19 de novembro de 2010

Golpismo forever

Essa matéria do Globo e a forma como o assunto é abordado reforçam minha tese de que a luta contra a ditadura continua. Acusações desse quilate envolvendo a presidente da república eleita há poucas semanas deveriam receber um tratamento editorial minimamente responsável. Ainda bem que o Supremo Tribunal Militar teve a lucidez de liberar os dados somente após as eleições, porque se a campanha já estava suja, imagine o nível a que chegaria se a imprensa, no auge da disputa, tivesse estampado isso:



Não há mentiras na reportagem, e por isso mesmo ela é ainda mais pérfida. O Instituto Millenium tratou de reproduzir rapidinho...

O título confunde o eleitor, ao estampar uma afirmação que consta de um processo notoriamente viciado, conduzido por um governo ilegal, assassino e totalitário, alçado ao poder por um golpe de Estado que derrubou um presidente eleito, cassou parlamentares e acabou com a liberdade de imprensa e expressão no país. O texto em seguida vai mais longe e tenta colar em Dilma a imagem de delatora.

É como se um jornal alemão publicasse, na primeira página, acusações contra um herói nacional da resistência ao nazismo, feitas por um tribunal nazista!

Que os depoimentos dos presos políticos da ditadura não tem valor legal, já sabemos, por causa do uso sistemático de tortura e por serem realizados por um regime que violou a nossa democracia. O mais importante, porém, seria informar aos cidadãos brasileiros que não tiveram a oportunidade (como eu tive), de ler livros de história e filosofia de história, de assistir filmes sobre o tema, de papear com pessoas cultas ou que viveram de perto os anos de chumbo, o mais importante seria informar essas pessoas que os depoimentos não tinham valor MORAL!

Francamente, eu chorei lendo essa matéria. Não de ódio à perfidez do Globo ou coisa parecida. Chorei ao imaginar uma jovem culta, sensível e inteligente de vinte anos de idade sendo seviciada barbaramente por homens truculentos e impiedosos. Flaubert já falava que para se entender a história é preciso ter imaginação: porque só assim se poderia conceber, segundo ele, a dimensão de uma tragédia histórica como a destruição de Cartago. Então eu penso: e as tragédias humanas? Há coisas tão terríveis que talvez seja melhor nem imaginarmos. Todos queremos esquecer. Nosso próprio cérebro oculta de nós mesmos, escondendo em desvãos quase inacessíveis da memória, as nossas lembranças mais terríveis, mais humilhantes. Dilma sempre manteve um silêncio digno, mas também machucado, em relação ao que viveu durante a ditadura. Se ela tivesse se tornado uma pessoa rancorosa, ninguém poderia culpá-la. Pô, eu nunca fui torturado pela ditadura e odeio essa mídia golpista de um jeito que nem consigo explicar direito. Imagina se eu tivesse sido torturado? Acho que me tornaria uma pessoa tão rancorosa que fundaria uma seita apocalíptica cujo objetivo principal seria a destruição, física e espiritual, de todos os jornais e empresas que apoiaram o golpe.

Deixe-me explicar direito. Eu sou cristão. Ateu (momentaneamente ao menos), mas cristão, se é que isso faz algum sentido. Ou seja, acho que todo mundo tem direito de errar e tem a obrigação de perdoar os outros. Mas o Globo não só "apoiou" o golpe de 64. É isso que estou tentando dizer há anos por aqui. Eu estudei as edições do Globo de janeiro a abril de 1964. Os microfilmes estão todos na Biblioteca Nacional, na Cinelândia, Rio de Janeiro. Alguém deveria urgentemente digitalizar tudo e publicar na internet. Vocês não imaginam o que o Globo (e a Folha e o Estadão, a trinca maldita) publicava naquele tempo. O governador Carlos Lacerda disparava as calúnias mais grotescas, como dizer que Jango iria implantar, em questão de dias!, uma república soviética no Brasil. E o Globo repercutia descaradamente.

Lacerda era completamente louco, mas com método! Criou-se uma atmosfera de histeria de tal monta que as pessoas sentiam-se sufocadas. A tortura, portanto, não foi implantada pela ditadura, e sim pela mídia, que deflagrou um processo de tortura psicológica violentíssimo nas semanas de antecederam ao golpe.

