3 de novembro de 2007

Recordações de Clermond-Ferrand & Resenha do filme La Vie des Autres


(crônica escrita em julho de 2006, mas inédita)

Estávamos morando em Clermond-Ferrand, cidadezinha medieval no interior da França, e queríamos muito ir ao cinema. Havia dois filmes que não tínhamos assistido: Bug e La vie des Autres (A vida dos outros). Por extrema infelicidade, optei por Bug e penamos duas horas diante de um clichê holliwoodiano lamentável. O começo do filme é bom, os atores são excelentes, mas quando o tema central aparece, os tais dos Bugs, a história quebra o pé. Para cúmulo da chatice, não tem nenhum efeito especial – único recurso que poderia salvar o filme do tédio absoluto em que ele afunda. Enfim, terminou o filme e a gente ficou tão frustrado – visto que havíamos investido nele nossos últimos tostões - que a Priscila inventou de entrarmos clandestinamente em outra sala. Pensei: já tô velho para esse tipo de coisa; mas o demônio se insinua facilmente no espírito dos lassos e, como eu estava ainda deprimido com o fracasso de nossa noite, aceitei participar de mais essa falcatrua. Será meu derradeiro crime, prometi a mim mesmo - talvez a mesma coisa que pensou Waldomiro Diniz antes de ser flagrado por uma câmera indiscreta.

Escondi-me no banheiro enquanto minha cúmplice sondava a situação. De vez em quando, ela entreabria a porta e dizia para eu aguardar mais alguns minutos. Eu não estava gostando nada daquilo. Pra dizer a verdade, estava achando ridículo. Um cara de 31 anos, com o tempo de visita permitido na França já estourado, arriscar-se desse jeito por causa da merda de um filme? Mas a Pri continuava tão excitada que me deixei levar. Não digo que a culpa é dela – pelo contrário, acho que um adulto que sucumbe, por pura lassidão, à vida do crime, ocupará um círculo infernal ainda mais profundo. Além de criminoso, é fraco.

Enfim, ela abriu a porta e disse que o terreno estava limpo: saí do banheiro e entramos na sala. O filme não havia começado e nos sentamos sob a luz forte, eu me sentindo o mais deprezível dos brasileiros que jamais visitaram a Europa, imaginando que a qualquer momento a polícia irromperia na sala. Seríamos humilhados, presos, expulsos do país. Felizmente, as luzes apagaram, o filme começou e ninguém nos prendeu.

Se alguma vez o crime compensou, contudo, não foi desta vez. Foi a pior coisa que vi nos últimos trinta e um anos. Pior ainda que Bug. Era um desses filmes franceses sem o mínimo tratamento de fotografia, sendo que a história deste, pelo que pude constatar dos vinte minutos que assisti antes de sair, era sobre uma família de classe média, com dois jovens retardados filhinhos-de-mamãe que passavam o tempo todo jogando video-game. Saímos da sessão duplamente frustrados.

"Por quê não fomos ver Vida dos Outros?", era a pergunta que repetíamos incessantemente um ao outro, como um mantra, enquanto nos arrastávamos para nosso muquifo, no rés-do-chão de um prédio semi-destruído na II Guerra.

O tempo passou, a Vida dos Outros ganhou o Oscar de melhor filme estrangeiro e minha raiva por mim mesmo cresceu. Não que eu dê tanta importância assim ao Oscar, mas o prêmio provava que, no mínimo, era um filme interessante. Eis que, neste sábado calmo do dia 10 de março, devidamente abastecidos pela chegada de uma verba extra, resolvemos assistir Vida dos Outros no cinema da praça Jaude, nesta pacata cidade medieval (Clermont-Ferrand) onde nos escondemos há um mês. Paguei os ingressos, seis euros cada, preço reduzido para estudante e entramos na sala.

