Capitalismos menos capitalistas
Veja-se, por exemplo, os debates sobre as relações entre o Brasil e a Venezuela, ou a repercussão do "cala-boca" do rei da Espanha ao presidente Hugo Chávez. Embora o presidente Lula tenha levantado a questão da desigualdade de condições entre o monarca – que não depende de votos para se manter no poder – e um governante que precisa se submeter a eleições, a imprensa se desviou da questão e se ateve ao factóide em si.
Esse era um bom momento para pensar, por exemplo, na racionalidade da persistência das monarquias no mundo contemporâneo, com o anacronismo do conceito de direito divino ao poder. Na falta de abordagens menos convencionais, a opinião pública ficou atrelada ao que indica o viés ideológico de cada um, sem que se oferecesse a oportunidade para uma reflexão mais profunda sobre as relações entre a Espanha e suas antigas colônias, por exemplo.
Ora, empresas ibéricas fazem a festa na América do Sul, cumprindo o antigo papel do Estado de prover o desenvolvimento, beneficiam-se da privatização de serviços que os latino-americanos não conseguem financiar e acumulam lucros imensos. Trata-se do velho jogo do capitalismo, mas a imprensa passa por cima de certos detalhes, como o alto grau de envolvimento dos governos de Portugal e Espanha na constituição das multinacionais que atuam na América Latina. Esse detalhe, por si, mereceria algumas linhas de diferenciação entre capitalistas e capitalistas.
Quando a imprensa acusa os presidentes Hugo Chávez e Evo Morales de conduzirem a Venezuela e a Bolívia para fora dos padrões da economia capitalista, poderiam lembrar que as novas potências ibéricas financiaram suas multinacionais com recursos do Estado a partir da década de 1970 – e ninguém nunca publicou que o capitalismo espanhol ou português é menos capitalista.
Visão de mundo estúpida
Da mesma forma, nenhum jornal ou revista jamais se dignou a destrinchar o sistema financeiro da Suíça – nação tradicionalmente postada como paradigma da neutralidade e da civilidade – quando se sabe que o crime organizado e a corrupção têm em grandes bancos daquele país abrigo discreto para o dinheiro sujo. O escândalo das fraudes e evasão de divisas revelado recentemente pelas operações que a Polícia Federal batizou de Kaspar I e Kaspar II desapareceu do noticiário sem que a imprensa prestasse aos leitores o serviço de esclarecer esse lado perverso do sistema financeiro internacional.
Ao permanecer na superfície dos fatos, a imprensa deixa de estimular a inteligência do leitor e sua busca por explicações mais satisfatórias para certos acontecimentos. Ficamos, assim, presos ao velho e batido viés que reproduz um confronto ideológico sem sentido na complexidade do mundo contemporâneo.
Se, como afirma o peruano Alvaro Vargas Llosa, persiste na América Latina um pensamento esquerdista que ele chama de "perfeitamente idiota", a contrapartida é a permanência de uma visão de mundo conservadora, justificada pela imprensa, que podemos chamar, sem medo de errar, de absolutamente estúpida.
27 de novembro de 2007
Trechos de um artigo de Luciano Martins Costa, publicado no Observatorio da Imprensa em 27/11/2007
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