7 de setembro de 2008

Sobre reforma agrária

Volto ao assunto. Abordei o assunto superficialmente no vídeo e retorno a ele agora. O que é reforma agrária? A classe média urbana fala de reforma agrária sem ter a mínima idéia do que seja. Ou então, confunde reforma agrária com bandeiras do Movimento dos Sem Terra. O MST tem suas idéias sobre reforma agrária, mas não se deve achar que tem a palavra final sobre o tema. A nossa mídia, naturalmente, só atrapalha o debate, lançando cortinas de fumaça à esquerda e à direita. No estrangeiro, repercute o bordão: Lula não fez a reforma agrária. Ou fez menos do que poderia ter feito.

Bem, reforma agrária não é distribuir terra. Esse é o primeiro ponto. Quem acha que reforma agrária é distribuir terra, é porque não entende nada do assunto. Se um governante apenas distribuir terra para as pessoas, sabe o que acontecerá. As pessoas receberão essas terras e as venderão, e a preços baixos, e voltarão a ocupar as favelas das grandes cidades.

Reforma agrária é apoiar a agricultura familiar. Esse é o principal suporte político de uma verdadeira reforma agrária. Conforme eu disse no vídeo abaixo, mais de dois terços dos alimentos consumidos no Brasil vêm da agricultura familiar, que vive um momento de expansão muito positivo nos últimos anos, devido justamente ao apoio que o Banco do Brasil e demais políticas federais têm dado ao segmento. Antes não dava. Os recursos federais destinados à agricultura familiar cresceram exponencialmente nos últimos anos, e houve um processo de desburocratização, visando incentivar o pequeno agricultor, que antes tinha pavor (com razão) de pisar numa agência bancária, da importância de usar os financiamentos oficiais para modernizar sua propriedade.

As regiões agrícolas brasileiras vivem uma situação verdadeiramente revolucionária do ponto-de-vista da evolução tecnológica. Digo: as regiões com regime de produção familiar. As áreas comerciais vivem sua revolução tecnológica desde a era FHC, quando os recursos financeiros concentravam-se exclusivamente para o agronegócio comercial, para as grandes fazendas.

Hoje há verba para todos. Muita verba, tanto que tem sobrado recursos, obrigando o governo a fazer campanhas para que os agricultores familiares usem mais os financiamentos oficiais, que têm juros subsidiados, para investirem em tecnologia.

Há que se compreender que existem muitos mais agricultores familiares do que sem terra no Brasil. Uma política agrária, por uma razão lógica, deve priorizar os agricultores familiares, já instalados na terra. E o êxodo rural brasileiro chegou, finalmente, a uma fase regressiva. Hoje, há mais gente saindo das grandes cidades do que migrando para elas. O campo vem recebendo gente.

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O agricultor, mesmo o pequeno, tem uma implicância enorme com o MST. Por que grande parte dos integrantes do MST são pessoas que perderam a sua identidade de trabalhadores rurais e, além disso, qualquer estudioso de ciências políticas sabe que o pequeno proprietário é, na maioria das vezes, o mais cioso e conservador defensor dos direitos da propriedade, e o discurso de invasão do MST é um insulto a esse tipo de pensamento. Não adianta achar que o pequeno é um ignorante e não se deve ligar para o que ele pensa. Deve-se respeitar a opinião de todos.

Quando o MST foi criado, no final da década de 70, o Brasil vivia o auge do êxodo rural e da crise agrícola. As lideranças sindicais do campo foram as primeiras a serem eliminadas durante o regime militar e o distanciamento dos centros de comunicação não deram visibilidade a essas mortes. Enquanto um estudante morto no Rio mobilizava 100 mil pessoas, morreram milhares de lideranças camponesas no país sem que a sociedade ao menos tomasse ciência. Economicamente, a agricultura foi sufocada nas décadas de 70, 80 e 90. O próprio Plano Real foi terrível para a economia agrícola, porque a moeda sobrevalorizada artificialmente estimulou a importação dos mais importantes produtos agrícolas, obrigando o agricultor brasileiro a vender abaixo do custo de produção. Ao longo do governo FHC, houve um grande estímulo ao agronegócio. O Banco do Brasil aumentou fortemente os recursos destinados aos grandes empreendimentos agrícolas, mas a agricultura familiar, mais uma vez, foi deixada à míngua.

