6 de maio de 2009

Kane revisitado

(Orson Welles era tão fera que casou com Rita Hayworth)


Uma frase tem ecoado insistentemente na minha cachola. É de um comentarista do blog do Nassif, num dos inúmeros posts desse jornalista sobre manipulação midiática. Nassif descontruía, em linguagem didática, tão simples que até uma criança poderia entender, uma armadilha lógica, ou pseudo-lógica, presente numa matéria de jornal. A frase do comentarista era a seguinte: "eles pensam que a gente não tem cérebro!!!!"

A quantidade de exclamações e a concisão do comentário sugeriam um leitor indignado, ou antes: sugeriam uma indignação em estado puro, simultaneamente ingênua, poderosa e definitiva. Agora toda a vez que leio as matérias do Nassif, do Idelber, do Eduardo Guimarães, ou quando penso e analiso uma notícia por conta própria, a frase volta a soar-me nos tímpanos. As recentes trapalhadas da Folha, por exemplo. Onde eles querem chegar com esse desprezo pela inteligência dos leitores? Até quando pensarão que nós não temos cérebro? Quantas eleições serão necessárias? Estarão eles decididos a conduzir as principais empresas jornalísticas do país à falência e ao descrédito? E o pior, estarão dispostos a levar o país junto também?

Então lembrei do Cidadão Kane, o primoroso filme de Orson Welles. A história, vocês sabem, é de um rapaz que herda uma imensa fortuna, aí incluídas dezenas de empresas espalhadas por todos os estados norte-americanos. Charles Foster Kane, com vinte e poucos anos, aconselhado pelo gerente de suas contas bancárias, decide vender a maioria. Mas muda de idéia em relação a um pequeno jornal deficitário de Nova York. Uma fantasia luminosa atravessa-lhe o espírito e ele resolve assumir esta firma com as próprias mãos.

Um belo dia, este jornal recebe a visita ilustre de seu novo proprietário. A publicação sobrevivia, há décadas, rolando modestas dívidas e publicando matérias modorrentas e previsíveis. Pode-se dizer que era um jornal com tiragem razoável, ocupando quarto ou quinto lugar no ranking de NY. O conteúdo talvez não fosse tão ruim; mas certamente não provocava escândalos como veio a fazer quando passa às mãos de Kane.

O jovem Kane chega para mudar tudo. Dono de uma fortuna colossal, ele conclui que, se quisesse, poderia bancar, sem falir, um jornal deficitário por mais de sessenta anos. A cena em que discute isso com o gerente de suas contas pessoais é antológica. Demite o timorato editor e assume, ele mesmo, a responsabilidade. Convida um escritor esquerdista e irreverente para ser o seu editor de cultura e escreve, de seu próprio punho, um editorial que iria marcar história (isso na ficção) do jornalismo americano: um libelo violento, entusiasmado, corajoso e altivo à liberdade de imprensa.

A ironia sutil que perpassa a narrativa, desde seus primórdios, é que Kane nunca levou nada muito à sério. Quer dizer, o seu editorial em prol da liberdade de imprensa é comovente, e as intenções podem ser verdadeiras; mas também mostra aquela ingenuidade cruel e leviana de uma criança a quem entregaram um poder excessivo. A partir desse momento, o jornal de Kane irá perseguir implacavelmente qualquer político, empresa ou cidadão que não for do agrado do senhor Kane. O jornal faz um enorme sucesso, ainda mais porque Kane irá começar suas perseguições pelas figuras e empresas mais impopulares. Persegue inclusive empresas das quais é sócio, para desespero do gerente-geral de suas propriedades.

Em pouco tempo, todavia, a "independência" de Kane começa a revelar sua verdadeira face: um arrogante e inexorável voluntarismo. Por ocasião da independência de Cuba, que o jornalista havia apoiado euforicamente, Kane embarca em sua primeira campanha política mais ousada: defende que o governo americano declare guerra à Espanha. A iniciativa contou com milhões de seguidores nos EUA, incluindo parlamentares, além, naturalmente, da indústria bélica. Felizmente, a campanha não triunfa, e a humanidade irá contabilizar menos uma mortandade inútil.

