Reproduzo abaixo um artigo que escrevi para uma
edição recente da Revista Forum.
Raio-X do cinema brasileiro
2010 foi um ano importante para o cinema brasileiro. Por uma razão simples: um filme nacional assumiu a liderança isolada no ranking de público. Tropa de Elite 2 superou o lendário recorde obtido por Dona Flor e Seus Dois Maridos, de Bruno Barreto, lançado em 1976, que teve 10,7 milhões de espectadores. O filme de Padilha, exibido em outubro de 2010, registrou até o momento 11,2 milhões de espectadores e obteve um faturamento de 102,3 milhões de reais.
Considerando todos os filmes, nacionais e estrangeiros, o cinema no Brasil vendeu 134 milhões de bilhetes em 2010, um aumento de 19% sobre o ano anterior e um recorde histórico1. Deste total, 19% correspondem a obras nacionais, maior participação desde 2003, quando o lançamento de outros filmes campeões de bilheteria, como Cidade de Deus e Carandiru, levaram-na a 21%.
Mas o público brasileiro ainda tem muito o que crescer. Fica em terceiro ou quarto lugar na América Latina no quesito “per capita”. No México2, por exemplo, a venda de bilhetes em 2010 bateu em 192 milhões de unidades, embora os filmes mexicanos só tenham vendido 10,7 milhões de ingressos. Ano passado os filmes brasileiros venderam 25 milhões.
Qualquer um que admira a multidão aglomerando-se naquela faixa da pirâmide social rotulada de classeC, pode imaginar o que acontecerá quando esses mais de cem milhões de brasileiros entrarem de vez no mercado de consumo, completando sua conversão ao cosmopolitismo moderno, ou seja, aprendendo, entre outras coisas, a curtir um cinema.
Talvez demore, no entanto, para atingirmos o grau de maturidade do mercado norte-americano, cujos filmes venderam 1,32 bilhão de tickets ano passado3. A receita total da venda de ingressos de cinema nos Estados Unidos em 2010 foi de 10,43 bilhões de dólares. A do Brasil ficou em 750 milhões de dólares de dólares.
Um dos graves sintomas de desequilíbrio no mundo é a hegemonia absoluta do cinema americano nos países ocidentais. Em toda Europa e América Latina, a participação de Holliwood nos mercados locais de cinema oscila de 70% a 90%.
Por outro lado, pode-se tirar algumas conclusões interessantes em matéria de geopolítica, se atentarmos para o fato de que, no Irã, 99% dos filmes exibidos são produções locais4.
Considerando que as majors norte-americanas só ousariam distribuir um diretor persa que fosse categorica e furiosamente de oposição ao regime dos aiatolás, depreende-se que os países ocidentais conhecem muito pouco do autêntico cinema iraniano.
India, China, Egito e Japão, também possuem um forte cinema local, com percentual similar ou acima de 50% do total exibido. Já nos EUA, a produção local atende 95% do público.
O mercado mundial de cinema é fortemente concentrado em mãos de seis grandes empresas norte-americanas: Warner, Paramount, Walt Disney, Fox, Sony e a Universal. Segundo um estudo da Recam5, o órgão do Mercosul responsável pela formulação de suas políticas de audiovisual, há muitas décadas que essas corporações recebem generosa ajuda da Casa Branca, através de várias formas de benefícios fiscais. Nos EUA não há Lei Rouanet; existe porém uma política de pesado subsídios às corporações midiáticas responsáveis pela produção cinematográfica, num jogo de favores de poder: os senadores aprovam leis que as beneficiam, e elas os ajudam poltica e eleitoralmente.
As mesmas gigantes americanas dominam o mercado brasileiro de cinema. Apenas a Columbia respondeu por 23% da bilheteria nacional em 2010. A Paramount/Universal garfaram mais 20%; Fox, 19%, e Warner, 13%. Pela primeira vez, todavia, uma produtora brasileira penetrou no grupo das grandes. A Zazen, de Zé Padilha, ficou em quinto lugar entre as maiores distribuidoras de cinema no país.
O desempenho de Tropa de Elite 2, repetindo as excepcionais trajetórias, tanto no Brasil quanto no exterior, de Tropa de Elite 1 e Cidade de Deus, reforça a tese de que uma das formas de elevar o percentual de filmes brasileiros no ranking nacional é apostando no cinema de narrativa, sobretudo o gênero de aventura, com fortes doses de violência, suspense, intriga e dilemas familiares.
