(
Valerio de Filippis)
Ontem conversei muito sobre política com uns italianos, e depois, pensando no que ouvi, fiz diversas comparações ao que acontece no Brasil. Aliás, tudo que eu vejo, escuto ou leio, eu comparo à terra dos sabiás que por lá defecam e gorjeiam. A questão do domínio, por Berlusconi, de canais populares de televisão, times de futebol, e empresas do show business, aguçou-me a consciência de quanto é perigoso misturar política e poder midiático. A nossa sorte é que a família Marinho ainda não pariu nenhum líder político. Mas temos que aprovar leis que impeçam a promiscuidade entre as forças políticas e os gigantes da mídia. Nesse ponto, o governo e os partidos fizeram um recuo este ano. Nada impede, porém, de pensarmos que seja um recuo estratégico. A luta contra os impérios midiáticos é algo muito mais complexo do que alguns imaginam; ela se dá em todas as democracias do mundo. É uma luta, aliás, que põe em cheque alguns princípios fundamentais da teoria democrática. Menciona-se muito as mudanças levadas a cabo em nossos vizinhos latino-americanos. Temos aí, de fato, um laboratório excepcional para que os cientistas politicos possam elaborar teses. Mas o Brasil tem uma situação bem mais complicada. Temos uma sociedade mais cosmopolita, mais industrializada (apesar do discurso da "desindustrialização", que provei ser falso), muito mais contraditória. Um processo de regulamentação da mídia precisa ser bem melhor calculado no Brasil do que em outros países.
Agora eu deixo bem claro a minha opinião: precisa haver uma regulamentação sim, e de preferência o mais rápido possível. Não vou, porém, cagar regras sobre como a classe política encaminhará essa luta. Também acho que é presunçoso de nossa parte acharmos que existe qualquer tipo de consenso sobre os objetivos. Há uma tendência crescente, nas redes sociais, a estabelecer controles sobre a expressão que me parecem totalmente esdrúxulos, ou mesmo fúteis. Lembro-me de um grande escândalo que se fez no Twitter porque uma repórter de uma revista feminina publicou uma matéria sobre "como conquistar um gringo". Acusou-se de ser uma matéria que estimulava o turismo sexual. Ora, isso é moralismo. Ou machismo às avessas. Eu li a matéria: um texto bobinho, inocente; talvez de mau gosto, mas totalmente inofensivo.
Se alguém publicasse uma matéria sobre como seduzir as lindas suecas que visitam o Brasil, ninguém protestaria. Ou seriam protestos bem menores. Outros querem controlar as novelas, estabelecer cotas para tudo, etc. Sou a favor das cotas para negros e pobres nas universidades, mas só para isso, e com data para acabar, não para programas de televisão. Acho um absurdo terrível que haja tão poucos negros na TV brasileira. Uma vez fiquei estupefato ao assistir uma novela do SBT que simplesmente não trazia nenhum ator negro, nem sequer moreno. O índice de melanina da televisão nacional certamente está bem abaixo do aconselhável. Acho que podíamos fazer campanhas no sentido de melhorar isso. Sou a favor de campanhas de esclarecimento, esse tipo de coisa. Cotas compulsórias, acho que seriam contraproducentes, uma agressão, uma admissão de fraqueza, além de uma violência à liberdade.
Na verdade, eu também penso na liberdade de expressão, de opinião, nessas coisas todas. Não vou deixar essas bandeiras para os garotos do instituto millenium. Tenho igualmente minhas pendências com os entraves do politicamente correto. Minhas críticas, no entanto, são colocadas de uma maneira completamente diversa. Por exemplo, por que todos esses almofadinhas que protestam contra o politicamente correto não fazem piadinhas com os barões da mídia?
Hoje dei um passeio pelos blogs políticos e observei que o vazio deixado pelo fim do mandato de Lula ainda não foi preenchido. Talvez não o seja jamais. E o desdobramento dos debates deflagrados com os escândalos de corrupção gerou uma guerra pela destruição X manutenção do mito do presidente operário. A mídia brasileira optou por uma estratégia bastante maquiavélica, desde o início, que é trabalhar a imagem positiva de Dilma estabelecendo sempre uma oposição a tudo de negativo (segundo a mídia) que havia no governo Lula. Com isso, constrange duplamente a militância: primeiro porque, acostumada a ser um contraponto à oposição midiática ao governo, de repente vê seu maior inimigo elogiando a presidenta; segundo porque esse elogio vem acompanhado de um esforço para desconstruir o legado lulista.
