(outra esquina da Gomes Freire com Visc.Rio Branco, Lapa)
A criatividade não é necessária apenas para se escrever poemas, fazer filmes ou compor canções. Entender a história, a política, a humanidade, também exige criatividade e juízo estético. A faculdade do juízo, segundo Kant, é inata ao ser humano: não são apenas as "bichinhas culturais" (para usar a expressão consagrada por Mirisola), além dos artistas propriamente ditos, que a possuem. Esta faculdade tem como função produzir um esquema mental intuitivo, mas sempre com um formato conceitual que não agrida nossa razão. Para produzir esse esquema, a faculdade do juízo usa a imaginação, que lhe ajuda a compor um quadro minimamente inteligível para a mente humana, reunindo o universal e o particular numa síntese dialética.
A função racional não consegue dar conta da realidade. Não tem esse poder. A realidade exterior supera a capacidade racional humana. Clarice Lispector sabia disso quando alertou: "não tente entender, a vida ultrapassa todo entendimento". Nossa ferramenta de acesso à realidade cotidiana é a intuição, a qual, aliás, também forma a base originária de qualquer elaboração racional. Em Crítica da Razão Pura, Kant observa que todo postulado racional deriva de uma intuição originada em nossas faculdades inatas de perceber o tempo e o espaço. O racional será, de fato, o terreno da inteligência e do humanismo, mas o conhecimento do mundo advém primordialmente da faculdade do juízo, que usa a imaginação para formar uma ficção da realidade em nossa mente, a qual depois irá refletir esta ficção no espelho de nosso entendimento racional, para burilar suas arestas e ajustá-la a nossa consciência.
E o que isso tem a ver com o título deste artigo? O que tem a ver com imprensa ou democracia? Tudo. A imprensa é uma instituição consagrada na democracia moderna, que opera como uma faculdade mental do corpo coletivo, ou pelo menos assim se pretende. A imprensa almeja ser os olhos e os ouvidos do corpo social. Mas não é. A imprensa não faz parte do corpo democrático. Não é uma instituição republicana, por razões muito simples: não cumpre as exigências éticas, jurídicas e democráticas para tal.
Agora eu entendo perfeitamente porque o comunismo real se viu obrigado a deter o monopólio da comunicação. É porque a comunicação social, ou mais especificamente o seu agente principal, a imprensa privada, representa um poder real, constante, agressivo, que rivaliza com os poderes republicanos constituídos.
O surgimento e a consagração da internet foi um fenômeno que surpreendeu até mesmo os seus criadores. Produzida por instituições públicas norte-americanas, a internet tinha como função inicial (depois de um curto período em mãos de militares, que usaram-na para transmissão de mensagens cifradas) permitir a troca online de informação entre pesquisadores.
A explosão da internet, o seu sucesso estrondoso, relaciona-se a uma força aprisionada do mundo contemporâneo: a necessidade de informação, que é a grande paixão do homem. Curiosidades aparentemente fúteis, como saber o que pensa um esquimó - que irá criar seu próprio blog e se dar a conhecer - são tão dignas como a de conhecer o tamanho real dos astros. A internet se tornou, de fato, uma ferramenta de conhecimento, um grande cérebro coletivo, com características verdadeiramente republicanas e democráticas - e quando digo isso, incluo aí o caos, a corrupção, a imoralidade, e todos os defeitos agarrados ao caráter humano. Sua diferença é a transparência, desde sempre proporcionada pela alternância de poder e pelo sufrágio, características basilares das democracias. A internet facilita esse processo.
Na realidade, a internet permitiria uma simplificação brutal do sistema democrático. A divisão administrativa em estados e municípios era necessária para dar conta dos vastos territórios nacionais. Com a internet, porém, esse federalismo gera superposição e duplicação de poderes, ou seja custos excessivos e supérfluos para o povo brasileiro.
