Poucas pessoas sabem disso, mas a Inglaterra, por um breve periodo, 1649 a 1653, foi uma república. Os próprios ingleses, durante muito tempo, esforçaram-se por apagar esse fato histórico e anular o valor moral e político de sua principal personalidade. Refiro-me a Oliver Cromwell. Até hoje, o nome suscita ásperas discussões. Populista, ditador, republicano, hipócrita, puritano? Teria sido um grande homem, ou um homem desprezível?
Em 22 de maio de 1840, Thomas Carlyle, o mais brilhante ensaísta de sua época, participou de uma conferência na qual expressou uma opinião surpreendente sobre o nome mais perturbador da história inglesa: Cromwell foi um herói, afirmou. Um herói político.
A conferência era a sexta e última de uma série que o escritor vinha fazendo sobre o papel do herói na cultura ocidental. Carlyle não teve papas na língua. Faz um elogio, bastante ousado para uma época em que as paixões políticas eram incendiárias - e perigosas para quem as incitava -, de uma figura extremamente polêmica. Cromwell, o "rude", o "confuso" Cromwell, "que não sabia falar", que se exprimia com "selvagem profundeza", a "profundeza e a ternura de seus afetos rudes".
É um texto muito bonito, o de Carlyle. Romântico. Bastante confuso também, como se ele, para falar de Cromwell, conhecido por seus intrincados discursos, mesclando uma ardente paixão evangélica e anti-papal a um patriotismo místico, quisesse igualmente usar imagens e metáforas dúbias, complicadas, barrocas, mas sempre comoventes.
Imagino que quando um brasileiro contemporâneo, qualquer brasileiro, lê esse texto, a comparação é inevitável. Lula é nosso Cromwell. Nesse Brasil quase sem heróis, nesse Brasil vira-lata, com sua elite ferozmente autodepreciativa, para a qual o fracasso do país, não apenas em termos econômicos, mas sobretudo em termos políticos, em termos morais, é um imperativo, é uma necessidade, também temos um líder rude, odiado pelas elites e amado pelo povo, que não segue "a liturgia" do cargo que ocupa, e, no entanto, em sua alma, possui a verdadeira nobreza de um estadista. Assim era Cromwell, e Carlyle denuncia a mediocridade, o pensamento de lacaios, dos que almejam apenas enxergar, na pessoa de um rei, as suas vestes, as suas maneiras, ao invés de buscar a nobreza em suas ações, na consequência de seus atos! "O que nós dissemos do criado aplica-se ao cético. Ele não conhece um herói quando o vê. O criado espera encontrar mantos de púrpura, cetros dourados, guardas de corpo e floreados de trombetas; o cético do século XVIII busca as fórmulas regulares e respeitáveis".
Carlyle parece falar aos missivistas do jornal O Globo. Acusa-os de esperteza excessiva, paranóica. Procuram charlatães em toda parte, mas não conseguem reconhecer um homem digno de confiança. "Os ludibriados, na verdade, são muitos: mas de todos os ludibriados, não há nenhum tão fatalmente situado como aquele que vive sob o injustificado terror de ser ludibriado."
"Reconheçamos primeiro o que é verdadeiro, para depois discernirmos o que é falso", afirma o escritor, acrescentando que "só os sinceros podem reconhecer a sinceridade".
Cromwell, o mais admirado e o mais achincalhado dos reis ingleses. Aliás, nem chegou a ser um rei legalmente falando, mas um Lorde Protector, líder máximo do Parlamento, mais poderoso que muitos reis de verdade. Ele, que na guerra civil entre as forças do Parlamento e as forças do Rei, afirmou que, se viesse a lutar frente a frente com o próprio monarca, não hesitaria em matá-lo! E que, poucos anos depois, votou em favor da execução do Rei. E o Rei inglês foi executado!