A estratégia do Planalto de evitar o confronto com a mídia e dialogar amigavelmente com as forças de oposição, especialmente com Fernando Henrique Cardoso, causa irritação em muitos blogueiros progressistas, acostumados a uma rotina de guerra. Com isso, alguns ficam realmente agressivos e irritados, com tudo e todos. O movimento dividiu-se em três: uma ala mais "independente", flertando já com uma oposição à esquerda, parece ter se tornado majoritária entre os grandes e seus exércitos de leitores e comentaristas; uma parcela importante dos blogueiros pequenos, todavia, se mantém bastante fiel ao governismo, por razões orgânicas; uma terceira ala simplesmente afastou-se do movimento, justamente para fugir a esse divisionismo cada vez mais radical e sectário.
Eu me encaixo no terceiro grupo (embora esse texto aqui me traga, de certa forma, ao movimento, que em última instância é apenas um grupo de debate), até por achar que a blogosfera política está se tornando autofágica, ou seja, está começando a devorar a si mesma. Se nos distraímos, alguém nos arremessa um estereótipo hediondo; geralmente algo bem degradante, como "dizer amém a tudo que faz o governo"; ou pior: "puxa-saquismo", mostrando que a acusação anterior de "chapa-branca" não é mais suficientemente brutal. Por fim, parece que decidiram converter, definitivamente, a palavra "pragmático" num sinônimo de imbecil.
Então resolvi me afastar desse debate antes que perdesse a compostura, como já fiz algumas vezes. Mas agora estou mais autoconfiante. Já falei de poesia, cinema, já provei um pouco a mim mesmo que não dependo (intelectualmente falando) dessas querelas mesquinhas para existir como blogueiro; então posso voltar a interferir na discussão. Com toda a humildade, já que, assim como Veríssimo, considero-me o homem mais humilde do mundo.
Muita gente parece alimentar grandes certezas sobre o que seria a melhor comunicação oficial, outros entendem profundamente de marketing político; alguns até arriscam ler a mente dos proprietários da mídia para nos informar quais são seus planos secretos.
Vamos encaminhar uma questão concreta. A faxina ética que Dilma vem promovendo nos ministérios, por exemplo. É bom ou ruim? Neste ponto, deflagrou-se uma série de surtos esquizofrênicos na blogosfera, cujas primeiras manifestações aconteceram por ocasião do caso Palocci. Os que defendiam a sua saída a todo custo, mesmo que não houvesse nenhuma acusação objetiva contra o ministro, de repente passam a lamentar a decisão da presidente de demitir funcionários (incluindo ministros) sobre os quais pesam graves acusações, concretíssimas, de corrupção.
É claro que o fato de muitas dessas acusações terem sido publicadas inicialmente na revista Veja causa um constrangimento enorme na militância de esquerda. É como se o governo cubano ficasse sabendo de uma falcatrua de um funcionário através da Fox. O problema nasce, todavia, de uma postura maniqueísta, que não é saudável e nunca dá certo. Assim como os blogueiros não são santos (no sentido de nunca publicarem uma inverdade), a grande mídia também publica denúncias verdadeiras. Não me refiro a nenhum caso em particular. Adoto somente uma postura filosófica. Até o diabo diz a verdade às vezes, se lhe convir. E até mesmo Jesus torcia aqui e ali um raciocínio para não provocar constrangimento entre seus apóstolos.
A faxina, no entanto, é sã, mesmo que isso provoque uma crise passageira junto o Congresso Nacional. Quer dizer, politicamente é arriscado, mas outra atitude também comportaria riscos. Digamos que Dilma não tivessse feito nada no Ministério dos Transportes. Acreditam realmente que as denúncias cairiam no esquecimento? Ou a mídia produziria uma bola de neve, juntando um escândalo em outro, criando uma espiral interminável de denúncias, até tornar irrespirável a atmosfera política no país?
Além do mais, não podemos afirmar que Dilma demitiu tal ou qual funcionário apenas em função de uma denúncia na mídia. Talvez a mídia realmente tenha "furado" investigações já em curso dentro dos aparelhos de controle do governo, mas pode ser igualmente (o que me parece bem plausível) que a presidente, em virtude da alta posição que ocupa, tenha informações que nem o público nem a mídia possuem.