O estudo da história nos mostra que toda sociedade, quando perde o viço criativo e inovador, entra em declínio acelerado e irreversível. O Brasil precisa, portanto, de criatividade. A extinção das administrações estaduais e municipais não acarretaria em prejuízo de seus funcionários. Ao contrário, estes não só seriam mantidos, integralmente, como teriam seus rendimentos ampliados e muito mais liberdade de ação, podendo escolher sair de seus estados de origem e residir em áreas diferentes do país. A internet permitiria uma administração centralizada, racional, transparente e enxuta (e quando digo enxuta, pelo amor de Deus, não me refiro à demissões em massa e sim a uma estrutura hierarquicamente mais racional).
Não penso num Estado totalitário e sim num Estado mais democrático, com mais transparência e que possa ofertar melhores serviços para a sociedade, com a contratação de mais médicos, professores, e sobretudo com o pagamento, para estes dois segmentos, de salários mais dignos.
A imprensa não tem função importante na democracia (na verdade, nunca teve; na América Latina, a imprensa foi a maior adversária da estabilidade democrática) porque ela não se mostra disposta a permitir inovações sociais. Tornou-se uma instância rudemente conservadora, que chantageia o poder e os cidadãos, e que apregoa uma ideologia mentirosa sobre a realidade política que nos cerca. A imprensa brasileira, por exemplo, transmite a idéia de que a corrupção existe apenas no sistema público. Cansei de ver matérias que comparavam sistemas de gestão privados, que seriam mais "eficientes", com seus irmãos estatais, que seriam gordos, lentos e burros. Com isso, criou-se espaço ideológico para a privatização de serviços estratégicos do Estado. Falácia, como ficamos sabendo. Grandes grupos privados realizavam, há décadas, fraudes em suas contas, para enganar consumidores, acionistas e o Estado; e porque deveríamos acreditar que agora, após a crise, eles se tornaram, subitamente, éticos?
Com essa crise mundial, ficamos sabendo o que nunca deveríamos ter perdido de vista: as instituições públicas são as únicas que, embora com problemas de corrupção, podem ser monitoradas online pelos cidadãos, desde que instalem sistemas de transparência na internet - uma necessidade cada vez mais possível e mais aconselhável. Os grupos privados não precisam de transparência e, por isso, podem continuar exibindo sua "eficiência" e "ética", uma boa imagem pela qual pagam polpudos anúncios na imprensa.
O mundo que eu vejo é um mundo mais público e mais centralizado, com governos mundiais articulados entre si e poderosas e influentes organizações multilaterais. Essa já é uma realidade que vemos acontecer. O que gostaria de chamar a atenção é para a possibilidade de modernizar o regime administrativo nacional, através da centralização total das instituições. Com a internet, cada município poderá abrigar unidades executivas e legislativas federais, que teriam, no entanto, um poder maior ou com mais qualidade, porque integrariam o próprio núcleo de poder nacional.
Cada município teria, em vez de um prefeito com quase nenhum poder de intervenção ou captação de recurso, uma secretaria da presidência da república. Quando tenho essas idéias, não penso em Lula ou Serra. Acredito que esse tipo de modernização seria benéfica a todos os espectros ideológicos, embora eu confie muito mais plenamente em políticos que tenham consciência sobre a importância fundamental do poder público para o desenvolvimento das sociedades.
O capitalismo pós-moderno parece estar entendendo, após muita surra, que o Estado é seu aliado. Somente através da existência de um Estado forte, centralizado, e ao mesmo tempo democrático e transparente, teremos segurança de enfrentar as pandemias, as crises de crédito e as rixas comerciais entre nações. As instituições privadas contribuirão com empreendedorismo e criatividade. O que é inviável é caminharmos, passivamente, para um mundo dividido em castas de privilegiados, com acesso a todas as novas tecnologias da saúde, da comunicação e da cultura, e uma maioria de despossuídos. Isso, definitivamente, não é democrático. As pessoas perderam a noção do que é democracia. "O amor à democracia é o amor à igualdade", afirma Montesquieu, o primeiro grande teórico da democracia moderna. Com isso ele não queria dizer um mundo com todos recebendo o mesmo salário, conforme a caricatura produzida pela experiência da União Soviética, e que resulta numa situação em que, em vez de eliminar a pobreza, universaliza-a - queria significar, antes de tudo, um mundo onde as oportunidades seriam parecidas.
