3 de maio de 2009

Variações sobre a lírica do poder

(Iniciei uma série de fotos do que resta do Rio Antigo, sobretudo das adjacências da Lapa e Cruz Vermelha; esta é uma das fotos. A autoria é minha mesmo)

Li uma notícia, no blog do Noblat, que me aborreceu bastante. Aliás, vale parabenizar os repórteres por esta importante contribuição ao debate político. A matéria, em resumo, diz que o fim (ou sua redução brutal) das passagens para deputados irá prejudicar principalmente aqueles que são ligados aos movimentos sociais e sindicatos. Esses parlamentares são, em geral, pessoas que não possuem outra fonte de renda que não o salário; e, pelo fato de integrarem famílias de baixa renda, os recursos que recebem se evaporam rapidamente em gêneros de primeira necessidade.

Um parlamentar, qualquer parlamentar, além de representante de todo o povo brasileiro, é eleito a partir de articulações políticas de um segmento da sociedade; no caso destes de que falo, eles representam trabalhadores organizados ou grupos marginalizados economicamente. Os segmentos mais expressivos da sociedade brasileira estão representados no Congresso: os evangélicos, os católicos, os empresários, os fazendeiros, os sindicalistas e os movimentos sociais. Os empresários e os fazendeiros, por deterem grande poder econômico, não precisam das tais passagens aéreas emitidas por gabinete de parlamentar. Os movimentos sociais precisam. Muitas vezes, deputados emitem passagens para lideranças indígenas, para representantes de professores. A bancada da saúde paga passagens para pesquisadores virem à Brasília defenderem tal ou qual política pública. A perda desse direito consiste, portanto, em retrocesso político para os parlamentares da esquerda; e como o processo eleitoral é uma dura competição em torno de poucas vagas, os parlamentares ricos ou patrocinados por lobbies bem estruturados financeiramente levarão vantagem; e como são justamente esses lobistas que mais se envolvem nas negociatas escusas, a economia alcançada com as passagens será neutralizada com o avanço dos lobbies no Congresso Nacional.

O escândalo da passagem aérea consistiu, na minha opinião, em mais uma grande chantagem política contra os parlamentares. Os gastos do governo Serra com assinaturas sem licitação de publicações da Abril, e com a assinatura - também sem licitação - dos jornais Folha e Estadão para colégios públicos, são superiores aos que os deputados gastam com passagens aéreas; assim como o valor correspondente aos cartões corporativos de funcionários do governo de São Paulo era muito superior aos gastos com cartões do Executivo federal. Mas a mídia seleciona cinicamente o que é ético ou não, e obriga a sociedade a mordiscar obedientemente a rapadura de mentiras que serve a seus leitores.

Apesar de nosso orgulho em termos aberto fissuras no controle da opinião pública exercido pela grande midia, não podemos nos iludir: o poder ainda é enorme, ainda é excessivo, e ainda nos restam muitas batalhas - a mãe de todas será, naturalmente, a eleição presidencial em 2010, quando o queridinho da mídia, o senhor José Serra, será incensado como o salvador da nação brasileira.

Tenho observado que as pessoas que se limitam a ler a imprensa escrita estão ficando cada vez mais desinformadas. Outro dia uma parente minha, cuja fonte de informação é o jornal O Globo, veio me perguntar se iriam mexer na poupança. Olhei pra cara dela e mandei: você está acreditando em propaganda do PPS! Esta parente é uma senhora inteligente e intelectualizada, mas acredita em tudo que lê no jornal. O único avanço real que notei nela foi a renúncia definitiva - com nojo, o que é muito promissor - à Revista Veja. É muito difícil mudar hábitos de muitas décadas, e a maior parte da classe média com idade superior a 40 anos habituou-se a ler jornais - a compra destes representam, inclusive, um investimento importante, um percentualzinho nada desprezível em seus orçamentos e será sempre difícil fazer a pessoa desvalorizar aquilo que pagou com seu suado dinheirinho.

Os jornais escritos possuem, além disso, um potencial comunicativo que vai muito além da política. Eles dominam o debate estético no país - e com isso detêm um descomunal poder de influência e chantagem sobre a classe intelectual. Acho que esse fator não é analisado com a devida atenção por quem pensa a comunicação social, porque, se a opinião política conseguiu ser, pelo menos em parte, fragmentada pela blogosfera, levando de roldão também a opinião econômica, o discurso estético, que produz a política cultural, e exerce influência direta ou indireta sobre a consciência dos cidadãos, permanece intocável em mãos das famiglias, que inclusive ampliou seu poder nessa esfera. Nas décadas de 60 e 70, ainda havia, entre a elite da classe artística, um posicionamento crítico em relação aos grandes jornais, que resultou no aparecimento de inúmeras publicações alternativas, as quais, apesar das tiragens baixas, exerciam influência respeitada, inclusive sobre os jornais mais tradicionais, no debate estético nacional. Na música, havia os Festivais da Canção. E mesmo a grande mídia oferecia uma gama mais heterogênea de opiniões, porque existiam mais jornais: no Rio, capital do país, havia o Correio da Manhã, a Última Hora e o Jornal do Brasil, publicações de excelente qualidade editorial, com muito bom gosto na escolha de seus colaboradores e com um perfil ideológico bem menos conservador do que o Globo, que sempre personificou a ala mais direitista. Mesmo o Globo não era tão monolítico e medíocre como hoje. As crônicas de Nelson Rodrigues, por muito tempo injustamente classificadas no rol das idéias conservadoras, possuíam uma leveza, uma ironia, uma inocência, uma honestidade, que não vejo em nenhum colaborador do jornal hoje. O Globo abrigou, durante anos, o grande Marcio Moreira Alves, que praticou um colunismo elegante e progressista, muito longe do sabujismo cínico e desonesto de Merval Pereira.