Lembro-me de uma reportagem que fiz no oeste baiano, a nova fronteira agrícola, em que assisti uma conversa de fazendeiros, que anunciavam o fim da agricultura familiar. Pois bem. A agricultura familiar não apenas sobreviveu a essas dificuldades, como, a partir exatamente da eleição de Lula, e com o aumento dos recursos destinados ao segmento, e a melhora dos serviços públicos de assistência técnica, registrou um crescimento impressionante, consolidando-se como a principal fornecedora dos produtos consumidos internamente, enquanto a agricultura comercial vem focando mais no mercado externo. Aliás, essa diferença é fundamental. Enquanto a agricultura comercial reclama da moeda forte, os produtores familiares se beneficiam dela, de maneira que a economia brasileira ganhou um importante fator de estabilidade. O Brasil ganha com dólar fraco ou forte.

O boom da agricultura brasileira, comercial e familiar, esquentou o mercado imobiliário rural. As pessoas voltaram a comprar terras para plantar, e não só grandões, mas médios e mesmo alguns pequenos. Não se pode esquecer que o pequeno quer se tornar médio e o médio quer se tornar grande. Essa mobilidade social é extremamente difícil ainda no Brasil, agravada pelo fato de que o agricultor, quando ganha um pouco mais, investe na educação dos filhos - numa educação voltada para o mercado de trabalho urbano: o sonho de todo agricultor pequeno ou médio é ver seu filho médico, advogado, funcionário público, e não agricultor, devido à sua experiência traumática. A agricultura é uma atividade instável por sua própria natureza. Por mais eficaz e inteligente e trabalhador que seja o empresário agrícola, pequeno, médio ou grande, ele depende de elementos imponderáveis, como chuvas no tempo certo, sol no tempo certo, temperaturas ideais e rezar para que suas plantas não contraiam nenhuma doença. Ser agricultor é como cuidar de uma creche a céu aberto, com milhares de crianças criadas e alimentadas sobre o chão nu, expostas à chuva, sol e doenças. Há que cuidar de cada planta. É um trabalho muito duro e que, por isso mesmo, requer vocação. A grande recompensa do agricultor é sua saúde, fortalecida pelo trabalho físico, pelo ar puro e pela contemplação das belezas naturais. Por isso mesmo ele fica aborrecido quando lê que integrantes do MST invadiram uma propriedade tal. Eles não entendem isso.

Não estou atacando o MST. Entendo a sua função e certamente muitos avanços no setor agrário, inclusive este aumento dos recursos para a agricultura familiar, só ocorreram por conta da pressão exercida pelo movimento. Mas é preciso enxergar a reforma agrária para além do MST. É preciso ter uma maior compreensão da mentalidade do agricultor, sobretudo do pequeno agricultor familiar, que são fervorosos defensores do governo Lula.

O boom imobiliário dificulta o tipo de reforma agrária clássico, do tipo desapropriação e distribuição gratuita de terra, porque reduziu o número de propriedades em áreas agricultáveis que não a exploram comercialmente. Em outros termos, caiu a quantidade de terras improdutivas em áreas agricultáveis.

Os sindicatos rurais foram revigorados e hoje são muito atuantes em todo país. São sindicatos de trabalhadores rurais e sindicatos de produtores. Hoje em dia, é difícil um produtor explorar o trabalhador, por medo do sindicato e do ministério público. Vocês já ouviram falar na Contag, a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura? É a mais poderosa entidade sindical rural do país. É filiada à CUT e reúne centenas de milhares de trabalhadores do campo. É muito mais representativa do que o MST. As duas entidades não se gostam. A esquerda urbana só conhece o MST, poucos conhecem a Contag, que é muito maior, muito mais influente no meio rural, no Congresso e junto à presidência da República. A Contag empresta um forte apoio ao governo Lula e considera que o governo vem fazendo uma boa política agrícola.