A introdução filosófica dos primeiros parágrafos desse texto visou articular uma teoria que venho tentando demonstrar há tempos, e sobre a qual ainda discorrerei muito neste blog. Trata-se do meu esforço para enterrar, de vez, a arrogância "letrada" das classes médias e altas brasileiras, que se acreditam possuidoras de um entendimento superior por conta de suas noções escolares. Não percebem que o conhecimento não reside nestas noções, necessariamente imperfeitas e sectárias. O conhecimento humano é, antes de tudo, criatividade, intuição e vigor. Esta aí a explicação para que intelectuais sobrecarregados de títulos acadêmicos, como Roberto DaMatta, ostentem uma burrice e uma pequenez espiritual constrangedoras, enquanto uma figura como Lula, que nunca fez faculdade, venha conquistando a imprensa e os presidentes do mundo inteiro com sua verve e inteligência. Demétrio Magnoli, Bolivar Lamounier, Marco Antonio Villa, são outros exemplos de mediocridade intelectual.
Conhecimentos teóricos, naturalmente, são fundamentais para compreender o mundo. Mas se não forem acompanhados de um juízo honesto, original e profundo, nascido de uma faculdade que é inata e logo não adquirível em universidades americanas, não valem nada.
Kant afirma que "todos os nossos conhecimentos começam com a experiência, porque, com efeito, como haveria de exercitar-se a faculdade de se conhecer, se não fosse pelos objetos que, excitando os nossos sentidos, de uma parte, produzem por si mesmos representações, e de outra parte, impulsionam a nossa inteligência a compará-los entre si, a reuni-los ou separá-los, e deste modo à elaboração da matéria informe das impressões sensíveis para esse conhecimento das coisas que se denomina experiência?"
Ou seja, o filósofo alemão indica, na introdução de sua obra capital, que somente a experiência pode ativar e dar forma real ao conhecimento. Este não pode ser adquirido em livros ou nas salinhas da PUC. É preciso que seja exposto à luz forte do sol, que interaja com outras idéias, que seja constantemente posto à prova pelo contraditório.
Há outro ponto importante. O que a nossa classe "letrada" entende por "cultura" não passa de um amontoado de clichês europocêntricos ou americanizados. O conhecimento do homem, diz o Velho Testamento, é loucura para Deus. O ser humano pode apreender conhecimento a partir de qualquer referência, desde que tenha a oportunidade de conhecer a si mesmo e exercer um diálogo criativo com o mundo. Assim como Proust pode criar romances fantásticos a partir do aroma de um biscoito, um ser humano pode entender a política e a economia globais a partir da observação de um camelô fugindo do rapa. Claro que simplifico - quero apenas mostrar que o universo de conhecimentos ofertados ao homem é infinito. Sua sabedoria consiste na capacidade de açambarcar essa miríade de informações com um olhar judicioso e sensato, articulando uma síntese dialética entre a mais singela manifestação particular, como o choro de fome de uma criança, e a contemplação da humanidade como um todo. Esse tipo de conhecimento não se aprende em faculdade. Aprende-se na vida, e por isso vemos jovens que estudaram em boas escolas tratarem os outros com estupidez, arrogância e agirem tão insensatamente, enquanto outros, com acesso a menos recursos, apesar de, aparentemente, progredirem a um ritmo mais lento, fazerem-no de maneira mais sólida e definitiva. A tartaruga ultrapassa a lebre e assim a classe média assiste, perplexa, os concursos públicos terem participação de cada vez mais gente oriunda das camadas mais humildes.
