(Foto publicada na capa do Estadão desta quinta-feira 25)
Rui Castro, numa de suas crônicas, escreveu que a humanidade se divide em duas: aqueles que dividem a humanidade em duas e os que não o fazem. A máxima vale para Cuba. Há os que dividem homens (e muchachas) entre os que gostam de Cuba e os que a odeiam, e há os que preferem não fazê-lo. Neste caso, eu sou maniqueísta. Eu divido a humanidade e me coloco ao lado dos que gostam de Cuba. No entanto, como também sou moderninho, moderado e cult (nem todos trabalham na Folha), tenho imenso respeito a quem pensa diferente e estou sempre pronto a jurar, com as mãos postas sobre as obras completas de Voltaire, que sou um apaixonado e fiel seguidor dos ideais democráticos.
Sou tão democrático que permito, do alto de minha tolerância (ou seria arrogância?) ocidental, que outros povos se organizem de forma distinta. Outro dia, li num jornal estrangeiro que o governo inglês decidiu pagar um curso de economia à rainha. Segundo declarou um figurão da cúpula do governo, a medida seria muito salutar, porque permitiria à monarca ajudar a Grã-Bretanha a superar suas crises econômicas.
Os ingleses são um dos povos que mais admiro entre todos no mundo, por sua arte, disciplina, bravura, pelo respeito que aprendeu a ter com seus trabalhadores. Em Sicko, o filme de Michael Moore que denuncia a precariedade do sistema de saúde americano, o cineasta vai à Inglaterra e nos mostra o que é, de fato, o primeiro mundo. As pessoas não apenas não precisam pagar nada para serem atendidas imediatamente por equipes médicas excelentes, como ainda recebem, na caixa do hospital, uns trocados para pagar o transporte de volta à casa. E isso num país com uma renda per capita de 35 mil dólares (a do Brasil é de 10 mil)!
Mesmo assim, acho ridículo essa história de monarquia. Não considero nada democrático que um monarca não eleito possa dar palpite nos destinos da Inglaterra.
Mas falemos de Cuba. Os três grandes jornais estamparam fotos imensas de Lula com Fidel e seu irmão na primeira página. Todos trazem também, previsivelmente, críticas ao regime comunista cubano e, mais importante, à postura "cúmplice" do governo brasileiro. Segundo esses críticos, entre eles o ex-chanceler tupi Luiz Felipe Lampreia (que hoje assina artigo publicado no Globo e Estadão, além de entrevista à Folha), o Brasil deveria cobrar de Cuba maior respeito aos direitos humanos.
Clóvis Rossi assina uma decorosa, pastosa, fanhosa pensata no site da Folha, intitulada "Quando o silêncio é cumplicidade". Concordo com algumas colocações de Rossi, como essas:
Não há ditaduras de direita e de esquerda. Há ditaduras. Ponto. Não há direitos humanos de direita e de esquerda.
Ou melhor, nem concordo tanto. Há os que derrubam ditadores e há os que derrubam democracias. A guerrilha cubana visava derrubar uma ditadura.
Continuo, todavia, achando que o Brasil, que deixa milhares de crianças dormindo na rua, passando fome, expostas ao crack, a toda espécie de violência, não tem o mínimo moral para cobrar direitos humanos de outro país. Mesmo desejando que houvesse democracia em Cuba, não consigo aceitar tão facilmente que nos façam de idiotas. Os EUA e as forças de direita do continente americano, incluindo aí os grupos de mídia, derrubaram todas as democracias da América Latina, com ênfase particularmente brutal na própria Cuba e nações vizinhas. Derrubaram na década de 50, na Guatemala; na década de 60, no Brasil; e continuaram derrubando democracias até a década de 80. Em 2002, os EUA apoiaram um golpe de Estado contra Chávez. Em 2009, quando pensávamos, enfim, que o pesadelo havia terminado, os militares derrubam o presidente eleito de Honduras e o deportam, na calada da noite, para outro país. E a direita comemora! Vários próceres da direita brasileira, os mesmos que hoje cobram democracia em Cuba, defenderam o golpe contra Zelaya. E o golpe deu certo, pois o líder golpista permaneceu no poder até o fim de seu "mandato" e não foi preso. Acabou perdoado, depois de dar um prejuízo de bilhões de dólares ao pobre país centro-americano e mutilar as esperanças dos milhões de hondurenhos que apoiavam Zelaya.