Kane começa a se intrometer em todas as áreas editoriais, atacando seus desafetos com virulência cada vez maior. Critica presidentes da república, senadores, grandes empresários, e vende cada vez mais jornais. Nesta época, Kane já havia adquirido centenas de jornais em todos os estados, dominando uma rede gigantesca de rádios, periódicos e revistas nos Estados Unidos. Nunca a América conhecera um poder de comunicação tão descomunal. Ciente de seu poderio, ele lança sua candidatura a governador, aposta milhões de dólares em sua campanha, mobiliza todo o seu aparato jornalístico global. Mas sofre uma derrota fragorosa. É o primeiro grande tombo de Kane, num sentido mais pessoal. Ele sofrera outras derrotas, como sua campanha pela entrada dos EUA numa guerra contra a Espanha, e uma outra, ainda mais importante, que eu havia esquecido de citar, contra a entrada dos EUA na Primeira Guerra Mundial; não eram, porém, derrotas pessoais. O segundo tombo doloroso de Kane, mais propriamente ligado à sua decadência espiritual, virá logo a seguir. Será mais singelo, mas com um significado mais profundo para nosso personagem. Ainda durante sua campanha, ele caminhava pela rua, desolado e meio perdido, num dia de muito frio e neve, e esbarra numa mocinha. Não lembro bem o que acontece, acho que ele empresta um guarda-chuva ou coisa parecida, e a mocinha, num gesto atrevido, convida-o para tomar café em sua casa. Ela não sabe quem ele é, e ele se encanta com a beleza, juventude e graça da moçoila, e eles iniciam um relacionamento. O adversário fica sabendo deste caso extra-conjugal, e tenta forçar Kane a abandonar o certame, chantageando-o com a publicação de fotos íntimas. Ele se recusa, o escândalo vem à tôna e ele perde as eleições.

Ele se divorcia da esposa aristocrata e se casa com esta moça, jovem e bela plebéia novaiorquina, e, sabendo-a cantora, decide transformá-la numa diva nacional. Obriga seus jornais a publicarem artigos laudatórios sobre seus shows. Torna-se seu empresário, investindo dinheiro e prestígio para alugar disputadas casas de show e angariar boas críticas para sua mulher. Mas ela é uma cantora medíocre. Por fim, o seu amigo de faculdade, que lhe ajudara em seus primeiros anos de jornalismo, e a quem ele entregara uma coluna de cultura em seu jornal mais importante, sob a promessa de absoluta independência, é atingido pelo voluntarismo totalitário de Kane, que o demite depois que ele escreve uma resenha sincera e brutal sobre a cantora.

(Há um ponto dramático na cena da demissão, depois eu conto.)

Esta é a segunda grande derrota, porque não apenas fracassa em emplacar a sua esposa como cantora de sucesso, como afasta-se definitivamente de seu único amigo, além de converter sua esposa numa mulher desequilibrada, alcóolatra e infeliz - pois ela também percebia que ele forçava a barra para torná-la uma coisa para a qual não estava preparada.

É fim de Kane. Ele permanecerá um homem muito rico, morando em Xanadu, um lugar paradisíaco, com zoológico particular, piscinas, praias, parques de diversão, mas vivendo numa solidão aterradora.

O lançamento deste filme custou muito a Orson Welles. Foi perseguido pela CIA; por senadores de direita, que o acusavam de ser comunista; e pelo homem mais poderoso dos EUA, William Randolph Hearst, dono de jornais e rádios por todo os EUA, um personagem que podia ser facilmente identificável a Kane.

Sobre a similitude entre Hearst e Kane, os especialistas em Welles afirmam que, apesar de notável, é totalmente casual. Quer dizer, Kane pode até ter se inspirado em Hearst, assim como também usou elementos de Jules Brulatour, co-fundador da Universal Pictures, mas o seu personagem e sua história são, essencialmente, fruto da imaginação genial e delirante de Orson Welles. É ficção pura.

O personagem Kane tem hoje (06/05/2009) 1,98 milhão de entradas no Google, contra 1,28 milhão de William Randolph Hearst, e desconfio que essa diferença deverá crescer ao longo do tempo, até ninguém mais, à exceção de algum estudioso dos primórdios do jornalismo big-mass americano, se lembrar de Hearst, enquanto Kane está imortalizado como protagonista de um dos filmes mais criativos de todos os tempos.