O cinema brasileiro, além disso, à diferença de seus vizinhos (especialmente a Argentina), que conseguem boa entrada na Europa através da Espanha, tem pouca projeção no Velho Continente. De 2000 a 2005, o cinema argentino teve uma média anual de 2 milhões de espectadores na Europa (dos quais 1,63 milhão só na Espanha), contra somente 390 mil para as películas brasileiras5.
Dos 2,54 milhões de europeus que assistem anualmente a filmes de países do Mercosul, a Espanha sozinha respondeu por 1,76 milhão de espectadores, a França por 285 mil, a Inglaterra por 158 mil, a Alemanha por 94 mil, a Itália por 71 mil e a Suíça por 65 mil pessoas. Todos os outros países europeus venderam pouco mais de 100 mil bilhetes ao ano de filmes do Mercosul.
Interessante notar que enquanto o cinema argentino é forte na Espanha e França, o cinema brasileiro lidera (entre as nações do Mercosul) na Inglaterra e Alemanha.
Mas o cinema “mercosurenho” enfrenta dificuldades principalmente em casa. A pesquisa da Recam sobre o cinema nos países que integram o Mercosul conclui que la circulación intra-regional de las películas de los países del Mercosur es casi nula. Na região, a participação de filmes do Mercosul em países que não os de origem do filme (“mercosureños no nacionales”) ficou em irrisórios 0,2%.
Em suma, o mesmo cinema argentino que vendeu 1,6 milhão de bilhetes por ano só na Espanha, entre 2000 e 2005, não conseguiu comercializar mais do que 100 mil ingressos por ano no Brasil no mesmo período.
Um dos gargalos do mercado brasileiro de cinema é a escassez de salas. O auge aconteceu em 1975, quando tínhamos 3.276 salas. Não por acaso, no ano seguinte Dona Flor conseguiria 11 milhões de espectadores. Reparem que o público de Dona Flor correspondeu a mais de 10% da população brasileira da época. Um filme hoje que atingisse 10% da população, teria 20 milhões de espectadores.
Depois de chegar a somente 1.000 salas em 1997, número inacreditavelmente irrisório para um país com mais de 190 milhões de habitantes, os espaços de cinema voltaram a crescer gradualmente ao final dos anos 90 com a multiplicação de salas em shopping-centers. A tendência é totalmente oposta ao cinema popular, de rua, que vicejou dos anos 60 aos 80, presente até mesmo nas cidades pequenas e com custo acessível ao trabalhador. O cinema de shopping que passa a predominar no país destina-se exclusivamente a setores abastados da classe média, visto que uma simples ida ao cinema converte-se numa espécie de passeio de luxo, em virtude dos preços altos de ingresso, pipoca, refrigerante, e demais itens (transporte, lanche, etc) ligados ao programa.
A Agência Nacional de Cinema detectou essa tendência, que mantém vastos setores sociais, notadamente a Classe C, longe das telas, e criou em 2010 um programa chamado O Cinema Perto de Você6, para modernizar e reativar salas tradicionais e construir 600 novos cinemas em todo país, até 2014. O programa conta com 300 milhões de reais oriundos do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA) e mais 200 milhões de reais de uma linha do BNDES para o Desenvolvimento da Economia da Cultura, o PROCULT. O objetivo é justamente levar o cinema para cidades médias, periferias das cidades grandes e algumas áreas rurais de maior densidade populacional.
Entretanto, mais que qualquer programa governamental, é o nível de renda dos brasileiros e o empreendorismo das empresas com planos de oferecer entretenimento acessível às massas que poderá fazer do Brasil uma nova potência mundial em bilheteria audiovisual. O cinema brasileiro será naturalmente o maior beneficiado, visto que as massas emergentes que vem aderindo ao hábito de ir ao cinema não gostam de assistir filmes com legendas ou dos quais não compreendem o contexto.
Mais importante, todavia, que todos os números mencionados é o poder do cinema de construir a imagem de um país perante o mundo e a si mesmo, tornando-se uma poderosa ferramenta de relações públicas da sociedade. Os problemas ideológicos internos do país são discutidos e parcialmente resolvidos no interior das narrativas. Os traumas históricos são tratados pela catarse que é reviver na tela cenas de guerra, revoluções, golpes, tragédias, num processo constante e dialético de reconstrução de símbolos, mitos e crenças.
