18 de janeiro de 2010

O descanso do condor



Arriscado usar, numa crônica sobre política latino-americana, o nome condor. Apesar de ainda ser um símbolo de liberdade e independência, a bela ave das cordilheiras andinas teve seu nome estigmatizado pela homônima operação de contra-insurgência realizada coletivamente pelas piores ditaduras da região. Mas eu insisto. Recuso-me a entregar tão facilmente um arquétipo poderoso e popular às mãos torpes de forças derrotadas. Ave mais nobre e mais livre das Américas, o condor é o maior pássaro do planeta. Suas asas têm envergadura superior a três metros, permitindo que ele voe longas distâncias sem sequer movimentá-las. O condor pode voar até trezentos quilômetros sem descanso. Mas o que isso significa perante a imensidão continental das montanhas onde ele vive? Em algum momento, o orgulhoso pássaro tem que descer e descansar.

A derrota de Eduardo Frei é o descanso do condor. Por mais competente que seja uma agremiação partidária, sempre haverá um período de cansaço, de esgotamento, de ânsia pelo novo. A esquerda chilena não foi derrotada neste domingo. Ganhou um desafio. Haveria derrota se o legado da esquerda chilena fosse um país devastado economica e socialmente, disso resultando uma vitória eleitoral esmagadora para a oposição. Nada disso aconteceu no Chile. A esquerda entrega um país com índices solidamente positivos e perdeu por poucos milhares de votos. Saiu por cima, com dignidade e respeito. Não se radicalizou. Não caiu em armadilhas maniqueístas, realizando avanços onde devia fazê-los e mantendo políticas que achou sensato conservar.

As grandes mudanças não são necessariamente inversões. Nenhuma instância é mais dialética que a política. Todo governo é simultaneamente continuidade e superação. Ou continuidade e regresso.

É válido comparar o Chile ao Brasil. Os formuladores da campanha de Dilma Rousseff terão à sua disposição o exemplo da derrota da esquerda chilena para se precaverem contra algo semelhante por aqui.

*

A esquerda latino-americana acumulou, nos últimos anos, uma longa série de vitórias. Muito além do que os mais otimistas jamais esperavam. Quem imaginaria, dez ou quinze anos atrás, que a esquerda ganharia as eleições presidenciais em quase todos os países do continente? E que a primeira década do novo século, após os trágicos anos 90, assistiriam a um declínio da miséria tão acentuado?

Essas vitórias sucessivas, todavia, são o prefácio de derrotas futuras. É a lei da vida. A derrota no Chile serve à esquerda como advertência de seu próprio declínio. Ingenuidade achar que o PT ou qualquer outro partido de esquerda governará o Brasil indefinidamente. Então achei esse poema de um chileno que ganhou o Nobel de literatura, o socialista Pablo Neruda, que fala da necessidade de caírmos de vez em quando para não perdemos a perspectiva da altura. Ou mesmo por razão nenhuma. Porque há mistérios na vida que não compreendemos e seria arrogância e loucura pretender controlar tudo o que acontece. O poema alude também às desgraças políticas (e humanas) que varreram o continente. "Os copos se enchem e voltam / naturalmente a estar vazios / e às vezes de madrugada / morrem misteriosamente. Os copos e os que beberam."

A esquerda latino-americana não perdeu no Chile, porque sua maior vitória ainda é válida. Os gritos de júbilo pela volta da democracia ainda ecoam nas escarpas de Machu Pichu. As ditaduras direitistas não voltarão mais. E se voltarem encontrarão um ambiente social e institucional muito mais preparado para enfrentá-las.

Os povos latino-americanos são pacientes e fortes. Já enfrentaram séculos de opressão, miséria e totalitarismo. Não será a eleição pontual de um conservador que abaterá o seu espírito endurecido por tantos anos de sofrimento. Sem dúvida, tudo está muito bem; e tudo - diz Neruda - está muito mal.