Mas não sejamos injustos com Hearst. Ele é o personagem real, muito mais cruel e cínico e autêntico, que qualquer ficção, mesmo que venha do gênio de Welles. E de qualquer forma sua fama agora caminha nas sombras de Welles, o que lembra um verso de Dante Alighieri...

Welles venceu todos. O filme, que além da narrativa original, traz inúmeras inovações formais (na luz, nos planos, no ritmo, etc), está consolidado na história da cultura como um desses clássicos que até hoje influenciam nossa maneira de pensar o mundo. Por que, afinal, o filme despertou tamanho ódio em Hearst, que chegou a ordenar a publicação de um texto editorial, em todos os seus jornais, acusando Welles de ser alguém com inclinações esquerdistas e, portanto, sem grande apreço pelo fabuloso American Way of Life? Por que Welles passou a ser investigado pela CIA? Por que as comissões parlamentares que investigavam a infiltração comunista nos EUA convocaram-no a prestar esclarecimentos sobre suas idéias políticas?

O gênio de Welles captou as acusações que seu filme iria sofrer já naquela época, e seu personagem, o voluntarista, o milionário Charles Forste Kane seria acusado de ser um comunista pelo funcionário do banco que cuidou do rapaz por longos anos, e de fascista reacionário por um político, em discurso para uma multidão que protestava na porta de seu jornal.

Não, Welles não era comunista, nem fascista. Ele é o que diz Charles Foster Kane, em discurso no rádio, com voz embargada, entregue à total ingenuidade e loucura do patriotismo. Welles é um cérebro brilhante, um artista que amava a democracia e os Estados Unidos, e percebeu o quanto a mídia havia se tornado poderosa e como esse poder, desregulamentado, livre das amarras que restringem e humanizam outros poderes politicos, podia se tornar monstruosamente arbitrário, destruindo pessoas, empresas, e inclusive o próprio dono deste poder.

Assim eu vejo os Frias, os Mesquitas, os Marinhos: como Kanes decadentes, isolados em seus castelos paradisíacos, cada vez mais enlouquecidos pelo enorme poder que herdaram. Semelham-se àquela geração de césares mimados e neuróticos que sucedeu Augusto: Tibério, Nero, Calígula; que tanto mal fizeram ao império romano, e tantas desgraças trouxeram à civilização ocidental.

Definitivamente, a mídia se tornou uma instituição poderosa demais para não ser regulamentada com os mesmos rigores éticos e republicanos exigidos de outras instituições, como o Legislativo, o Judiciário e o Executivo. A república precisa incorporar o quarto poder. Não se trata de destruir a mídia privada. Ao contrário, estou convencido de que uma regulamentação mais severa iria salvá-la da derrocada financeira, moral e politica, que é para onde ela parece seguir cada vez mais rapidamente. O fato da mídia receber, por obrigação constitucional, grandes somas de verba pública, só reforça esta minha convicção. Sugiro algumas coisas que poderiam ser regulamentadas:

1) Editoriais tinham que ser assinados, para que a sociedade possa identificar sempre o autor específico daquelas idéias e poder respondê-las democraticamente.

2) Matérias de saúde e educação deveriam passar por um conselho de especialistas idôneos com certificação legal e comprovada nesses assuntos. Não se pode mais brincar com saúde pública. Uma matéria errada no Globo não apenas pode causar a morte de milhões de brasileiros, mas pode, como vemos agora, gerar pânico em todo o planeta. É preciso muita responsabilidade e isso só é possível com a força da lei.

3) Colunistas políticos independentes deveriam ter proteção empregatícia. Isso tinha que ser uma conquista do sindicato. O jornalista tem que se rebelar contra a escravidão ideológica da qual é vítima. Isso terá que acontecer um dia. Esse tipo de coisa violenta terrivelmente a liberdade de expressão, que é fundamental para gerar qualidade, responsabilidade e criatividade. O editor tem que dar o voto de confiança ao jornalista, e este terá que arcar com as consequências desta liberdade. Sou favorável que o jornalista pague pessoalmente (não a empresa para a qual trabalha, ele mesmo), junto à Justiça, pelo que escreve. Por ter esse risco, o sindicato lhe pagaria serviço jurídico de primeira categoria.