Dentre as diversas subcategorias do audiovisual, o cinema é a poesia máxima, o santo graal, o sonho ao qual todo profissional do setor se agarra mais apaixonadamente. Porque é o cinema que o imortalizará. E refiro-me especialmente ao cinema de ficção, aquele que, manipulando a realidade, nos dá a sensação de um poder absoluto, nos libertando por alguns minutos da horrível opressão do tempo e da consciência da morte. Segundo a Ancine, 99% do bilhetes vendidos no Brasil em 2010 foram para filmes de ficção.
O Brasil tem uma plêiade de grandes diretores, com destaque para os brilhantes anos 60: Nelson Pereira dos Santos, Glauber Rocha, Rui Guerra, Roberto Farias, Paulo César Saraceni, Sganzerla, para citar apenas alguns. Nos dias de hoje, há também excelentes nomes, mas a maioria dos cineastas – incluindo muitos já consagrados, como Beto Brant, Claudio Assis, Lírio Ferreira, Bressane - tem encontrado dificuldades para atingir uma fórmula que os permitam aliar um trabalho autoral a um mínimo de público. Muitos desses filmes são bastante sofisticados artisticamente, o que lhes valem entrada garantida em mostras nacionais e internacionais, mas não alcançam sequer o nicho intelectual a que eles se dirigem. Naturalmente que as distribuidoras americanas fazem valer sua hegemonia e sabem que é preciso direcionar o “gosto” do público para o tipo de filme que elas mesmos produzem. Aliás, esse é problema, o cinema mundial é dominado por um reduzido cartel, onde as mesmas empresas que produzem, também distribuem os filmes. O sucesso do Tropa de Elite 2, no entanto, que criou sua própria distribuidora, indica que há maneiras de contornar o monopólio das majors. Como diria aquele general vietnamita, o tigre dá medo, mas é de papel.
Por conta do aumento dos recursos disponíveis para produção de filmes, houve quem apregoasse que haveria exagero no número de obras feitas no país. Não é verdade. O Brasil é um dos países que menos produz filmes per capita no mundo. A comparação com a vizinha Argentina, com sua população quase cinco vezes menor que a do Brasil, fala por si mesmo. Em 2009, os cineastas argentinos produziram 77 filmes. Em 2010, a produção brasileira somou 75 filmes.
A produção de filmes per capita no Brasil, segundo o blog Screen Ville7, foi de 0,4 em 2007, similar a da Romênia. Para efeito de comparação, Hong Kong produziu 7,1 filmes por habitante, a Espanha 4,3, França 3,6, Japão 3,2, EUA, 2,0 e Argentina 1,7. Esses índices, por outro lado, não têm ligação direta com a conquista de público doméstico, sobre a qual já falamos acima. Tem a ver sim com um mercado ainda tremendamente fechado para longa-metragens nacionais. Essa muralha erguida pelas distribuidoras americanas leva muitos diretores brasileiros a buscar reconhecimento exclusivamente junto ao público de festivais, aqui e lá fora, decisão que influencia a linguagem de seus filmes e dificulta a interatividade entre grande público e autor.
Notas:
1 Os dados constam do informe de mercado da Agência Nacional de Cinema (Ancine): http://www.ancine.gov.br/media/SAM/Informes/2010/Informe_Anual_2010.pdf.
2 http://www.impactousa.com/entretenimiento/ci_17057138.
3 Os dados do cinema americano constam do site The-Number, especializado em estatísticas de cinema nos EUA e no mundo:
http://www.the-numbers.com/market/2010.php.
4 Movie World Stats : http://screenville.blogspot.com/2008/05/2008-world-stats.html.
5 Recam (órgão consultor do Mercosul para audivisual): http://www.recam.org/_files/documents/aprox_al_mercado_cinemat_del_mercosur.pdf.
6 Cinema Perto de Você – Ancine: http://www.ancine.gov.br/cinemapertodevoce/index.html.
7 Screen Ville, World Stats: http://screenville.blogspot.com/2008/05/2008-world-stats.html
Tabelas (clique para ampliar):