Sempre tive admiração por esses ingleses que aliam um pragmatismo absoluto a uma paixão ardente. E que tomam decisões inusitadas e corajosas, como o rei que, excomungado pelo Papa, rasgou a Carta de Excomunhão na frente do povo e fundou uma nova religião na Inglaterra! Como os trabalhadores ingleses, com sua história de lutas terríveis, cujas modestas conquistas práticas se contrapunham à vitória esmagadora de sua dignidade! A classe trabalhadora inglesa, uma das mais vilipendiadas em seus primórdios, tornou-se, à mercê de imensas e dolorosas lutas, que em verdade não se iniciaram na revolução industrial, mas atravessaram séculos e séculos, tornou-se uma classe vitoriosa. A maior conquista do trabalhador britânico, afinal, não foi o salário decente, mas sobretudo a altivez política, o orgulho de olhar para sua própria história com o espírito satisfeito: sofremos, lutamos, vencemos!
Alguns anos depois de morto, quando a monarquia é restaurada na Inglaterra, o corpo de Cromwell é exumado, profanado, enforcado e decapitado, em praça pública, com o objetivo de humilhar seus milhões de seguidores, sobretudo as pessoas simples que aprenderam a amar um rei sem realeza, um rei que havia sido lavrador, um rei que, um dia, ao responder à acusação de um adversário no parlamento, de que promovia pessoas rudes a altos cargos militares, falara que "preferia mil vezes lutar ao lado de um soldado em trajes simples mas dotado de coragem e valor verdadeiros do que ao lado de um cavalheiro refinado que era apenas isso: um cavalheiro refinado".
Carlyle argumenta que o herói político, como homem, está sujeito a toda espécie de erros e confusões. As próprias mentiras que se atribuem a Cromwell, diz o escritor, deviam-se ao fato de que todos os partidos se enganaram com ele, porque cada um entendia Cromwell à sua maneira. Isso também me lembrou Lula: todos que procuraram dar-lhe um significado, não em relação ao que ele realmente era e o que veio a ser, mas com base no que eles pensavam que ele deveria ser, enganaram-se redondamente; e em vez de reconhecerem o erro próprio, lançam acusações sobre o personagem que lhes inspirou as fantasias.
Apenas o povo não se enganou com Lula, porque o povo revelou-se muito mais sensato e mais prático do que todos os politizados e intelectuais: o povo não queria o Lula dos sonhos, das utopias, e sim o Lula do cotidiano, das realizações, o Lula pragmático, o fanático pelo bom senso e pelo caminho mais seguro. Essa é a razão do sucesso de Lula, no Brasil e no exterior.
Cromwell teve, contudo, um final melancólico, e um pós-morte vergonhoso, porque cada vitória sua significou também mais ódio acumulado entre seus detratores. A profanação de seu corpo por parte dos monarquistas envergonha, sobretudo, os próprios autores daquele ato, assim como o calunioso artigo de César Benjamin serve apenas para envergonhar o próprio César Benjamin.
A frase de Brecht, de que "infeliz o povo que precisa de heróis", é mais uma dessas citações inócuas, desprovidas de sentido histórico, e o fato de hoje um dramaturgo revolucionário e comunista ser citado por intelectuais da direita apenas corrobora essa confusão. Todos os povos precisaram e precisam de heróis. Os pais são os heróis de seus próprios filhos. Nós somos os heróis de nós mesmos. E os heróis do povo, não nos esqueçamos, são respeitados por suas qualidades, mas amados, verdadeiramente amados, por seus defeitos.
14 de dezembro de 2009
Cromwell da Silva
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Excelente artigo, hoje o Oliver Cronwell está fincado em frente ao parlamento britânico, lembrando ao monarca as consequencias de seus atos.
Perfeita sua metáfora, é a construção da auto estima, pessoal e nacional, dar a consciência a uma nação, onde existe sentido de pertencimento e fins objetivos.
A uma elite aventureira que se porta como os portugueses fidalgos que vieram para sacar o que podiam, sem qualquer interesse em formar um país, odeiam estas passagens construtivas.
O Lula é surpreendente, ele encarna este amadurecimento de uma nação, e sua apróvação não é hoje 90% pela ação das corporações de comunicação que só fazem sabotar a imagem do presidente e de seus feitos.
É gente baixa, e mesmo o Lula fazendo um governo de centro-direita, não é um governo esquerdizante ou revolucionário, mas a tendência ao centro, e a ação de construção nacional é intolerável para a nossa velha elite conservadora.