Volto à pergunta do título: pode existir democracia sem imprensa privada? Pode, desde que todos os órgãos públicos publiquem seus trabalhos na internet. Desde que a produção oficial estatística seja acessível pela internet de forma simples e confiável. Desde que a imprensa pública se descole do governo, tornando-se uma autarquia independente e democrática. Desde que a blogosfera prossiga crescendo e se institucionalizando, com surgimento de blogs especializados confiáveis e competentes, possivelmente financiados por editais públicos.
A função racional não consegue dar conta da realidade. Não tem esse poder. A realidade exterior supera a capacidade racional humana. Clarice Lispector sabia disso quando alertou: "não tente entender, a vida ultrapassa todo entendimento". Nossa ferramenta de acesso à realidade cotidiana é a intuição, a qual, aliás, também forma a base originária de qualquer elaboração racional. Em Crítica da Razão Pura, Kant observa que todo postulado racional deriva de uma intuição originada em nossas faculdades inatas de perceber o tempo e o espaço. O racional será, de fato, o terreno da inteligência e do humanismo, mas o conhecimento do mundo advém primordialmente da faculdade do juízo, que usa a imaginação para formar uma ficção da realidade em nossa mente, a qual depois irá refletir esta ficção no espelho de nosso entendimento racional, para burilar suas arestas e ajustá-la a nossa consciência.
E o que isso tem a ver com o título deste artigo? O que tem a ver com imprensa ou democracia? Tudo. A imprensa é uma instituição consagrada na democracia moderna, que opera como uma faculdade mental do corpo coletivo, ou pelo menos assim se pretende. A imprensa almeja ser os olhos e os ouvidos do corpo social. Mas não é. A imprensa não faz parte do corpo democrático. Não é uma instituição republicana, por razões muito simples: não cumpre as exigências éticas, jurídicas e democráticas para tal.
Agora eu entendo perfeitamente porque o comunismo real se viu obrigado a deter o monopólio da comunicação. É porque a comunicação social, ou mais especificamente o seu agente principal, a imprensa privada, representa um poder real, constante, agressivo, que rivaliza com os poderes republicanos constituídos.
O surgimento e a consagração da internet foi um fenômeno que surpreendeu até mesmo os seus criadores. Produzida por instituições públicas norte-americanas, a internet tinha como função inicial (depois de um curto período em mãos de militares, que usaram-na para transmissão de mensagens cifradas) permitir a troca online de informação entre pesquisadores.
A explosão da internet, o seu sucesso estrondoso, relaciona-se a uma força aprisionada do mundo contemporâneo: a necessidade de informação, que é a grande paixão do homem. Curiosidades aparentemente fúteis, como saber o que pensa um esquimó - que irá criar seu próprio blog e se dar a conhecer - são tão dignas como a de conhecer o tamanho real dos astros. A internet se tornou, de fato, uma ferramenta de conhecimento, um grande cérebro coletivo, com características verdadeiramente republicanas e democráticas - e quando digo isso, incluo aí o caos, a corrupção, a imoralidade, e todos os defeitos agarrados ao caráter humano. Sua diferença é a transparência, desde sempre proporcionada pela alternância de poder e pelo sufrágio, características basilares das democracias. A internet facilita esse processo.
Na realidade, a internet permitiria uma simplificação brutal do sistema democrático. A divisão administrativa em estados e municípios era necessária para dar conta dos vastos territórios nacionais. Com a internet, porém, esse federalismo gera superposição e duplicação de poderes, ou seja custos excessivos e supérfluos para o povo brasileiro.
O estudo da história nos mostra que toda sociedade, quando perde o viço criativo e inovador, entra em declínio acelerado e irreversível. O Brasil precisa, portanto, de criatividade. A extinção das administrações estaduais e municipais não acarretaria em prejuízo de seus funcionários. Ao contrário, estes não só seriam mantidos, integralmente, como teriam seus rendimentos ampliados e muito mais liberdade de ação, podendo escolher sair de seus estados de origem e residir em áreas diferentes do país. A internet permitiria uma administração centralizada, racional, transparente e enxuta (e quando digo enxuta, pelo amor de Deus, não me refiro à demissões em massa e sim a uma estrutura hierarquicamente mais racional).