4) A seção de cartas deveria ser auditada externamente, para refletir, de fato, o que o público pensa. Essa é o tipo de medida que só ia ajudar o jornal a atrair leitores e gerar um clima de confiança. A editoração da seção de cartas exala aromas desagradáveis de manipulação da informação. Afinal, um jornal é pra dizer a verdade ou não? Ora pois, a verdade mais importante é a gente saber, precisamente, exatamente, quantas pessoas escreveram cartinhas contra e quantas escreveram cartas a favor. É uma conta democrática, sagrada, que desejamos saber. O jornal tem a obrigação moral de fazer essa estatística ou, de preferência, entregar para alguma firma idônea fazer. Ao não fazê-lo, o Globo subutiliza o próprio material que recebe. Esse é o problema maior do reacionário - ele, que é quem tem o dinheiro, atrasa o Brasil porque não sabe gerar dinheiro. O fato dessas famílias já serem possuidoras de milhares de imóveis no Brasil e no exterior lhes tira energia, ambição, amor pela vida e perene revolta que consomem os mortais raladores cidadãos brasileiros. Eles não querem mudar, nem pra melhor, nem pra pior. Mas eu acho falta de compostura falar mal da Globo sem ter uma excelente argumentação, o que exige muito conhecimento em comunicação social e política. Por isso eu não gostaria do fim da Globo, e sim que a empresa se modernizasse, que adotasse gestão mais democrática e respeitosa com seus leitores, funcionários e autoridades públicas. A imprensa tem que ensinar a sociedade a respeitar suas autoridades públicas e não o contrário, como vem fazendo. Um poeta, um músico, um dramaturgo, pode falar mal de quem quiser, porque tem o direito sagrado de seguir o seu instinto, mesmo o mais injusto e cruel, porque a beleza não tem nada a ver com a bondade. Mas um jornal é um órgão com função pública. Por isso mesmo recebe subsídios estatais que chegam a centenas de milhões de reais.

5) Um ombudsman não poderia ser funcionário de um jornal. Deveria ser contratado por uma fundação independente privada, bancada por todos os jornais, ou bancada pelo Estado, ou mista. O sistema da Folha é ridículo, além de constrangedor para o ombusdman, obrigado a uma situação de X9 de seus próprios colegas. Esses ombusdmans deveriam ter uma formação específica e rigorosa e ser contratados por concurso público.

6) Se é verdade que o Estado responde por 30% ou até mais da verba publicitária dos jornais, ele deveria ter um assento no conselho editorial, ou ter o poder de indicar alguém. Repare que falo em Estado, não em governo. Esse alguém poderia ser o próprio Ombudsman, que seria um funcionário de autarquia independente.

Estas medidas visariam ampliar o prestígio da imprensa. Afinal, é importante que o país possua empresas jornalísticas capitalizadas, que possam patrocinar reportagens caras e sofisticadas sobre os mais diversos assuntos. Blogueiros sempre terão o seu espaço, tratando os temas em profundidade, com textos analíticos, informais, interativos. Mas a imprensa precisa andar pra frente, até para aumentar o seu prestígio e importância junto a sociedade. As ciências - o jornalismo é, ou deveria ser uma ciência, num sentido moderno e aberto - devem lutar por si mesmas, devem produzir discursos em defesa de si mesmas. Só assim elas conseguem ampliar seu espaço junto à sociedade.



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Por falar em Kane, uma entrevista interessante com dois nomes influentes da diplomacia brasileira: Celso Lafer (diplomata tucano) e Marcel Biato, assessor do Marco Aurélio Garcia (assessor de Lula para assuntos internacionais).



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E aqui o filme Muito Além do Cidadão Kane, da BBC de Londres, sobre o NOSSO Kane.



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E aqui um resumo do filme, em 4 minutos:



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Site que traz a transcrição completa do filme.

3 comentarios

Anônimo disse...

Meu filme preferido. Adorei seu post.

carlos disse...

caro do rosário,

do cacete sua análise sobre o que deveria ser o compromisso e a responsabilidade da empresa jornalística.

parabéns!!!

Stella disse...

Perfeito! Parabéns!

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