 edições no total. A edição atual (setembro) vem com uma excelente entrevista de Wanderley Guilherme dos Santos, um editorial com propostas sobre o que fazer com os recursos do pré-sal, poemas, resenhas e ilustrações interessantes. Confira a coluna da direita.
23 de setembro de 2008
Sobre as viúvas da guerra fria
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700 bilhões de dólares para salvar os banqueiros que agiam sem nenhuma regulamentação por parte do Estado...
700 bilhões é muita grana, basta se comparar com o valor gasto para a construção de uma máquina de quase 30 kilômetros de extensão, o acelerador de partículas, cuja projeto e construção custou apenas 10 bilhões de reais.
Triste saber que com umas poucas dezenas de bilhões de dólares os EUA poderiam compensar o que seria gasto com a adesão ao protocolo de Kioto.
Mas isso nem pensar.
O que vale é faturar cada vez mais, sem o menor controle, destruam tudo, os rios, a flora, a fauna.
Pena que Marte não seja uma segunda Terra para onde poderíamos nos refugiar com segurança. Para lá iriam somente os animais inofensivos sob pena de, logo logo, precisarmos de um terceiro planeta-refúgio. E ao que consta planetas como a Terra são raros, talvez único. A superpopulação humana é um problema, cresce que nem rato, e aliado a isso o crescimento econômico, a produção de bens materiais e, aliado a isso, a sede de consumo e o individualismo. Sem nenhuma perspectiva à vista. Estamos num mato sem cachorro, as geleiras nos polos degelam numa velocidade estonteante. E ninguém vê o naufrágio, o que manda é a grana, a sede de faturar cada vez mais. O dinheiro é nossa praia.
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