Naturalmente, há o discurso de que o governo poderia fazer muito mais do que já faz. Mas essa é uma afirmação também um tanto vazia de sentido. Qualquer pessoa, governo e empresa poderia fazer mais do que já faz. Uma análise política, no entanto, deve se concentrar no que o governo concretamente faz e comparar com o que foi feito em gestões anteriores. Comparar com o que poderia ser feito não é científico, porque envolve imponderáveis no mínimo duvidosos.

O MST, por exemplo, vive uma situação contraditória, porque ele tem um defeito de nascença. Quando um sem-terra ganha terra, ele deixa de ser sem-terra. O MST, portanto, precisa da crise fundiária para ter um sentido. Consciente dessa contradição, o MST foi obrigado a envereder por uma senda marxista, meio anacrônica, e seu discurso passou a ser mudar o próprio regime político. Essa é uma enorme debilidade do MST, porque se existiu um ponto fraco no comunismo foi justamente o tratamento dado à agricultura. Tanto que Cuba, que já foi o mais importante produtor de café do mundo, hoje importa café, e o setor açucareiro está estagnado há décadas. Raul Castro, novo chefe de governo, está abrindo o setor para investimentos privados. Na União Soviética, Lênin tentou liberalizar o setor rural, e o fez, mas sua política foi violentamente abortada por Stálin. E Mao enfrentou crises agrícolas terríveis, que resultaram em matança e fome generalizada. Os avanços verificados nos regimes comunistas se deram no campo industrial e, no caso de Cuba, nos áreas de educação e saúde. Na área rural, o comunismo sempre foi um desastre. Por isso, acho o MST um tanto anacrônico neste sentido, e por isso a Contag e a imensa maioria dos agricultores brasileiros, pequenos, médios e grandes, alimentam forte ojeriza às idéias do MST.

O governo Lula também vem dando forte apoio aos grandes produtores comerciais. E deve dar mesmo! A importância da agricultura comercial para a economia brasileira é crucial. O agronegócio gera quase metade da receita das exportações brasileiras. E mesmo com todo o processo de mecanização, a geração de empregos nas grandes fazendas é imensa. Até porque não se pode esquecer que um trator gera emprego nas fábricas que o produzem - e o Brasil também é grande produtor de máquinas agrícolas. Portanto, se você quiser gerar empregos nas fábricas que produzem trator, você tem que dar apoio às fazendas que o compram. É estranho que as mesmas pessoas que defendem uma política industrial firme, com apoio oficial à indústria nacional, não vêem com bons olhos o apoio governamental ao agronegócio. O Brasil hoje, além de grande exportador agrícola - em breve o número 1 do mundo, também está se consolidando como um importante fornecedor global de implementos e máquinas agrícolas.

O grande gargalo da agricultura brasileira hoje é a dependência que temos de fertilizantes importados, devido ao fato de que o país ainda não descobriu reservas significativas de fósforo, nitrogênio e potássio, os três principais ingredientes para produção de adubo. O Ministério da Agricultura tem encarado essa questão como prioridade, e eu acharia interessante que a classe média urbana, em vez de críticas alienadas e desinformadas sobre reforma agrária, acompanhasse de perto a luta nacional para enfrentar esse problema. A Embrapa, principal empresa de pesquisa agropecuária da América Latina, e outras instituições, estão tentando descobrir maneiras de criar variações genéticas naturais (não confundir com transgênico) que usem menos o potássio, que quase não existe no Brasil, ou produzir potássio a partir de fontes alternativas. O Brasil importa mais de 90% da quantidade usada nas lavouras.


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Depois dou os links com os dados econômicos sobre as verbas destinadas à agricultura familiar nos últimos anos. Por hora, você pode saber mais no link do Ministério do Desenvolvimento Agrário.

2 comentarios

Anônimo disse...

"O que mais me preocupa não é o grito dos violentos, nem dos corruptos, nem dos desonestos, nem dos sem ética. O que mais me preocupa é o silêncio dos bons" (Martin Luther King)

Depois de assistir teus vídeos e saber da tua proximidade com o agronegócio, deixei lá algumas sugestões e pautas para, quem sabe, abordares.
Um abraço,
Fábio

Anônimo disse...

Caro Miguel,
simplesmente: estou impressionado. Sem palavras.
Um grande abraço.

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