O pior é que esse poder midiático sobre o discurso estético não diminui com a redução da tiragem, porque não se trata de quantidade mas de prestígio. A classe artística nacional perdeu qualquer escrúpulo político e quem se posiciona de forma crítica tem sido solenemente desprezado, ignorado, ou mesmo ridicularizado. A Lei Rouanet muito contribuiu para esse lastimável estado de coisas, ao amarrar o artista a dois Senhores: o Estado, que pré-aprova os projetos e depois paga as contas, através da renúncia fiscal; e o Empresário, que escolhe o projeto.

O debate sobre as mudanças na Lei Rouanet mexe nesse vespeiro. Recentemente, li uma notícia que me chocou. O ministro da Cultura, Juca Ferreira, participou de um debate com artistas no Humaitá, durante o qual um ator ergueu-se e pronunciou o seguinte discurso:

- O imposto não é do governo! O imposto é do Itaú! É o Itaú que paga o imposto, então ele é que tem de dizer o que fazer com seu dinheiro!

O ministro respondeu, calmamente, que não concorda com nenhuma vírgula do que o ator tinha dito, e que os impostos são, constitucionalmente, um bem público, a ser gerido pelo Estado, comandado pelos representantes do povo, eleitos democraticamente. Ele não usou essas palavras, mas no fundo queria dizer isso, que é afinal a definição correta do que é o imposto em qualquer país democrático. Definitivamente, o imposto não é do Itaú.

A afirmação do ator gelou-me a espinha. Há trinta anos, alguém que demonstrasse tamanha estupidez mereceria, com todo o respeito, levar um suave tabefe no rosto. No entanto, o jornal reproduziu a frase do ator e não fez nenhum comentário editorial sobre um posicionamento que consegue superar inclusive o fascismo - visto que o fascismo pelo menos respeitava o direito do Estado em gerir os recursos públicos. É uma afirmação FEUDAL! Sim, porque somente nos tempos mais sombrios da Idade Média, ou nos regimes políticos mais atrasados, mais odiosamente oligárquicos e plutocráticos, os recursos públicos eram geridos por empresários e não por uma instituição pública independente. E digo isso não porque eu acho os empresários cruéis ou brutais, mas porque os empresários são seres humanos dotados de qualidades e defeitos humanos, dentre os quais a cobiça, a inveja, a ganância, a ambição, e a única forma que a humanidade, desde os tempos do Egito Antigo, encontrou de reduzir os efeitos nefastos dessas características sobre a organização social, foi instituir leis e sistemas minimamente republicanos para gerir a coisa pública. Dizer que o imposto é do Itaú é uma imbecilidade tal que me dá coceiras no corpo. E essa afirmação partir de quem se intitula ATOR, enregela-me os músculos! Um pensamento assim, todavia, combina perfeitamente com a ideologia com a qual essas pessoas se drogam diariamente, quando lêem jornais.

É justamente por perceber isso que eu procuro realizar neste blog um tipo de crônica que, abordando a política, os costumes, a cultura, também enfie a colherinha sob esta enorme muralha da China erguida pela grande imprensa em torno do discurso estético nacional. E a única forma de fazer isto com dignidade é usando as armas tradicionais de um comentarista cultural honesto: bom gosto, criatividade e erudição. Termino, portanto, com alguns fragmentos da bela Safo. É interessante divulgar, por razões diversas, que, na Antiguidade clássica, o poeta mais respeitado e amado pelo povo e pelos intelectuais gregos era uma mulher. Infelizmente restou-nos apenas um poema inteiro de Safo. Otto Maria Carpeaux, na orelha do livro de Joaquim Brasil Fontes, "Variações sobre a Lírica de Safo", diz que "Safo de Lesbos (625 a 580 antes de Cristo) é a maravilha do lirismo grego. Dela nos resta muito pouco, mas o menor de seus fragmentos parece estar impregnado de um perfume que atravessou séculos."


"desabem, sobre os que me condenam,
ventanias, e cuidados também"

"não revolvas
montes de pedras miúdas"

"as pessoas a quem desejo o bem,
são as que me trazem dores"

"vieste, e fizeste bem. Eu esperava,
queimando de amor; tu me trazes a paz"

4 comentarios

Apenas, Marcia disse...

E quem disse que há atores com A maiúsculo hoje em dia? O que vemos são mercadores de suas próprias opiniões e vaidades, sem qualquer compromisso com a cultura brasileira. Atores para mim são a população da cidade onde é encenada a paixão de Cristo, (apesar de triste) o trotoir dos travestis na Lapa/Gloria-RJ com suas fantasias fellinianas.

josaphat disse...

Sapho, tecelã de mitos...

Stella disse...

Ah Miguel, conta pra mim quem foi a anta que falou sobre os impostos, conta!!

J.Eduardo R. de C disse...

Vixe, querem privatizar os impostos! E o tal "ator" deve ser um desses artistas(?) de aluguel! E há muitos! Ou então é uma anta mesmo, como disse a internauta Stella.

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