Não penso num Estado totalitário e sim num Estado mais democrático, com mais transparência e que possa ofertar melhores serviços para a sociedade, com a contratação de mais médicos, professores, e sobretudo com o pagamento, para estes dois segmentos, de salários mais dignos.
A imprensa não tem função importante na democracia (na verdade, nunca teve; na América Latina, a imprensa foi a maior adversária da estabilidade democrática) porque ela não se mostra disposta a permitir inovações sociais. Tornou-se uma instância rudemente conservadora, que chantageia o poder e os cidadãos, e que apregoa uma ideologia mentirosa sobre a realidade política que nos cerca. A imprensa brasileira, por exemplo, transmite a idéia de que a corrupção existe apenas no sistema público. Cansei de ver matérias que comparavam sistemas de gestão privados, que seriam mais "eficientes", com seus irmãos estatais, que seriam gordos, lentos e burros. Com isso, criou-se espaço ideológico para a privatização de serviços estratégicos do Estado. Falácia, como ficamos sabendo. Grandes grupos privados realizavam, há décadas, fraudes em suas contas, para enganar consumidores, acionistas e o Estado; e porque deveríamos acreditar que agora, após a crise, eles se tornaram, subitamente, éticos?
Com essa crise mundial, ficamos sabendo o que nunca deveríamos ter perdido de vista: as instituições públicas são as únicas que, embora com problemas de corrupção, podem ser monitoradas online pelos cidadãos, desde que instalem sistemas de transparência na internet - uma necessidade cada vez mais possível e mais aconselhável. Os grupos privados não precisam de transparência e, por isso, podem continuar exibindo sua "eficiência" e "ética", uma boa imagem pela qual pagam polpudos anúncios na imprensa.
O mundo que eu vejo é um mundo mais público e mais centralizado, com governos mundiais articulados entre si e poderosas e influentes organizações multilaterais. Essa já é uma realidade que vemos acontecer. O que gostaria de chamar a atenção é para a possibilidade de modernizar o regime administrativo nacional, através da centralização total das instituições. Com a internet, cada município poderá abrigar unidades executivas e legislativas federais, que teriam, no entanto, um poder maior ou com mais qualidade, porque integrariam o próprio núcleo de poder nacional.
Cada município teria, em vez de um prefeito com quase nenhum poder de intervenção ou captação de recurso, uma secretaria da presidência da república. Quando tenho essas idéias, não penso em Lula ou Serra. Acredito que esse tipo de modernização seria benéfica a todos os espectros ideológicos, embora eu confie muito mais plenamente em políticos que tenham consciência sobre a importância fundamental do poder público para o desenvolvimento das sociedades.
O capitalismo pós-moderno parece estar entendendo, após muita surra, que o Estado é seu aliado. Somente através da existência de um Estado forte, centralizado, e ao mesmo tempo democrático e transparente, teremos segurança de enfrentar as pandemias, as crises de crédito e as rixas comerciais entre nações. As instituições privadas contribuirão com empreendedorismo e criatividade. O que é inviável é caminharmos, passivamente, para um mundo dividido em castas de privilegiados, com acesso a todas as novas tecnologias da saúde, da comunicação e da cultura, e uma maioria de despossuídos. Isso, definitivamente, não é democrático. As pessoas perderam a noção do que é democracia. "O amor à democracia é o amor à igualdade", afirma Montesquieu, o primeiro grande teórico da democracia moderna. Com isso ele não queria dizer um mundo com todos recebendo o mesmo salário, conforme a caricatura produzida pela experiência da União Soviética, e que resulta numa situação em que, em vez de eliminar a pobreza, universaliza-a - queria significar, antes de tudo, um mundo onde as oportunidades seriam parecidas.