Digressão islâmica

... enquanto escrevo bateram na porta. Levei um baita susto. Fiquei perguntando "Quem é, quem é?", até que pude entender que chamavam meu nome. O árabe que nos emprestou o apartamento onde estávamos queria falar com a gente. Saímos para o pátio que serve de depósito e garagem e entramos numa porta lateral. Era um dos restaurantes, a essa hora fechado, de propriedade do árabe. Ele me ofereceu bebida. Pedi cerveja. Ele e a Pri beberam suco. O papo começou meio devagar. Perguntei a ele como era a Tunísia, quanto custava a passagem para lá, sobre o custo de vida. Aos poucos, a conversa entrou em terreno sagrado e se animou. Ele falou sobre o islamismo. Contou-nos que o Islã acredita em Moisés, em Jesus e em Maomé. Mas eles mudaram um pouco a lenda de Cristo. Para eles, Jesus nunca foi crucificado. Ele subiu ao alto de um morro e ascendeu aos céus. Deus fez uma cópia do Salvador e outro homem sofreu no lugar dele. Comentei que isso provava a minha tese de que o Islã é uma religião que não entende a derrota, ao contrário do Cristianismo, onde a derrota e a humilhação constituem a essência da fé. Entramos na Igreja e a primeira coisa com a qual nos deparamos é a imagem gigantesca de Jesus crucificado, sangrando nas mãos e pés, sangrando pela ferida no peito feita pela lança de um soldado romano e sangrando pelas feridas na cabeça provocadas pela coroa de espinhos. No Islã, o profeta maior, Maomé, foi um vencedor. Ele venceu os faraós, matando-os junto com toda sua família e seguidores, e tornou-se um líder, um chefe de Estado, vivendo até a extrema velhice como um profeta bem sucedido.

Comentei com Tony – o apelido dele na França - que o Corão só deve ser bem compreendido em árabe. Não expliquei porque cheguei a essa conclusão, mas digo a vocês: já tentei ler o Corão em português e em francês, e fiquei muito decepcionado com a pobreza literária do texto, afora a extrema violência que emana de suas páginas. Em toda a parte, há invenctivas brutais contra os infiéis, algumas mesmo incitando o assassinato. Isso na minha pobre interpretação de textos mal traduzidos, que fique bem claro. Disse a ele que a força do Corão se dilue nas traduções. Ele concordou emocionado: "tudo, tudo", disse ele, referindo-se à perda da magia e da poesia corânicas fora da língua mãe. Esta seria, aliás, a razão pela qual o árabe se expande na mesma proporção que o islamismo: o livro sagrado da fé muçulmana sendo grande unificador e promotor linguístico. Tentei explicar e defender a fé cristã, mas o meu francês manco e um entusiasmo religioso muito menor que o dele, acabaram prejudicando meus argumentos.

... o papo rolou bem animadamente até quase cinco horas da manhã. Nos despedimos e viemos dormir. Acordei uma hora da tarde e agora retomo o fio da narrativa. Parei no momento em que entrávamos na sala de cinema para ver A vida dos Outros, longa-metragem alemão dirigido e escrito por Florian Henckel von Donnersmarck, sobre a vida de um dramaturgo da Alemanha oriental, nos tempos do comunismo, pouco antes da queda do muro de Berlim.

O dramaturgo, protagonista da trama, começa a ser vigiado 24 horas pela Stasi, a polícia política alemã. O Ministro da Cultura, depois de assistir a uma peça, chama um subalterno e ordena a instalação de escuta no apartamento do artista, só porque o cara é talentoso e namora uma bela atriz (interpretada pela estupenda Martina Gedeck), para a qual o Ministro começa a arrastar suas asinhas. O Ministro pressiona e consegue se tornar amante da atriz, moça frágil e medrosa, que cede ao medo de ser perseguida caso não satisfaça os desejos do poderoso político. O homem encarregado de vigiar o escritor é o segundo personagem principal da história. De início um frio e duro agente da Stasi, ele vai descobrindo, enquanto monitora a rotina do escritor, uma outra realidade. Ele simpatiza com o escritor, compartilha de suas angústicas. Rouba inclusive alguns de seus livros – entre eles, Brecht - e os lê.

