22 de agosto de 2011

Carducci, cinema e a guerrilha anti-berlusconi


(Egodesintegration, de Valerio de Filippis, pintor italiano contemporâneo)

Carducci é um dos poetas mais ensinados nas escolas italianas. Os literatos do país, no entanto, consideram-no excessivamente monumental. É acusado de ser acadêmico, um pouco artificial ou "forçado". Mas é respeitado por todos como um dos maiores poetas do chamado "resorgimento", ou seja, os anos de intensos conflitos sociais e políticos (com ampla participação da intelectualidade) que levaram à unificação da Itália, em 1861. Quer dizer, Carducci veio um pouco depois, e escreve para uma Itália já unida, mas seus poemas capturam os últimos vestígios desse movimento, já num ambiente de grande desilusão com os rumos políticos do país.

Na verdade, o artificialismo de Carducci é deliberado, porque ele se considerava um anti-romântico, cujos representantes no país ele combatia. Mas também é anti-clerical, progressista e republicano, posicionando-se desde sempre como adversário do agressivo conservadorismo aristocrático que assombrava toda a Europa desde o fim do Renascimento. De origem humilde, e tendo que ganhar a vida como professor, Carducci soube lutar contra os aristocratas usando suas próprias armas: a erudição, o domínio da cultura clássica e uma incomparável virtuose poética.

Estou estudando a história e a obra de Carducci porque me interesso pela poesia e pelo idioma italiano, que considero quiçá a mais musical das línguas latinas, talvez pelo fato de ter sido a que mais conservou a antiga melodia de nossa querida "nona", o latim.

Por uma felicidade, retorno - fisicamente - à Itália, de onde escrevo essas linhas, acompanhando minha mulher, que é júri de cinema num delicioso festival de curta-metragens em Piacenza.

A região da Emilia-Romagna, onde fica Piacenza e cuja capital é Bolonha, tornou-se uma espécie de fortaleza contra o pensamento berlusquiano, possivelmente porque uma das poucas universidades que escaparam à impiedosa tesoura governamental encontra-se aí, de maneira que sua ideologia em prol do investimento público (em oposição às ideias neoliberais da região da Lombardia, de Milão e Forza Italia, partido de extrema direita que é um dos sustentáculos de Berlusconi) espraia-se pelos arredores.

Piacenza, situando-se na fronteira com a Lombardia, é uma área de guerra cultural, portanto, e uma parte de seus habitantes há anos constroem muros para barrar os influxos berlusquianos que chegam de Milão. Lendo um poema de Carducci sobre o espírito de luta e resistência dos franceses que, ao fim do século XVIII, moravam nos limites do país com Áustria e Alemanha (cujas monarquias tentavam obrigar a França a engolir seus ímpetos revolucionários e restituir o poder a seus antigos donos), eu comparo esse espírito à abnegação sonhadora dos organizadores do 10º Concorto, o evento de que lhes falei. Trabalham todos voluntariamente para realizar um dos festivais de curta-metragem mais interessantes do país. Iniciativas como essa pipocam em toda Itália, e são sempre lideradas por intelectuais anti-berlusquianos; apesar da massacrante desilusão em que vivem os italianos progressistas de hoje, em virtude da opressiva situação política, eles continuam fazendo seu trabalho de militância cultural, através do qual disseminam aqueles antigos valores que estão por trás de todas as grandes transformações sociais e políticas que algum dia viveram as sociedades, européias ou não.

Mas eu falava de Carducci. Um rapaz com que conversava há pouco no saguão do hotel indicou-me um poema dele que foge a seu estilo grandioso. Quem poderá culpá-lo, todavia, por abandonar a frieza acadêmica (fria, pomposa, mas tecnicamente admirável) para expressar, num poema mais íntimo, a dor excruciante e irreparável da morte de seu filhinho querido, cujo nome, Dante, nos confirma o amor sincero que reserva à poesia italiana?

O poema é inspirado num antiquíssimo canto fúnebre grego (língua que Carducci ensinava), onde o autor ressalta o contraste entre uma bela romãzeira (melograno), que volta a florir todos os anos, e a sua própria existência, cujas flores parece que jamais retornarão, após a perda de um ente tão amado.

Transcrevo o original em italiano; em seguida, uma tradução de minha lavra.

Pianto Antico

L'albero a cui tendevi
La pargoletta mano,
Il verde melograno
Da' bei vermigli fior,

Nel muto orto solingo
Rinverdi tutto or ora
E giugno lo ristora
Di luce e di calor.

Tu fior de la mia pianta
Percossa e inaridita
Tu de 'inutil vita
Estremo unico fior,

Sei ne la terra fredda,
Sei ne la terra negra;
Né il sol piú ti rallegra
Né ti risveglia amor.

Giugno 1871


Lamento antigo

Árvore a qual tocava
a pequenina mão,
a verde romãzeira
das belas rubras flores,

no jardim agora mudo
viçosa estava há pouco;
recupera em junho tudo,
não terá mais dissabores.

Tu, flor da minha planta
machucada e ressequida,
Tu, da inútil vida
Derradeira única flor,

Jaz agora em terra fria,
Jaz agora em terra negra;
Nem o sol mais te alegra
Nem te desperta o amor.

Junho, 1871
Giosue Carducci
(tradução: Miguel do Rosário)

*

Aproveito a oportunidade e partilho com vocês as indicações que recebi desse amigo, um cineasta bastante culto, acerca dos nomes mais representativos da poesia italiana moderna:

Giacomo Leopardi - Segundo meu amigo, é o maior; muito distante, em qualidade e profundidade, de todos os outros.
Ungaretti
Montale
Hugo Foscolo
Dino Campana


Meu amigo também me sugeriu estudar a poesia de D'Annunzio, para entender a existência de Berlusconi.

Por fim, indicou-me alguns escritores em prosa:
- O anti-fascista Emilio Galda.
- Nicola Lagioia, uma escritora cujos livros mostram muito da Itália dos anos 2000.
- E confirmou-me a qualidade de Roberto Saviano, sobretudo sua obra-prima Gomorra, já muito famosa no Brasil.

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