(sobradão das adjacências da Lapa e Cruz Vermelha)
(A primeira parte desse post é uma crônica puramente social. Se quiser, salte para a segunda parte, após o primeiro asterisco. Ou fique só nessa, como preferir).
A noite de quinta-feira teria sido perfeita. Saí na companhia de duas mulheres extremamente agradáveis, tanto na aparência física quanto na inteligência, sendo que uma delas é minha esposa. Havíamos passado algumas horas na salinha colando etiquetas e bebendo cerveja, uma combinação inesperadamente divertida. Por volta das 21 horas, decidimos encerrar o expediente e fomos a uma lanchonete nas proximidades. Optei por mais uma cerveja, satisfeito apenas em observar moças tão esbeltas devorarem coxinhas e empadas de frango. Daí que surge uma trupe de amigos vinda do Museu de Arte Moderna, onde foram prestigiar a abertura de uma exposição.
Então viemos andando, com destino ao centro boêmio da humanidade, a Lapa, mais exatamente um sobrado da Gomes Freire onde se realizava uma festa de campanha da seção fluminense da Ordem dos Advogados do Brasil. Minha consorte, neste momento, demonstrava forte irritação, que externou berrando pelas escadas - algo sarcástico do tipo:
- Ah, o que não se faz por uma cerveja grátis!
Ela não bebe cerveja, mas não é por isso que se irrita. Sua dignidade natural entra em choque com essa busca desenfreada por distribuição gratuita de bebidas alcoólicas, a que eu e alguns amigos nos entregamos eventualmente. A irritação, no entanto, tinha razão de ser, como sempre, porque a música que tocava, um eletrônico meia-boca e piegas ensurdecedor, deixava bem claro, para nós mesmos, que estávamos ali movidos por um interesse venal e medíocre.
De qualquer forma, permanecemos ali poucos minutos, não só porque a música era insuportável e as garotas estavam irritadas, como a cerveja estava chegando ao fim. Então, depois de recolhermos as últimas latinhas disponíveis, iniciamos uma retirada estratégica, planejando estacionar um tempo no ateliê de um dos nossos, situado ali perto.
Se existe um inferno para caçadores de cerveja grátis, eu literalmente tropecei nele esta noite, pois, descendo as escadas, pisei em falso e meu tornozelo dobrou como borracha, rasgando e ferindo algumas dezenas de feixes musculares. Engoli uma dor terrível, informei os amigos sobre a torção, mas, movido pela determinação de não estragar a noite, acompanhei-os até nossa próxima parada.
Chegando lá, bebemos mais cervejas, conversamos, enquanto eu procurava esquecer a dor aguda que ainda me consumia. Minha mulher pediu para ver o tornozelo e começou a chorar de desespero, ao ver a estado de inchação que o mesmo se encontrava. Para piorar, senti uma espécie de queda de pressão que deixou-me muito pálido e confuso, sem conseguir falar por alguns minutos. Pegaram gelo, pensaram a luxação, eu bebi água, e logo depois sentia-me melhor, inclusive voltando a tagarelar sobre deus e suas criações, como todos temos os costume de fazer durante os estágios mais alegres de uma noite etílica. Recusei os pedidos de minha preocupada esposa para ir ao hospital àquela hora da noite e prossegui fingindo para mim mesmo que nada de mais acontecera.
Enfim, não foi uma noite assim tão caipora como o título sugere, mas hoje estou com um gesso secando na perna esquerda, um estorvo particularmente impróprio agora que, terminado meu trabalho de quase três meses, traduzindo os filmes de uma mostra, voltei a ter tempo para dar uns passeios de bicicleta pelo aterro, além das caminhadas ao centro, onde leio os jornais no Centro Cultural de Justiça e faço pesquisas na Biblioteca Nacional.
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Queria falar sobre um magistral romance de Gore Vidal que estou terminando de ler, sobre Abraham Lincoln e suas articulações políticas para superar uma guerra civil e abolir a escravidão. O livro, intitulado "Lincoln" ensinou-me bastante sobre política representativa e o necessário jogo de alianças como forma de sobrevivência e vivência parlamentar. Morreram aproximadamente 970 mil americanos na Guerra de Secessão, que perigou dividir os EUA em dois países diferentes. Foi uma guerra fundamentalmente ideológica, entre duas visões de mundo antagônicas, onde a dicotomia escravista e não-escravista, embora não resumisse tudo, constituía o centro nervoso da tensão. A delicadeza, humildade e astúcia com que Lincoln, um presidente em minoria no seu próprio partido e popularidade das mais modestas, tece e consolida alianças, de acordo com as necessidades que a situação pedia, sempre evitando radicalismos, sempre respeitando a composição natural das forças políticas vigentes, tornaram-se um verdadeiro emblema da arte de fazer política.
Isso porque um presidente deve pensar sobretudo nas dificuldades que o povo enfrenta, que as camadas mais humildes enfrentam e, no que tange ao poder, o problema nunca está com quem você se alia, mas sim no resultado daquela aliança. Ela debilita os seus objetivos políticos de fazer isso ou aquilo para o povo? Ou fortalece-os?
