26 de novembro de 2007

Resenha apocalíptica




Ainda é cedo, mas o céu já escureceu, devido ao desequilíbrio na atmosfera causado pelas bombas. Precipitando-se à previsão de quase todos os analistas, os ataques militares de ambos os lados tornaram letra morta os esforços diplomáticos que vinham sendo feitos. Em Londres, Madrid, São Paulo, Nova York, milhões se manifestaram contra o início dos conflitos, depois contra sua continuação, sem resultado. Apesar de poucos colunistas e governantes apoiarem a “solução final”, a opinião deles, como sempre, vale mais que a de todos.

Quando me pediram a resenha, há duas semanas, nunca imaginaria ser minha derradeira contribuição para a revista. Eu deveria resenhar, neste espaço, o novo romance de Daniel Urbes, peruano radicado em Miami. O livro é uma porcaria, um coquetel oportunista que mescla pseudo-preocupações sociais com charlatanismo reacionário, em linguagem pretensiosamente difícil, como de praxe, para intimidar leigos e confundir críticos.

À luz do holocausto que se avizinha, medito sobre o unilateralismo ideológico que monopolizou nossas mídias, causando inexorável empobrecimento das artes e da crítica. Claro, alguns intelectuais nunca se sentiram tão confiantes, em face do vigor descomunal dos grupos que os apóiam. Sabem de que lado estão e usufruem da sensação de invencibilidade que o poder lhes confere. Essa confiança excessiva, porém, ofusca-lhes a intuição de que necessitam para avaliar criticamente uma obra de arte. O irônico é que, na ânsia de criticar o ideologismo, acabam por se tornar boçalmente ideológicos.

Um romance como o de Urbes, por exemplo, incensado por resenhistas de meio-vintém (literalmente, visto que ganham duzentos reais por texto publicado), explica muita coisa sobre nossa situação. Urbes esteve no Rio de Janeiro há dois meses, por ocasião da Bienal do Livro. Participou de debates e deu entrevistas. Pareceu-me um rapaz articulado e inteligente. Seu livro, todavia, é um amontoado de clichês entediantes e malabarismos modernosos. Estou certo de que a decadência da qual falei decorre da maneira como a cultura é patrocinada e distribuída, favorecendo toda espécie de pilantra com talento para relações públicas.

Merda! Logo agora que tomei coragem para dizer o que eu penso, Deus resolve exterminar o mundo como quem espreme uma espinha. Não foi fácil pra mim livrar-me das toneladas de preconceitos e temores que impõem rígida autocensura aos críticos. Vivenciei terríveis escaramuças literárias, que me deixaram cicatrizes e inimigos. Alguns me consideram reacionário, em virtude de minha ojeriza aos vanguardismos de salão. Acredito, todavia, que uma visão conservadora da arte, hoje, é um posicionamento progressista, muito embora o que eu entenda como conservador esteja a anos-luz do conservadorismo político e moral que domina nossas mídias. A meu ver, a linguagem hermética de Urbes não passa de pedantismo vulgar e incoerência conceitual. Não tem poesia, vigor, autenticidade. Pertence à categoria pop-cabeça, lixo obrigatório (por razões que ainda não compreendi) em toda grande editora, apesar do pouco retorno financeiro que lhe proporciona.

Na verdade, existe um feirão que compra estéticas de vanguarda, como a de Urbes e outros, para revendê-las após um eficaz trabalho de marketing. O problema não está na compra em si, já que o capitalismo compra também coisas boas. O problema está na fraude, no valor imposto arbitrariamente, em virtude da crítica ter se tornado vulnerável, intelectual e materialmente, ao capricho de editoras e jornais (o que não seria negativo, se estes não fossem tão caretas), cumprindo a função subalterna de chancelar escolhas feitas previamente.