De vez em quando alguém tenta minimizar o papel da mídia, dizendo algo como: "meu pai me falava que o Globo não era tão importante assim..." Mentira. Os editoriais do Globo, assim como hoje, eram lidos em voz alta no plenário da Câmara dos Deputados! Jânio Quadros, assim que foi escolhido como candidato da UDN, correu para as páginas do Globo para dar entrevista.

Esses jornalões não "apoiaram" o golpe. Eles articularam o golpe. Três forças políticas derrubaram Jango: os governadores de Minas, São Paulo e Rio; os generais; e a mídia. Sem a mídia, não haveria golpe, ou seria muito mais difícil que ele ocorresse.

A gente tem que pensar com um mínimo de grandeza. Tem que ver as coisas sob uma perspectiva histórica. Quais foram as consequências da ditadura? Que forças emergiram ali? A partir dos anos 80, a América Latina começa a despertar do pesadelo totalitário, e o que vimos? Um continente arrasado social, politica, cultura e moralmente. Enquanto EUA e Europa viveram intensamente os anos 60 e 70, um período emocionante, pleno, de crescimento econômico e densidade cultural, a nossa juventude morria de fome, de tristeza, de tortura... Eu não me conformo com esses números frios que mencionam apenas algumas centenas de jovens mortos durante o regime militar. E os milhões de brasileiros que morreram de fome, sede, doenças e desastres naturais, sem que sequer uma notinha fosse publicada nos jornais? Em regimes democráticos, essas mesmas pessoas talvez também tivessem morrido, mas aí a culpa seria de toda a sociedade, e não do governo, porque este seria um representante do poder que, na realidade, emana da população. No caso de um regime totalitário, ilegítimo, que usurpou a soberania sagrada do povo, a culpa de todos os males nacionais passa a ser exclusivamente sua.

Então, como eu dizia, eu sou cristão e estou disposto a perdoar quem apoiou a ditadura, desde que esta empresa peça desculpas! Pô, até a Igreja Católica pediu perdão pela inquisição, porque nossa mídia não pode pedir desculpas pelo que fez durante a ditadura? Mas não. Não pede desculpas e agora publica documentos da ditadura que difamam uma de nossas maiores heroínas, a nossa presidente recém-eleita Dilma Rousseff, sem o mínimo cuidado de contextualizá-los perante seus leitores. Sem alertá-los sobre os vícios do processo. Estampando títulos capciosos.

Aí não tem cristão que dê jeito! Não posso perdoar quem não pede perdão e continua cometendo o mesmo erro que antes. É muita petulância!

Perguntamo-nos: o que fazer? As pessoas congestionam a blogosfera com milhares de comentários indignados, alguém idealiza manifestações, a sociedade propõe regulamentar a mídia, eu escrevo longos textos políticos para meu blog, mas sempre fica aquela sensação de impotência, de que é preciso fazer mais. É bonito isso por outro lado, porque essa sensação é o próprio espírito da justiça agitando-se dentro da gente. O espírito da justiça e o espírito da história, por mais poderosos, belos e infinitos que sejam, apenas podem se realizar através do indivíduo. E vale a recíproca: por mais que seja este poço de vaidade, ambição, vício, medo e fragilidade, o homem carrega em si o espírito do mundo, um código genético aperfeiçoado ao longo de milhões de anos que nos dotou de uma inteligência e uma intuição que nem sabemos usar direito. E a culpa nem é nossa. Simplesmente não dá tempo! Mal a gente começa a aprender umas coisas e já está na hora de ir embora. A gente acorda, toma um café da manhã, lê os jornais, trabalha e já está na hora de dormir de novo. Eu fico pensando sempre: quando teremos tempo, meu Deus! Minhas estantes estão repletas de livros que eu amo mas que exigiriam mais duas ou três vidas para ler e reler.

Enfim, a luta é árdua e a cerveja (ou o dinheiro) sempre acaba um pouco antes da hora. Hegel ensina que temos que perseguir nossas próprias paixões, desde que devidamente filtradas pelos neurônios remanescentes, pois nada de valor no mundo jamais foi ou será feito sem paixão. Então, como diria o impagável Jânio, fá-lo-emos!

Comente!