Evidentemente, pensei no Brasil, nas articulações políticas que Lula, como estadista, é obrigado a fazer. O fato de receber apoio de Sarney fê-lo mudar a política do salário mínimo? Fê-lo recuar nas novas leis para recuperar o poder aquisitivo dos aposentados? Não. Ao contrário. Lincoln sabia que a sedução de um grupo político forte, mesmo que diferente de suas idéias, desde que articulada com inteligência, permite a ampliação do poder e das ações políticas consequentes desse poder. Aliás, a falta de experiência nesse tipo de articulação política tem dificultado bastante a vida dos novos estadistas latino-americanos. Mas é assim mesmo. Aprende-se na prática. Para os Estados Unidos gerarem um Lincoln, foi preciso o sacrifício de quase 2 milhões de jovens (metade na guerra da independência, metade na guerra de secessão). Para a Europa alcançar a prudência política que hoje exibe ao mundo precisou sangrar centenas de milhões de seres humanos (só para citar as duas grandes guerras, esquecendo tantos outros conflitos do Velho Continente).
Os que esnobam a necessidade de alianças políticas, alegando que o governo poderia articular mais apoio dos movimentos sociais, cometem uma grande injustiça conceitual. Os movimentos sociais, por mais legítimos e importantes que sejam, não possuem a autenticidade democrática dos parlamentares. Por mais que eu respeite um MST, é um movimento privado, com lideranças não expostas ao sufrágio regular, público e auditado.
Também é extremamente pernicioso e ingênuo pensar que os movimentos estariam isentos das tentações monetárias e políticas que tantos estragos morais causam nas instituições oficiais. Claro que não. Ninguém é melhor que ninguém. Nenhuma liderança do MST é melhor, como ser humano (digo, em tese), do que um parlamentar, e por isso aborreço-me com a tentativa de se dar um status moral, a um determinado movimento, superior a de um outro, eventualmente antagônico. O Brasil tem quase 4 milhões de agricultores familiares que possuem terra, não querem saber de ideologias marxistas, e, no entanto, precisam tanto ou mais ter suas demandas e dificuldades compreendidas pelo Estado e pela sociedade civil. Precisam de mais crédito agrícola, preços mínimos, seguro de safra, etc.
Meu ponto-de-vista é que a esquerda, pela primeira vez no poder em tantos países latino-americanos, ainda está aprendendo a lidar com seus inevitáveis dilemas. Mas as avaliações "moralistas" não devem ser feitas com base no que se exibe no circo midiático (interessado justamente em desmoralizar a esquerda), e sim sob a luz dos fatos. Há melhoras sociais? Há mais transparência? Há mais combate à corrupção? A sociedade paga muito caro para que instituições independentes, isentas, realizem o escrutínio ético e policial de todos os cidadãos, inclusive dos políticos. O mundo reconhece a maturidade institucional do Brasil. Que não é perfeita, mas onde ela é? Trata-se de uma maturidade, inclusive, que ainda está se consolidando, em função da destruição que sofreu pelo estado de totalitarismo político que vigeu no Brasil de 1964 a 1985. As insituições de segurança pública passam por uma verdadeira renovação geracional, e não é à tôa que todas as operações bem sucedidas da combate às grandes quadrilhas de crimes de colarinho branco são protagonizadas por funcionários muito jovens (embora não necessariamente, claro), tanto na Polícia quanto no Ministério Público e no Judiciário.
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Há pouco tempo, mencionei a uma parente o fato de pessoas ricas e poderosas estarem indo para a cadeia, o que constituía uma grande novidade no país. Ela rebateu: "Mas ninguém fica preso. São soltos depois". Sua resposta tem propriedade, mas é generalizante, porque certamente muitos permanecem presos, mas, sobretudo, é ignorante sobre as virtudes e a razão de ser da repressão policial. A represssão policial não visa somente encarcerar seres humanos, mas sobretudo descobrir as causas do crime e as pessoas responsáveis, permitindo que a sociedade enxergue seus podres, única forma de se prevenir para uma próxima vez.
Pessoalmente, sou contra o encarceramento de seres humanos, com exceção de psicopatas notórios, homicidas, estupradores, etc. O resto dos delinquentes deveria expiar seus crimes realizando algum tipo de trabalho, de forma a pagar sua dívida com a sociedade, evitando se tornar um ônus pesado para a República. Atualmente, estas idéias estão muito disseminadas entre criminalistas - a tendência de instituir penas alternativas vem se acentuando no mundo inteiro, não somente para aliviar o peso financeiro que o sistema carcerário convencional impõe ao Estado, mas, principalmente, por ser uma maneira mais eficaz de reintegrar os elementos desviados à sociedade.
Sei bem o que umas cervejas a mais podem fazer, mas deixemos que elas continuem fazendo, pois sem elas a vida não tem tanta graça assim.
Estimo-lhe melhoras e que em breve possa estar pedalando.
Sua percepção política está cada vez melhor, hein Miguel. Com pé engessado ou não, você é meu analista político favorito.
Oi, Vera, obrigado. Estou ainda desenferrujando. Torcer o tornozelo não ajudou muito, mas também não atrapalha.
Muito bom. Finalmente achei vida inteligente na blogueira geral.
E acho que as cervejinhas fazem parte da vida dos pensadores.
Muito de acordo com o que expôs sobre o encarceramento de seres humanos.
Espero, de verdade, que nunca expeirmentêmos, por acaso de um desgoverno qualquer, ver situações de presídios pirvatizados como ocorre nos EUA, aonde o encarceramento de seres humanos se torna rentável para alguns.
Li recentemente, acho que no blog do Azenha, sobre como cada vez mais se afirma que as prisões são escolas de violência e crime. Que as penas leves acabam gerando penas maiores, sem a menor taxa de reabilitação.
Essa história de pessoas ricas e poderosas indo para a cadeia, me remete muito à preconceito. Pois é normal que as classes "baixas", os negros, vão parar na cadeia. Já homens brancos, ricos, é impossível aceitar que sejam criminosos, que vão receber o mesmo tratamento e ser trancafiados "naquele lugar", em condições subhumanas.
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