A introdução filosófica dos primeiros parágrafos desse texto visou articular uma teoria que venho tentando demonstrar há tempos, e sobre a qual ainda discorrerei muito neste blog. Trata-se do meu esforço para enterrar, de vez, a arrogância "letrada" das classes médias e altas brasileiras, que se acreditam possuidoras de um entendimento superior por conta de suas noções escolares. Não percebem que o conhecimento não reside nestas noções, necessariamente imperfeitas e sectárias. O conhecimento humano é, antes de tudo, criatividade, intuição e vigor. Esta aí a explicação para que intelectuais sobrecarregados de títulos acadêmicos, como Roberto DaMatta, ostentem uma burrice e uma pequenez espiritual constrangedoras, enquanto uma figura como Lula, que nunca fez faculdade, venha conquistando a imprensa e os presidentes do mundo inteiro com sua verve e inteligência. Demétrio Magnoli, Bolivar Lamounier, Marco Antonio Villa, são outros exemplos de mediocridade intelectual.
Conhecimentos teóricos, naturalmente, são fundamentais para compreender o mundo. Mas se não forem acompanhados de um juízo honesto, original e profundo, nascido de uma faculdade que é inata e logo não adquirível em universidades americanas, não valem nada.
Kant afirma que "todos os nossos conhecimentos começam com a experiência, porque, com efeito, como haveria de exercitar-se a faculdade de se conhecer, se não fosse pelos objetos que, excitando os nossos sentidos, de uma parte, produzem por si mesmos representações, e de outra parte, impulsionam a nossa inteligência a compará-los entre si, a reuni-los ou separá-los, e deste modo à elaboração da matéria informe das impressões sensíveis para esse conhecimento das coisas que se denomina experiência?"
Ou seja, o filósofo alemão indica, na introdução de sua obra capital, que somente a experiência pode ativar e dar forma real ao conhecimento. Este não pode ser adquirido em livros ou nas salinhas da PUC. É preciso que seja exposto à luz forte do sol, que interaja com outras idéias, que seja constantemente posto à prova pelo contraditório.
Há outro ponto importante. O que a nossa classe "letrada" entende por "cultura" não passa de um amontoado de clichês europocêntricos ou americanizados. O conhecimento do homem, diz o Velho Testamento, é loucura para Deus. O ser humano pode apreender conhecimento a partir de qualquer referência, desde que tenha a oportunidade de conhecer a si mesmo e exercer um diálogo criativo com o mundo. Assim como Proust pode criar romances fantásticos a partir do aroma de um biscoito, um ser humano pode entender a política e a economia globais a partir da observação de um camelô fugindo do rapa. Claro que simplifico - quero apenas mostrar que o universo de conhecimentos ofertados ao homem é infinito. Sua sabedoria consiste na capacidade de açambarcar essa miríade de informações com um olhar judicioso e sensato, articulando uma síntese dialética entre a mais singela manifestação particular, como o choro de fome de uma criança, e a contemplação da humanidade como um todo. Esse tipo de conhecimento não se aprende em faculdade. Aprende-se na vida, e por isso vemos jovens que estudaram em boas escolas tratarem os outros com estupidez, arrogância e agirem tão insensatamente, enquanto outros, com acesso a menos recursos, apesar de, aparentemente, progredirem a um ritmo mais lento, fazerem-no de maneira mais sólida e definitiva. A tartaruga ultrapassa a lebre e assim a classe média assiste, perplexa, os concursos públicos terem participação de cada vez mais gente oriunda das camadas mais humildes.
Volto à pergunta do título: pode existir democracia sem imprensa privada? Pode, desde que todos os órgãos públicos publiquem seus trabalhos na internet. Desde que a produção oficial estatística seja acessível pela internet de forma simples e confiável. Desde que a imprensa pública se descole do governo, tornando-se uma autarquia independente e democrática. Desde que a blogosfera prossiga crescendo e se institucionalizando, com surgimento de blogs especializados confiáveis e competentes, possivelmente financiados por editais públicos.
Virei seguidor!