Como cobrar democracia em Cuba se as forças retrógradas do continente continuam dispostas a patrocinar golpes de Estado sempre que o povo eleger lideranças menos comprometidas com as velhas oligarquias?
A discussão em torno de Cuba costuma ser viciada e desinformada. Não foram os guerrilheiros de Sierra Maestra que derrubaram a democracia cubana. Quem a derrubou foi Fulgêncio Baptista, com apoio norte-americano. Fidel Castro era um jovem advogado cubano de grande capacidade intelectual, um idealista generoso e sonhador, cujas ambições políticas foram podadas pelo golpe de Estado, que cancelou eleições e instituiu uma ditadura sanguinária e corrupta. A história dos povos não pode ser explicada em 140 caracteres. Fidel, Che, e tantos outros, lutaram pela liberdade do povo cubano, e a liberdade naquele momento era derrubar Fulgêncio. E as circunstâncias históricas impossibilitaram a democracia em Cuba. Que incentivo os EUA e a mídia latino-americana deram ao processo de democratização cubana? Golpes militares sucessivos no continente?
Quando todos pensam que os golpes acabaram, que não há mais desculpas para o regime cubano não democratizar o regime, eis que a hidra golpista exibe sua cabeçorra peçonhenta em Honduras. E com apoio entusiástico da poderosa extrema direita norte-americana e indiferença do próprio Obama.
O regime cubano é mais uma vítima dos golpes de Estado que massacraram o continente moreno. Quem derrubou a democracia cubana, repito mais uma vez, foi Fulgêncio Baptista, um ditador cruel que sempre mereceu apoio incondicional dos Estados Unidos.
Prezado Clovis Rossi, existem sim diferenças entre ditaduras. Sua pensata de 404 palavras, definitivamente, não dá conta da complexidade do tema. Ao contrário, amesquinha-o. Faz os leitores pensarem que basta alguém vir ao meio da praça e gritar: faça-se democracia! E a democracia surgirá automaticamente. Cuba partilha com todo Caribe a desgraça de ser vizinha de um país dominado por instintos imperialistas extremamente egoístas, e que, até o momento, nunca deixou que uma democracia estável, contínua, sólida, assentada em princípios verdadeiramente humanistas (como deve ser uma democracia genuína), florescesse na região.
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Quanto aos prisioneiros políticos de Cuba, eu me posiciono contra qualquer violência contra a liberdade individual. Eu não queria ser cubano nem viver em Cuba. Prezo muito minhas excentricidades e aprecio, mais que tudo, a originalidade. Tenho a mesma admiração por escritores tido como "reacionários", como Céline e Knut Hansum, como pelos "revolucionários", como Sartre. Sem preconceito. Na minha opinião, o regime cubano comete um terrível erro político - mais que isso, comete uma imperdoável injustiça - quando condena pessoas por divergência ideológica. Se o caso é de espionagem, então que se esclareça tudo.
Diante da enorme visibilidade de Cuba no mundo, esses processos judiciais deveriam ser transparentes e o regime deveria se preocupar mais com sua imagem junto à opinião pública internacional. O mundo mudou. Mesmo com o golpe em Honduras, é possível afirmar que a consciência democrática está hoje consolidada em toda a América, e os países latinos vivem um processo de integração extremamente saudável, sempre norteados por princípios democráticos, republicanos e modernos. Todos estão dispostos a ajudar Cuba. Todos sempre defenderam o fim do embargo econômico.
