22 de novembro de 2010

O almofadinha que odeia Papai Noel



Pondé escreve na Folha como se o fizesse para um jornalzinho de primeiro período da Mackenzie. Ler sua coluna corresponde a uma experiência antropológica, algo assim como ir morar um tempo no Complexo do Alemão ou pegar um trem na Central. Semana passada ele declarou que não gostava mais dos aeroportos brasileiros porque haviam sido invadidos por emergentes e semelhavam, segundo ele, a um churrasco na laje. Muito melhor um aeroporto norte-americano, né, onde policiais nos fazem massagem grátis nas bolas... Desculpem o termo chulo, mas é que nunca entendi bem porque esses xaropinhos odeiam tanto o "politicamente correto" sendo eles mesmos as figuras mais terrivelmente convencionais, caretas e "corretas" do universo... Tentando mostrar que são contra o "politicamente correto", dizem coisas malvadinhas como "gosto de matar passarinhos", frase que (juro) era o mote principal de uma coluna no Globo assinada por um deles.

Em sua coluna de hoje, Pondé tenta nos provar que era uma inteligência tão precoce que nunca se deixou levar por essa história de Papai Noel. Até hoje, pelo jeito, ele briga contra o pançudo:
Depois de tantos anos, ainda me irrito com quem acredita em "Papai Noel" ou com quem tenta fazer os outros aceitarem suas crenças infantis.

Agora, olhem que pérola:
Acabei vindo para São Paulo. Nunca senti preconceito (começo a detestar essa palavra, porque hoje ela é usada normalmente para calar a boca de quem diz o que não é politicamente correto, essa praga contemporânea).

Meditem um pouco sobre a afirmação: "Nunca senti preconceito". Por que será, hein? Talvez por ser branco e rico, apesar de nordestino?

Saboreiem a maturidade da observação feita entre parênteses. Ela deve ter sido lida em voz alta, entre aplausos, em certas rodinhas da PUC-SP, da Mackenzie e do Shopping Paulista...

A melhor parte, no entanto, vem em seguida.
Em apenas dois episódios, que me lembre, ouvi comentários que claramente faziam referência à minha "nordestinidade" como traço de ignorância. E as duas pessoas, pasme você, leitor, eram pessoas "de esquerda" e "inteligentes".

O que dizer sobre isso? Ele tá querendo provar o quê? Que pessoas "de esquerda" e "inteligentes" acham nordestinos ignorantes?

Eu acho incrível o poder desses intelectuais midiáticos de falar besteira. Sabe o que é engraçado? Provavelmente um coleguinha de faculdade, quinze anos atrás, fez uma brincadeira "politicamente incorreta", e hoje ele foi às forras. Ué, não havia dito que "nunca sofreu preconceito"? Na ânsia de associar, esquizofrenicamente, esquerda e preconceito, o cara nem se preocupa em ser coerente. Ele não está fazendo justamente aquilo que ele acusou no parágrafo anterior? Não estaria usando o pretexto do preconceito apenas para atacar alguma frase "politicamente incorreta" e vingar-se de uma derrota em discussão política? O indício de que foi isso mesmo é que, ao afirmar que as tais pessoas eram "de esquerda", diz que eram também "inteligentes", revelando o complexo de inferioridade que, desde aquela época, lhe rói as entranhas.

Mais indícios desse complexo (além do texto sofrivelmente escrito) vêm logo em seguida. Como se continuasse uma discussãozinha qualquer que teve na Mackenzie (ou USP), ele vomita:
Nada de novo. As pessoas "de esquerda" foram responsáveis pela maior parte da chacina política no século 20. As patologias do pensamento hegeliano-marxista e sua vocação para o "Estado total" mataram mais gente do que o nazismo.

Ã? Fazendo uma manobra radicalíssima com seu velocípede mental, ele associa sabe-se lá o que seu coleguinha "de esquerda" e "inteligente" lhe disse no recreio a um clichê maluco da direita indigente que venera o psicopata e dublê de filósofo Olavo de Carvalho. O comunismo matou, sim, muita gente, mas em virtude das vicissitudes históricas de cada momento, sobretudo causadas por guerras civis e dificuldades econômicas. Não foi por nenhuma malignidade intrínseca das pessoas "de esquerda". E se fôssemos enveredar por essa seara, a direita mata até hoje milhões por ano, com seu egoísmo alucinado e a concentração de renda obscena que persiste no mundo.

E aí ele começa a se empolgar, e decide mostrar toda a sua exuberância livresca:
E ainda querem me convencer de que posso confiar nas suas boas intenções? Contra os delírios de Hegel, leia Isaiah Berlin e seu brilhante "Limites da Utopia" (Companhia das Letras; R$ 48, 224 págs.). O Inferno está cheio de reformadores políticos. O Estado deve ser ocupado por pessoas que não querem reformar o mundo. Fora, Papai Noel!

Nas boas intenções de quem? Do seu coleguinha "de esquerda" e "inteligente" que talvez lhe tenha roubado a namorada? Aí ele fala em "delírios de Hegel" como se referisse a um revolucionário de Sierra Maestra, e não um dos maiores filósofos da modernidade, respeitado profundamente tanto por conservadores empedernidos quanto por comunistas radicais. Claro, agora entende-se porque Pondé sentiu-se humilhado por seu coleguinha "inteligente" e "de esquerda" da faculdade: é que ele (o coleguinha) era leitor de Hegel enquanto Pondé se restringia a ler os autores meiaboca que o titio Olavo indica em seu site... Ao encerrar o parágrafo com um "Fora Papai Noel!", ele me intrigou: por que será que este sujeito odeia tanto o velhinho, símbolo apenas de coisas boas: generosidade, bondade, carinho? Seria porque ele é uma pessoa mesquinha, ruim, egoísta?