Estou torcendo para que você publique também algumas fotos de Sta. Tereza, onde morei lá durante 6 meses e que tanto adoro.
Miguel, o que foi hoje aprovado na Câmara não é ao que você se refere neste seu excelente texto?
Parabéns. Sou seu leitor.
oi anonimo, o que foi aprovado hoje na camara?
araujo, mais tarde chegarei lá também, em santa. é aqui perto. abraço
grande do rosário,
o seu post é de uma clareza que me emociona.
os da matta e lemounier da vida se enredaram tanto na torre de marfim do formalismo estético americano, que perderam o contato com o povo brasileiro.
coisa que não aconteceu com o saudoso jornalista mário filho, irmão do nélson rodrigues, ao publicar em 47 "o negro e o futebol brasileiro", reeditado agora e que acabei de ler.
o autor, admiravelmente, tece uma trama que une o conhecimento da experiencia profissional - a jornalística - com a pesquisa factual e oral - a acadêmica.
vale a pena ler a obra, se o amigo ainda não a conhece.
dessa forma, os catedráticos referenciados no post nem calçam as chuteiras do mário. que golaço!
abçs
carlos anselmo-eng°-fort-ce
Miguel entre neste link...
http://nupic.incubadora.fapesp.br/portal/banco-de-dados/publicacoes/congressos/Iva_Gurgel_A_IMAGINACAO_CIENTIFICA_A_CONSTRUCAO_DO_CONHECIMENTO_SOB_A_PERSPECTIVA_DE_ALBERT_EINSTEIN.pdf
acho que tem a ver com a intuição, imaginação e criatividade que voce ta falando...abraço
Também tem a pergunta: Pode democracia(à vera) com imprensa privada?
Discordo com muita coisa desse artigo....
Bichinha cultural? O que é isso? Esta expressão me pareceu homofóbica.
Explique
Aninha
A estatal petrobrás é a 4a. na lista das mais respeitadas empresas do mundo. A empresa estava ali por volta da posição 20.
Antes a estatal Vale era nosso orgulho nacional. Na mesma pesquisa a privatizada Vale despencou para a posição ali perto da 20a. Os que defenderam a privataria de FHC ficam de bico calado.
José Carlos Lima
não é não aninha, é só politicamente incorreta. tenho vários amigos gays que usam e gostam de usar expressões como essa, bichinha, etc. elas não se referem à sexualidade, mas à uma sensibilidade artificial, afetada, interessada.
como a web pode ser usada
http://tabnet.saude.campinas.sp.gov.br/cgi/deftohtm.exe?intcamp/rdcamp.def
tags:
cidade-estado, micro-nação.
Bom este exercício de imaginar e expressar outro mundo possível, uma espécie de República de Platão.
Pretendo retomar este exercício no meu blog, já adiantando que minha visão diverge da sua, embora a minha esteja defasada porque quando a imaginei não coloquei a internet.
Pensar noutro mundo possível é para mim uma tentação irresistível, às vezes me pergunto esta vontade que sinto tem a ver com esquisofrenia, fuga da realidade, carência, algo neste sentido.
No momento estou em Terezina-PI, onde não se devo, está ótimo curtindo só a cidade que eu não conhecia e que até imaginava ser desorganizada, suja, ruas curas, pessoas feias, o que não tem nada a ver.
Terezinha é uma grande cidade, ruas largas, pessoas bonitas e hospitaleira, claro com seus problemas de violência, no momento as enchentes,..ah tudo bem, agora lembro-me, devo sim, falar de outro mundo possível, por aqui também as relações entre as pessoas e as instuituições e pessoas jurídicas é, como na maioria das cidades brasileiras, caótica.
No SPIN em Brasília, ao invés de Heráclito Fortes, Mão Santa e mais outro senador que não me lembro o nome e mais uma porção de deputados federais, teríamos apenas um representante.
Para não delongar o assunto por aqui, continua no SPIN, mais exatamente no blog correspondente ao dia de hoje.
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