Eu pensei em terminar o parágrafo anterior com a seguinte frase: "É hora de Cuba ajudar-se a si mesma". Aí pensei: pô, que arrogância! Aqui na Lapa, dezenas de bueiros estão vazando merda. Há lixo jogado em toda parte. Perto dos Arcos e na Glória, vagam tropas enormes de crianças famintas e drogadas. O nível de educação e instrução das pessoas parece cair dia a dia. E eu aqui pregando melhorias em Cuba! Mas é isso mesmo. A coisa tem a ver com princípios. O antidemocratismo cubano, assim como o norte-coreano, prejudica o socialismo, trazendo prejuízo às causas trabalhistas em todo o globo. Por isso é importante discutir Cuba. Por isso Cuba é um tema sempre polêmico. Os anseios generalizados por mais democracia em Cuba, portanto, não tem origem apenas em intenções malevolamente antisocialistas. E mesmo que seja assim. A filosofia nos ensina que, em muitos casos, nossos adversários são nossa maior garantia de evolução. Ao nos confrontarem, eles, sem disso ter a consciência, nos oferecem um espelho de nós mesmos, sem a maquiagem de nossa vaidade, de nossa ambição. Oferecem-nos a dialética. Cuba apenas evoluirá quando aprender a confrontar a sua própria sombra, seu autoritarismo, sua escassez de liberdade, sua pobreza.
Eu sou favorável que não haja democracia em Cuba enquanto a iminência de um golpe estiver rondando o país.
Miguel,
Matou a cobra e mostrou o pau. De novo.
O presidente Lula - a quem admiro muito - não tem mesmo que exigir direitos humanos de país algum. Porque isso significaria que outros chefes de Estado poderiam lançar mão de semelhante chantagem moral para fazer valer seus interesses quando visitassem o Brasil.
A 'feminista' Hillary Clinton não levantou voz pelos direitos das mulheres quando visitou a Arábia Saudita agora há pouco, e ninguém reclamou.
Eu, pessoalmente, acho que a revolução cubana, assim como o processo democrático brasileiro, estão evoluindo sim. Não a passos tão largos, claro, mas que estão, estão.
Um grande abraço!
Podia também perguntar ao Rossi o que ele acha da prisão de guantanamo?
O texto merece ser comentado, mas, por falta de tempo, vou me limitar ao elogio.
O texto está excelente, Miguel!
Um abraço!
Muito bom, Miguel. Passei quase um mês em Cuba, há menos de dois anos, e ouvi de pessoas comuns uma pergunta incômoda: "Como é que vc consegue viver num país com tanta miséria? Com tanta criminalidade, doenças, falta de educação e saúde?"
Eles amam e admiram o Brasil, do qual sabem muito mais do que nós sabemos deles. E discutem sua política interna com muito mais intensidade do que nós discutimos a nossa.
Quando assumiu, Raúl Castro convocou o povo a debater reformas no Socialismo. Ele e seus ministros compareceram a escolas, fábricas, para ouvir críticas e sugestões, com absoluta liberdade. Não senti, em nenhum momento, uma censura à expressão popular, não vi soldados armados, não vi a cara da ditadura, como vi no Brasil antes de 84.
Dirão que, como turista, não pude aprofundar-me na realidade cubana. Em parte é verdade, pois visitei muitas cidades, foi meio corrido. Mas meu guia (que a princípio eu pensei que fosse um agente do PCC que nos vigiaria) jamais interferiu nas minahs abordagens a pessoas de todo tipo. Até com padre e diácono eu conversei à vontade.
É óbvio que não é uma Democracia nos nossos moldes. Há presos políticos, a maioria dos quais foram detidos com armas nas mãos, planos de atentados, ligações com os EUA. Deve haver alguma injustiça nisso tudo, mas não se trata de um Estado de terror, como nossa mídia apregoa.
O fato é que Cuba está em guerra, movida pelos EUA há 50 anos. Bush fez uma lei que proíbe qualquer empresa do mundo que negociar com Cuba de negociar com os EUA! Cada dia de bloqueio custa tira de Cuba milhões de dólares que poderiam corrigir a pobreza atual. O povo quer mais, mas dentro do Socialismo.
O espaço é pouco para expor minhas impressões. Termino com uma frase que ouvi quando perguntava se tudo iria mudar quando Fidel morrer: "Somos 11 milhões de Fidel".
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