Enquanto escrevo, a tv exibe imagens de grandes explosões em Los Angeles. Os repórteres não sabem informar se os mísseis vieram da China, Rússia ou Irã, o núcleo duro do novo “eixo do mal”. Uma autoridade informa que hackers chineses provocaram pane nos sistemas elétricos europeus. Parece absurdo falar de literatura num momento assim, mas serve para evitar o pânico. Talvez exista um quê de heroísmo em pensar literatura às vésperas do fim dos dias.

A eclosão da guerra não foi uma surpresa total. A tensão vinha aumentando há tempos. Depois que a economia chinesa superou a do eixo Europa-EUA, toda xenofobia e racismo enrustidos no primeiro mundo vieram à tôna com violência inaudita. Imigrantes orientais foram brutalmente discriminados nas grandes cidades ocidentais e logo o mesmo começou a ocorrer no Oriente. O fator ideológico influenciou o crescimento das hostilidades. A China, depois de completar a transferência, para si, de todas as tecnologias ocidentais, interrompeu o processo de abertura e deu início um firme e acelerado recuo ao socialismo fechado de Mao-Tsé-Tung, recriando a pesada atmosfera da guerra fria.

Diferentemente do que pensam a maioria dos estudiosos e artistas, incluindo os que mais respeito e admiro, acho que a arte teve sim culpa em deixar as coisas chegarem a esse ponto. O fato de ter culpa, no entanto, não a diminui estetica ou moralmente. A função da arte não é salvar a humanidade. Talvez sua missão seja, ao contrário, destruí-la. Não tem culpa, tem responsabilidade.

Entretanto, ao contrário do que minha postura pode sugerir a alguns, nunca acreditei em arte engajada. Ela oculta uma vontade de poder que, embora não seja negativa em si, revela profundos preconceitos de classe (de ricos contra pobres ou pobres contra ricos), enraizados no íntimo das pessoas mais bem intencionadas, além da tendência a uma simplificação grosseira e convencional da complexidade humana. Creio, no entanto, que a arte poderia ter ajudado a evitar a catástrofe, sim, dando conta dos problemas existenciais que sempre constituíram a razão de todo conflito e, em última instância, de toda guerra. Algumas obras-primas poderiam ter contribuído para mudar a história.

Os pós-modernos, esses eu classifico, decididamente, como principais responsáveis pela degradação cultural que nos levou à guerra. Não os artistas (existiram figuras extraordinárias entre eles). São responsáveis, sobretudo, os curadores, que, ao selecionarem quase sempre os piores dentre os piores, disperdiçaram oportunidades históricas de produzir questionamentos efetivos aos rumos da humanidade. E, naturalmente, os mercadores de arte, que inflacionaram ou deflacionaram as obras contemporâneas de acordo com o marketing acadêmico & caduco da hora. Imiscuindo-se em todos os segmentos da arte - produção, crítica e negócios, o lado escuro do pós-modernismo deixou um cenário de terra arrasada, aniquilando, por onde passou, qualquer traço de humanismo e sinceridade.

Eu, por exemplo, varei noites discutindo com pós-modernos sarcásticos, assumidamente neo-liberais, embora sem noção alguma de política, no sentido humanista do termo - apenas conscientes que o sistema sempre favorece quem segue suas regras, inclusive quando a regra é ser subversivo, ou fingir-se tal. Assim surgiu um exército de pilantras engajados à esquerda e cínicos vanguardistas à direita, com alguns espertinhos agradáveis ao centro.

O resultado foi esse: Deus espremendo a espinha do mundo para eliminar o pus, a humanidade. Faça-o Deus! Destrua-nos! Não deixe vestígios! Arte, ciência, filosofia, moral, religiões, que sejam sugadas, como cocaína, pelas narinas divinas, convertendo-se em trinta minutos de excitação olímpica e melecas gigantes. O que me consola ao pensar no infinito vazio galáctico que nos espera, é imaginar livros como os de Daniel Urbes incinerados na fornalha implacável deste odioso e precoce apocalipse – não legando, aos seres que herdarão o planeta, mais esse testemunho de nossa mediocridade.

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