28 de janeiro de 2007

Pedantismo em preto e branco

O fato do Brasil não ter, ainda, um mercado de cinema significativo e depender exclusivamente de patrocínio estatal estaria estimulando, por parte dos produtores , uma tendência elitista? Quando falo em elite, dispo-me de qualquer utopia e procuro admitir, de forma até um pouco cínica, que a plena fruição de um bom filme, especialmente de um curta-metragem de um diretor contemporâneo, constitui um prazer para poucos, ou seja, para quem teve condições, ou o dom, de desenvolver sua sensibilidade e conhece o básico da cinematografia mundial. Quando me refiro, pejorativamente, a esta tendência elitista, portanto, não é por defender uma pasteurização populista do cinema de vanguarda: é antes uma advertência para o perigo do cinema brasileiro tender para uma introversão um tanto pedante que afetaria a própria qualidade das obras. Uma pedância que envenenaria o próprio futuro do cinema brasileiro contemporâneo, criando barreiras, em vez de rompê-las.

Afinal, é preciso dizer que o público de cinema especializado, dentre os quais os críticos constituem a camada "superior", é também um tanto viciado, um tanto isolado do público "normal". Acontece o mesmo com a literatura. Longe de mim, todavia, pretender que o público especializado - e mais ainda o crítico - submeta-se ao gosto do grande público. Pelo contrário, irritam-me, sobremaneira, os intelectuais pró-massa que proliferaram como praga na onda pseudo-pró-capitalista que varreu as universidades na década de 90. Acredito no público especializado. Acredito no crítico. Mas é preciso advertir para o perigo do crítico empedernir sua intuição - desvalorizando o que possui de mais valioso, ou seja, o próprio "gosto", atravessando a linha, às vezes tênue, mas uma linha crucial, que separa o conhecedor do pedante.

Essa introdução era importante para que eu pudesse inicar a crítica de "Uma vida e Outra", de Daniel Aragão, curta-metragem de 17 minutos, selecionado para o Festival Internacional de Curta-Metragens de Clermond-Ferrand. O filme surfa na onda do prestígio do cinema contemporâneo brasileiro, particularmente dos trabalhos de Marcelo Gomes (Cinema, Aspirinas e Urubus) e Karim (Céu de Suely), mas é um trabalho um tanto pedante. Não digo que é hermético, porque em verdade é um filme fácil de assimilar. O experimentalismo e os recursos, tanto técnicos quanto narrativos, são excessivamente tímidos, de maneira que a opção pelo preto-branco me pareceu apenas pretensiosa. Ao mesmo tempo, e ironicamente, também se revela um tanto quanto esperta , no sentido de criar uma atmosfera de filme cult, de filme para "entendidos", seduzindo o ego de certos críticos que, inconscientemente (diria freudianamente), se rejubilam em descobrir beleza em detalhes imperceptíveis ao olho comum.

E assim um filme como o de Daniel Aragão que, em circunstâncias mais saudáveis, seria considerado como solenemente chato, vira um filme cult admirado pelos prolixos críticos profissionais.

A sinopse do filme é a seguinte: garota de 18 anos, vendedora de loja, integrante de respeitável classe média de grande cidade nordestina, fica grávida de um jovem executivo que, logo na primeira cena, a esculhamba magnificamente, dizendo que assumirá a paternidade mas que evitará o máximo o convívio com ela. A cena é bastante inverossímil, o personagem do jovem é pintado de uma forma grosseiramente maniqueísta, um vilãozinho um tanto ridículo.

O resto do filme é o breve conflito interior da jovem, indecisa se faz o aborto ou não, até que, enfim, decide fazê-lo. Aí entra a parte francamente reacionária do filme, que assume um discurso anti-aborto, ao mostrar crianças brincando no caminho da personagem até a clínica e, principalmente, na descrição caricatural do aborto em si, o médico usando tesourão, faca, e jogando o "feto" numa latinha de lixo.

Ela leva a lata, com o feto dentro, e a entrega ao ex-namorado - esta é a grande vingança que coroa a história. Junto com os letreiros finais, vemos uma sequência de rostinhos de bebês e crianças.

Num país com os graves problemas de gravidez precoce, e onde o aborto é proibido, não entendo onde o diretor quer chegar. Se fosse um filme francês, onde o aborto é permitido, até entenderia, como uma manifestação de um jovem conservador defendendo o direito à vida do feto. Mas no Brasil?

Enfim, acho que este tema é sensível demais para ser abordado da maneira leviana como feito por Aragão. Pessoalmente, sou a favor do aborto; mas me considero bastante democrático para escutar, e respeitar, idéias contrárias; e estou aberto a mudar de opinião no caso de ser apresentado a argumentos suficientemente sólidos. Entretanto, esse filme, débil esteticamente e reacionário politicamente, não me convenceu.

3 comentarios

O Anão Corcunda disse...

Eu tô assustado com a tua descrição. O cinema brasileiro produz muita barbaridade "long play", mas eu imaginava que nos "compactos" a coisa fosse um pouquinho melhor - menos sujeição ao domínio financeiro. Talvez seja ilusão minha. Se bem que esse negócio de festival internacional de cinema, muitas vezes, só leva o joio. Se bem.

Mas custa acreditar que já temos uma corrente Opus Dei no curta-metragem brasileiro. Lamentável.

Um abraço e valeu pela informação.

Anônimo disse...

o filme è sobre escolha e nao sobre aborto.

Anônimo disse...

o direito à vida ( a meu ver o mais importante direito do ser humano), nao é argumento "sufucientemente solido" para que tu mudes de opinião com relacao ao aborto??????????????Arrisco a dizer, que provavelmente nao tens filhos. Ja fui a favor do aborto, e hoje sou terminantemente contra. Passamos muito tempo tratando aborto como caso de policia.Os argumentos "suficientemente solidos" que me fizeram mudar de opiniao, têm hoje, 27, 26, 24 e 18 anos respectivamente. Somos fruto de nossas escolhas! A vida e uma questao de escolha. Mas a nossa vida, nao a vida de nossos filhos .Nao sei qual o objetivo de nossa existencia...mas decidir quem vive e quem morre por nossas maos, certamente nao é. Seria um objetivo por demais pequeno, para um complexo universo.

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