Numa noite, o agente escuta o escritor tocar ao piano a Sonata do Homem Bom, de Beethoven, logo após receber a notícia do suicídio de seu amigo – que fora proibido pelo Partido de trabalhar, por razão fútil. Terminando de tocar a obra-prima, que fora presenteada justamente pelo amigo morto, o escritor diz à sua esposa (o agente sempre escutando tudo):

"Lenin dizia que se os homens escutassem essa música, não haveria revolução. Não haveria necessidade de revolução. Porque se os homens realmente escutassem essa música, se a escutassem verdadeiramente, eles não poderiam ser maus".

Este é o momento chave do filme. O agente, que acompanha tudo do escritório improvisado no terraço do prédio, chora copiosamente. O personagem acaba de sofrer uma transformação profunda. Ele se torna sensível. Não temos mais um funcionário apático, um burocrata gelado da Stasi. Temos um homem que descobre em si uma ética superior a qualquer ideologia, uma ética humanista. A partir daí, o agente vai ajudar secretamente o escritor, ocultando do Partido as reuniões ocorridas no apartamento, que antecedem o envio de um artigo dele, do escritor, à revista Der Spiegel, na Alemanha Ocidental, denunciando o totalitarismo do regime comunista.

Ao final, o agente é rebaixado para uma função subalterna: ler as cartas que saem do país, outra violação absurda da liberdade. Até o dia em que o Muro de Berlim é derrubado e as Alemanhas se unificam. O escritor, por um acaso, descobre que sua vida fora salva por um agente do próprio regime. Procura saber quem é, descobre seu nome e código nos arquivos do regime, e a ele dedica seu novo romance, rompendo com um bloqueio de criatividade que o atormentava há anos.

O filme termina com o ex-agente, agora um simples carteiro, comprando o livro na livraria, após ler a dedicatória onde consta seu nome-código. O vendedor pergunta se ele quer que embrulhe para presente. O carteiro responde: "não precisa, é para mim mesmo". Seus olhos, pela primeira vez, têm um brilho altivo, de orgulho e alegria, como um herói de guerra ao receber uma medalha. Sua individualidade foi recuperada, ele possui uma história de vida da qual se orgulhar. Ele é mais um dos milhões de heróis anônimos, pessoas boas que, nesses milhares de anos de civilização, marcados por guerras, injustiças e violências, ajudaram seus semelhantes sem pedir nada em troca, silenciosa e humildemente. O filme terminou e permaneci sentado vários minutos na cadeira, vendo o letreiro passar, a tela ficar branca e acenderem a luz.

2 comentarios

Anônimo disse...

Nossa! Ri pra caramba. O texto tá muito engraçado. Saudades de Clermont. Bonnie et Clyde.
beijos

José Carlos Lima disse...

"Eles querem, ou melhor, exigem, que o PSDB, criador da CPMF, seja o responsável por um buraco de 40 bilhões nos cofres públicos."

O melhor seria dizer 480 bilhões ao ano

Estes 480 bilhões da CPMF têm saído dos bolsos dos 10% de brasileiros que abocanham mais de 80 por cento do PIB nacional

Esta gente não quer nada, a não ser levar adiante o lema "Brasil quanto pior melhor" para trazer de volta os tucanos-demos

Estes 480 bilhões virão do dinheiro sujo que, como se sabe, é pego por causa da CPMF,

A CPMF é uma pedra no sapato da lavagem de dinheiro sujo

O pior de tudo é sabermos que o Senado, a Casa dos Lordes brasileira, ocupada em sua maioria por tucanos-demos tem o poder de invalidar o que os deputados federais, que nós elegemos, aprova

Prá que Câmara dos Deputados então?

Sem falar no STF que, conforme especialistas do meio jurídico, vide PHA, virou um órgão de oposição a Lula.

Eta Brasil dificil de arrancar ne, gente

Mas vamos assim mesmo

Aos trancos e barrancos

Mesmo contra a vontate do Marinho e Civitas da vida, vamos em frente!

Isso aí

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