Grande Miguel! Victor Hugo, no prefácio de um livro maravilhoso, "O Homem que ri", faz uma interessante distinção entre a Inglaterra e a França. Esta era essencialmente uma nação monarquista, enquanto que aquela, uma nação aristocrática. Talvez seja a explicação para a força da nobreza da terra de Shakespeare, que conseguiu, em pleno absolutismo europeu, decapitar um rei em praça pública. Mas daí, também, a força para colocar um outro no lugar. Esta nobreza era típica: só enxergava o próprio umbigo. Daí talvez a fúria que voltou a Crowmwell, que combateu a monarquia não para favorecer a nobreza, mas para beneficiar o povo inglês, que sempre fora muito maltratado. O livro de VH faz um retrato chocante da vida na ilha britânica uns três séculos antes do episódio de Carlos I. Qualquer semelhança dos lords com uma certa elite não é mera coincidência. Não é fácil um rico entrar no céu...
O Carlyle é de difícil compreensão às vezes. Como seu contemporâneo francês, Michelet, que aprecio bastante. Escrevem com o coração.
Obrigado pela bela postagem - tanto a reflexão como as analogias - e interessante é notar que quase 100 anos após a conspurcação do descanso de Cromwell pelo titular do trono britânico, Tiradentes, em 1992, foi igualmente enforcado, decapitado, esquartejado, tendo seus membros sido espalhados por ordem do trono português - d. maria I, a louca - , tudo em nome da resignação e escravização dos povos.
Até hoje os ingleses tem pavor do Cromwell, há um filme recente, chamado, se não me engano, Kill of King, que em português ficou Matar o Rei; quem faz o papel de Cromwell é Tim Roth, que se apresenta como um sujeito desprezível, desumano e de inteligência limitada, sempre me perguntei por que os ingleses tem tanta raiva de Cromwell, figura histórica deveras interessante, talvez seu raciocínio responda a questão.
Abs!
cappacete, é porque cromwell representa o antimonarquismo.
salve, miguel,
porreta a análise de lula como representante do novo nesse país e estimulador de nossa nação, coisa que a elítica retrógrada abomina.
sobre o cromwel, um livro fantástico é o do historiador inglês christopher hill - o eleito de deus: oliver cromwell e a revolução inglesa - cia das letras. vale a pena adquirir. pelo seu texto, o amigo deve está familiarizado com o assunto.
abçs
carlos anselmo-fort-ce
Miguel e leitores, muito cuidado com este tipo de comparações. Eu morei um ano na Irlanda e ódio que a monarquia inglesa pode ter, ou teve, do Cromwell não é nada pero do que os irlandeses sentem por ele. Este indivíduo foi o maior exterminador do povo irlandês, um sanguinário dos mais cruéis que já pisaram em solo celta. Ninguém escapava de suas atrocidades, velhos, mulheres e crianças inclusive...
Abraço e parabéns pelo blog!
Hernan, eu estou ligado no ódio que os irlandeses têm do Cromwell. Mas há relatos de que as atrocidades foram cometidas depois que ele saiu de lá.
De qualquer forma, estou comparando simbologias e não vida real, até porque a época, as circunstâncias e a sociedade de Cromwell são totalmente distintas do que vivemos no Brasil. É apenas uma crônica. A comparação não tem nenhuma pretensão científica maior.
olha essa aqui. Reviravolva do caso Batistti. O ministro Marco Aurélio reage à farsa.
http://josecarloslima.blogspot.com/2009/12/por-flavio-e.html
Lula é um republicano.
Exemplos não faltam: Pré-Sal, PNBL, e a Confecom.
A Direita é anti-republicana. É adepta do liberalismo, um sinônimo de corrupção há um bom tempo.
Quando se valorizam os individuos e seus egoísmos, não há espaço para o republicanismo. Onde tudo é privado (ou privatizado), qual o espaço que sobra para o Público?
No caso da Confecom, Lula teve a coragem de convocar um debate publicamente sobre um assunto que sempre fora discutido em bastidores.
Esse segundo mandato de Luis Inácio da Silva é um renascimento da República - o regime de governo do bem-comum, do público acima do privado.
Ser republicano, em tempos de privatizações e mercadismos, é ser de esquerda.
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