Como cidadão brasileiro, eu quero mais é que a faxina ética se aprofunde no país. Desde que os direitos de defesa de todos os personagens sejam respeitados, para mim é um processo extremamente salutar, porque é uma realidade inegável que a praga da corrupção contaminou quase todas as esferas da administração pública. Não me interessa se a mídia ganha prestígio com isso; se ganha, é porque - infelizmente - merece; nossos adversários também fazem gol; também procuro não pensar muito se um grupo ou outro de parlamentares está insatisfeito. Essas crises entre Executivo e Parlamento só duram até a liberação de verbas, ou até as próximas eleições.
Em relação às políticas do governo, eu darei dois ou três anos para Dilma melhorar a educação e saúde no país. Não espero nenhum milagre, até porque entendo que vivemos numa federação em que as políticas federais devem ser integradas a iniciativas de estados e municípios. Conto apenas com uma melhora que tenha relevância e aponte para um processo contínuo. Também aguardo o prosseguimento das grandes obras de infra-estrutura. De resto, não me sinto tão inteligente (ou vidente) para ministrar aulas de política a Dilma Rousseff e seus assessores. Não pretendo "dizer amém" ao que faz o governo; eu simplesmente tenho outras coisas com que me preocupar e para fazer uma crítica consistente, eu preciso de um mínimo de embasamento.
Um ponto em que bato o martelo, todavia, é a fragilidade das políticas públicas em relação à banda larga nacional. É ruim, e não vem de hoje. Mas como não posso fazer nada quanto a isso a não ser reclamar por aqui, não me resta senão esperar para ver se melhora em dois ou três anos.
De resto, acompanho a realidade social e econômica do país, leio meus livros e trabalho para ganhar a vida. Me perdoem se pareço resignado; não quero sê-lo. Igualmente me sinto desconfortável quando me chamam de "moderado". Não queria que me rotulassem de nada. Prezo muito, da mesma forma, o conceito de "revolucionário" para atribuí-lo facilmente a qualquer indivíduo metido a politizado. Estudei e estudo as revoluções e a história das civilizações, e vi quanto os verdadeiros revolucionários tiveram que lutar contra os voluntaristas, os radicais, os fanáticos, os sectários, os oportunistas. Também vi como as revoluções mais lindas degeneraram em massacres covardes, em banhos de sangue que engolfaram seus próprios lutadores, como foi o caso da francesa. A gente tem que aprender com esse tipo de coisa, para isso serve a história.
Resumo: continuo emprestando meu apoio total à Dilma Rousseff, independemente se tenho críticas pontuais a seu governo. Em relação ao problema da mídia, acho que a esquerda vai crescer bastante em 2012, e tudo que a Dilma vem fazendo, em termos de bom relacionamento com os
medios, e mesmo sua luta implacável contra a corrupção, inscreve-se numa estratégia de capturar o eleitorado de centro-direita do Sudeste. A colunista da Folha, Cantanhede, ao que parece, foi a única a alertar o PSDB para esse "perigo"; a blogosfera, por sua vez, esnobou a sugestão como se fosse algo inteligente demais para a presidenta. Acredito que o próprio PT, ao recuar na questão da mídia, também pensa na conquista do Sudeste.
Uma pá de gente acredita que esses recuos podem transformar o PT num partido social-democrata europeu, como se isso fosse um xingamento. Esquecem que os social-democratas tiveram o poder por mais de trinta anos em vários países e promoveram profundas reformas sociais e políticas. Eles sofrem um desgaste natural hoje, mas há uma conjuntura muito específica por lá, que envolve o descontrole nos fluxos de imigração, um forte endividamento público, o envelhecimento da população, a perda de competitividade das indústrias européias em relação à Ásia, e a escassez de recursos naturais, sobretudo combustíveis. Não são problemas propriamente de raíz ideológica, embora a discussão ideológica seja, naturalmente, a única maneira de encaminhar soluções à crise.
Se o PT se converter num partido social-democrata europeu, portanto, em termos de longevidade no poder, aceitação social e políticas públicas, acho que será um avanço para o Brasil. Ainda temos muita pobreza, muita dívida social a ser sanada, antes que a população brasileira se canse desse papo de distribuição de renda, programas sociais, educação e saúde públicas. A esquerda brasileira ainda tem bastante munição para queimar, tantas eleições a vencer. Muitas águas correrão por esse rio, e as transformações que não vemos hoje, poderão eventualmente acontecer em breve.