![](http://www.cinema.com.br/gramado2006/img/curta35_beijo_sal.jpg)
Não existe pureza no homem. Deus foi apenas cínico ao trancafiar Adão e Eva no Jardim do Éden e proibir o acesso à árvore do conhecimento. Ironia suprema da religião judaico-cristã, associar o conhecimento ao pecado original... Os dois deveriam continuar felizes como duas bestas? Tenho pra mim, todavia, que a mulher provaria o fruto proibido com a mesma desenvoltura se árvore em questão fosse relacionada a um tema menos nobre, se fosse a árvore do medo, por exemplo, ou da crise da meia-idade.
Deus usou o casal primevo como cobaias do primeiro experimento moral de que se tem notícia, e o resultado, creio eu, não chegou a constituir uma surpresa. O homem não é puro, ó. A mulher é a culpada, hul!
Assim arrastamos nossa carcaça culpada, pecadora, amaldiçoada, por este vale de lágrimas, onde pessoas são queimadas vivas em ônibus, morrem em desmoronamentos de obras mal fiscalizadas e votam em candidatos condenados pela Justiça.
Mas veja! Há uma luz! Não no céu, onde mora o Deus que nos sacanea desde a origem do mundo. A luz está nos olhos de quem ama o próximo. Não o amor abstrato e frio pela humanidade. Não o amor débil, piegas, condescendente, pelos fracos, pelos pobres, ou por quem sentimos pena.
A luz repousa, tranquila, sobretudo neste amor viril, franco, estável a que denominamos amizade. Sim, porque o amor romântico vem carregado de tanta angústia, ciúmes, medos, cobranças, que projeta mais sombras que luz em nosso destino. A amizade é o único verdadeiro elo que nos une a nossos semelhantes. O único e o último.
E, no entanto, o que acontece quando a própria amizade apresenta erupções suspeitas em sua superficie que críamos limpa, saudável?
O que acontece quando a amizade se revela nossa derradeira falsa ilusão?
Acontece, então, que ficamos sozinhos. Como um homem mijando sozinho numa praia deserta. Como Rogério, na cena final do curta-metragem de Fellipe Barbosa, Beijo de Sal.
O filme de 18 minutos, exibido no Festival Internacional de Curta-Metragens de Clermond-Ferrand, versa sobre a amizade e, principalmente, sobre a corrosão e o fim da amizade.
Rogério é um bom vivant mineiro que vive numa bela chácara em Itacuruçá, Angra dos Reis, em companhia de amigos despreocupados e festivos. O filme inicia com Rogério e os amigos na piscina, fumando um baseado e rindo. O eixo dominante da cena, como aliás de toda película (35 mm), é a expressão algo sarcástica, de fauno entediado, de Rogério.
Chega Paulo, antigo membro do grupo, em companhia de uma nova namorada, para passar o Ano-Novo. O estranhamento do casal com o clima meio hippie da casa é imediato, e constituirá, a partir daí, o conflito central da narrativa. Um conflito construído com muita sensibilidade pelo diretor. A movimentação de câmera é clássica, mas original, e a trilha sonora de Mônica Besser encaixa-se bem no delicado jogo de agressões sorridentes que marca a relação entre Rogério e o amigo, um jogo que sugere, sem revelar, um histórico de duelos entre egos fortes e competitivos. Uma certa rigidez e seriedade de Paulo constrata com a intimidade forçada de Rogério.
A tensão entre Paulo e Rogério vai sendo costurada ao longo da narrativa, atingindo, perto do final, um clímax de violência. O filme termina, conforme dito, com Rogério fazendo xixi no mar, expressão desafiadora, diabólica.
Eis que a solidão arrasadora, cruel, de Rogério, encerra o filme. Não há tristeza. Um cinismo amargo, talvez. E a sensação de que, se foi para termos o cinema - e o poder de fantasia e liberdade que ele nos possibilita - bem que valeu termos mordidos aquela maldita maçã.