De qualquer forma, vinte anos no poder é um sonho ainda distante da esquerda brasileira. Lula teve oito. Ainda teremos que nos preparar muito para sermos capazes de voar tão alto e tão longe quanto o condor andino.

*

Abaixo o poema de Neruda, traduzido por mim mesmo.


Não tão alto

De vez em quando e à distância,
Há que se tomar um banho de tumba.

Sem dúvida tudo está muito bem
E tudo está muito mal, sem dúvida.

Vão e vem os passageiros,
Crescem as crianças e as ruas,
Por fim compramos o violão
Que chorava sozinho na loja.

Tudo está bem, tudo está mal.

Os copos se enchem e voltam
Naturalmente a estar vazios
E às vezes na madrugada,
Morrem misteriosamente.

Os copos e os que beberam.

Crescemos tanto que agora
Não saudamos o vizinho
E tantas mulheres nos amam
Que não sabemos como fazê-lo.

Que roupas lindas usamos!
E que importantes opiniões!

Conheci um homem amarelo
Que se acreditava laranja
E um negro vestido de vermelho.

Se vêem e se vêem tantas coisas.

Vi os ladrões festejados
Por cavalheiros impecáveis
E isso acontecia em inglês.
E vi os honrados, famintos,
Buscando pão na lixeira.

Eu sei que ninguém me crê.
Mas eu vi com meus próprios olhos.

Há que se tomar um banho de tumba
E desde a terra fechada
Olhar para o orgulho lá em cima.

Então se aprende a medir.
Se aprende a falar, se aprende a ser.
Talvez não seremos tão loucos,
Talvez não seremos tão lúcidos.
Aprenderemos a morrer.
A ser barro, a não ter olhos.
A ser um nome esquecido.

Há poetas tão grandes
Que não cabem numa porta
E comerciantes velozes
Que não recordam a pobreza.
Há mulheres que não entrarão
Pelo olho de uma cebola
E há tantas coisas, tantas coisas,
E assim são, e assim não serão.

Se quiserem não me acreditem.

Apenas quis ensinar-lhes algo.

Eu sou professor da vida,
Vago estudante da morte
E se o que sei não lhes serve
Não disse nada, senão tudo.

Pablo Neruda

(Tradução: Miguel do Rosário).

Ler original.

6 comentarios

Robin disse...

Grande Miguel. Voce e o Neruda estão certos. Caetano não. Ou não?
Abç.

Miguel do Rosário disse...

Oi Robin, o seu comentário ninguem vai entender, porque eu cortei o trecho que citava o "ou não" de Caetano. A culpa não é sua, claro. Valeu pela observação. Grande abraço.

Daniel Nascimento disse...

Belo post Miguel! Principalmente pela lucidez e a demonstração de espírito democrático. Que um dia nós, brasileiros, possamos ter essa clareza, à esquerda e à direita, na hora de discutirmos política.

Abraço.

carlos disse...

salve, miguel,

paidégua demais, meu camarada.
que sirva de lição pra gente também o resultado das eleições do chile.

abçs

Anônimo disse...

Ao ler você citar a ave, lembrei-me da música homonima de Oswaldo Montenegro: "Quando voa o condor... trás na asa um sonho... voa condor... e a gente voa atrás."

Unknown disse...

Cliquei "no leia" mais com aquela esperança arqueológica, saudades de um tempo escondido em páginas de livro velho. Sim, essas palavras que levam ao geral, dos povos, dos tempos, não recuperam a civilização atômica. Pensei na poesia condoreira do século xviii, no Castro Alves não revelado. Recuperei um Manoel Bonfim comprado em sebo - uma América Latina pra lá de sonhadora não pode ser emprestada sem grandes prejuízos afetivos. Condores em extinção não assistem a TV - não negociam, não concedem, não... Sobrou só Com-Dor. Quem sabe grassa esquerda cabeluda um dia?
rsss
isso (ou não)
Poeta Xandu

Postar um comentário