Seu entusiasmo cresce e ele resolve se aprofundar em questões ideológicas:
Pessoas que se dizem defensoras de "uma sociedade melhor" ou da "liberdade igual para todos" são autoritárias e são as que primeiro aderem à violência contra a liberdade de fato e contra aqueles que pensam diferente delas.

Será que ele ainda tá pensando no rapaz "de esquerda" e "inteligente" da faculdade? Ou será apenas que ele se confundiu e botou crack em vez de fumo em seu cachimbo? Sei que vocês devem estar pensando: Miguel, porque você perde tempo com tolices assim? Respondo: é porque isso realmente me preocupa. O cara tem uma coluna na Ilustrada, o caderno de cultura do principal jornal do país. Eu tenho sorte de ter lido alguns livros e participar da vida brilhante da blogosfera. Mas e os jovens que ainda estão se formando? É para isso que o governo de São Paulo mandou assinar a Folha para todas as escolas públicas do estado?

Então eu tento descer ao nível de Pondé. Vou fingir que entendo o que ele disse. O problema de seus chavões é que ele, além de se referir a uma esquerda autoritária há muito superada historicamente, além de omitir que, em nosso Brasil, ou seja, em nossa realidade, o autoritarismo real, que matou gente que pensava diferente, provinha da direita, e não da esquerda, ele provoca uma grande confusão no leitor desatento, visto que, obviamente, ele visa associar a esquerda brasileira atual, democrática e pacífica, com os desatinos de Stálin no início do século passado! Ora, se fôssemos por aí, valeria associar a direita brasileira de hoje - e ele, Pondé, é um direitista assumido - às loucuras de Hitler!

O que ele diz em seguida é simplesmente inacreditável:
Quer uma dica? Quem usar muito expressões como "repúdio", "isso é desprezível", "interesse coletivo" "estou indignado", "preconceito", não merece confiança.

Ou seja, ao mesmo tempo em que defende (mentirosamente) a liberdade, ele prega a censura moral, que é pior em certo sentido do que qualquer censura governamental, a quem usa determinadas expressões! Cadê a liberdade! Quer dizer que eu não posso sequer usar o termo "preconceito" sob o risco de ser tratado como alguém que "não merece confiaça" por um colunista que escreve para o maior jornal do Brasil? Não espanta que São Paulo tenha se tornado um berço de Mayaras Petrusos e que nas faculdades e colégios a tortura de colegas tenha se tornado banal. Pondé não tem a mínima noção do que escreve, para quem escreve e dos públicos imensos que seu jornal atinge.

Eu acho interessante estudar textos de figuras como Pondé porque eles me dão a idéia de como era a vida intelectual do Brasil escravocrata, e como as inteligências mais grotescas, monstruosas, doentias, surgem em indivíduos supostamente cultos.

Vamos lá, força. Está quase acabando. Vamos dissecar essa cobrinha metida a venenosa até o final.
São Paulo é maravilhosa porque acolhe quem trabalha sem por a culpa nos outros. Liberdade não é sinônimo de felicidade, liberdade é conflito, agonia, solidão.

Se Pondé tivesse lido Hegel ou tivesse um pingo de poesia em seu espírito, teria vergonha em dar uma definição tão pobre para a liberdade, seguramente o conceito mais bonito, poderoso, universal, jamais concebido pela inteligência humana. Imagine um negro que, após fugir de uma fazenda onde era brutalizado diariamente, houvesse alcançado um quilombo dos bons, e após banhar-se e comer, contemplasse a paisagem do alto de uma montanha. Imagine um povo, moderno ou da Antiguidade, que após décadas de opressão, consegue conquistar a sua independência. Imagine um trabalhador que, depois de anos passando terríveis dificuldades financeiras, consegue um ótimo emprego. Imagine um preso político, como a nossa presidente que, depois de ser torturada e presa por dois anos, livra-se das garras dos brutamontes que tinham sua vida em suas mãos, e sai da cadeia. Aí sim, terá uma bela e autêntica intuição do que é a liberdade. Falar que liberdade é agonia e solidão, é apenas assinar um atestado de mediocridade e pequenez espiritual. É coisa de quem nunca viveu, nunca sonhou, nunca amou, nunca teve imaginação.

Pondé tampa o latão de lixo:
Até onde conhecemos a história, só há liberdade onde há capitalismo, mesmo com suas miseráveis contradições. Todo mundo que quis "inventar outra liberdade" queria mesmo era meter a mão no patrimônio alheio e matar o dono.

A liberdade é um conceito que vai muito além do capitalismo. É um conceito espiritual. Pode-se viver num país comunista e se sentir livre, pode-se viver num país capitalista e não ser livre. O que Pondé tenta é justificar a miséria, a opressão econômica e a injustiça social. O homem apenas conseguiu a proeza de chegar até aqui através de sucessivas lutas em prol da liberdade. Não é a liberdade que é agonia, conflito, solidão. Isso é a vida. Lave a boca antes de falar em liberdade. Este é um conceito belo demais para ser compreendido por um colunista engaiolado numa ideologia tão mediocremente reacionária. Como dizia Goethe, "ninguém é mais escravo do que aquele que se julga livre sem o ser".

Para quem se interessar, a íntegra da coluna de Pondé pode ser lida aqui.

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