Acho que essa reclamação é, por um lado, injusta. Os jornalões existem, como instituição, há mais de duzentos anos, e sua influência, por isso mesmo, penetrou profundamente no âmago da República. Tiveram sua importância, mas igualmente já fizeram muito mal à democracia brasileira. Todos conhecem a máxima de que, para que nasça o novo, é preciso destruir o velho. A blogosfera, portanto, quando ataca a grande mídia, segue inconscientemente as leis naturais da sobrevivência. Ela quer nascer, quer crescer, e para isso sente que é preciso enfraquecer os dinossauros.
Nas artes marciais, usa-se a força do adversário contra o próprio. Um lutador de judô, por exemplo, aprende a usar a arremetida do inimigo para erguê-lo e enviá-lo para longe. Esses são conhecimentos antigos, enraizados em nosso subconsciente, e a blogosfera apenas obedece a seus instintos.
E os instintos são a força mais poderosa do homem. Eles são a única virtude genuinamente democrática, visto que não é preciso ser bonito, culto, maduro ou forte para tê-los em si. Os instintos remetem à inteligência biológica, àquela que o homem desenvolveu em milhões de anos, e que é a mesma inteligência que nos fez possuir olhos que vêem, ouvidos que escutam e lábios que beijam. Quando agimos movidos por nossas paixões, podemos até bater a cabeça contra algum muro, mas estamos de posse de uma quantidade de hormônios, enzimas e energia vital incomparável; e como tudo na natureza tem uma razão de ser, essas forças servem à meta maior do ser, que não apenas é sobreviver, mas também se tornar mais forte. A blogosfera, se me permitem o pernosticismo filosófico, é também um ser espinozista, cuja essência é perseverar em si mesma. A blogosfera quer se afirmar como instituição, mas para isso precisa derrubar o muro que a grande mídia construiu entre a verdade e a consciência das pessoas.
Isso fica muito claro quando conversamos com uma pessoa que se informa exclusivamente pela imprensa convencional. Parece alguém preso à Matrix, cujas idéias sobre a realidade se fundamentam sobre informações falsas e distorcidas. Não adianta nem a pessoa ser culta, porque o importante, neste caso, é possuir dados confiáveis sobre a situação em seu próprio país. Ninguém aprenderá sobre política brasileira lendo Faulkner. Ironicamente às vezes ocorre o contrário: pessoas cultas endurecem seu ego e têm dificuldade para rever suas opiniões. Tornam-se arrogantes, vaidosas e tradicionalistas. Apaixonam-se pela Matrix. A própria grande imprensa joga maquiavelicamente com a alta cultura prezada pelas elites: quando nos cadernos culturais festejam Habermas, fazendo cosquinhas no orgulho de alguns leitores, torna-os dóceis para as manipulações toscas da seção política.
Vocês devem se lembrar como, no início da blogosfera no Brasil, assistimos a uma truculência inaudita por parte de alguns internautas por causa de singelos erros de concordância ou sintaxe. Até hoje, blogueiros de direita (que chancelam e defendem a grande mídia) mantém todos seus canhões armados contra qualquer deslize gramatical. Por quê? Puro amor à lingua? Não creio. É o instinto de preservação de espaços de poder. O poder que a mídia, com seu sistema rígido e fechado de seleção, mantinha sob controle estrito de um reduzido grupo social. Só eles podiam falar. Só eles podiam opinar. A opinião pública era monopólio deles. Eles tinham o monopólio de fazer o blend entre colunistas mais à esquerda com outros mais conservadores, de forma a atingir o equilíbrio que eles consideravam ideal.
Mas, como dizia Dylan, the times they´re achanging. A invenção da internet representou um golpe fatal no Leviatã midiático. Algum neo-hippie da Califórnia, como um novo Ulisses, conseguiu penetrar silenciosamente na caverna do Ciclope e furar-lhe o único olho com a lança da tecnologia.
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A questão não é nem achar que o mundo será muito melhor com o advento da internet e a derrocada dos jornalões. Não falamos aqui de felicidade. Sabe-se que o período mais feliz de Roma aconteceu durante o totalitarismo absoluto de Augusto. No entanto, não havia mais a liberdade nem a democracia das quais a república romana desfrutou por mais de três séculos, e que, apesar das crises constantes, consistiram na verdadeira força desse povo. Da mesma forma, quando falamos no fim da imprensa convencional enquanto órgão monopolizador da opinião pública, não pensamos num imenso mar de rosas. Falamos aqui de liberdade. Da possibilidade de milhões de brasileiros participarem, efetivamente, dos grandes debates nacionais, e não apenas se limitarem a ouvir ou ler a opinião de meia dúzia de empregados do Sr.Marinho ou do Sr.Frias como se ela representasse os anseios de toda uma população.
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Por outro lado, é necessário sim que a blogosfera, simultaneamente à sua luta contra o ciclope midiático, inicie uma agenda própria, aprendendo a fazer um jornalismo (se é que daremos o nome de "jornalismo" a nosso trabalho) autônomo. Nunca foi tão fácil como hoje. As instituições todas agora publicam seus dados diretamente na web. Podemos escrever sobre inflação, renda, exportações, desemprego, consultando as fontes primárias. As autoridades caminham para ter seus próprios blogs, onde poderão se comunicar diretamente com seus eleitores e governados. As empresas também vão nesse caminho, divulgando seus balanços e comunicados na rede. Modestamente, eu dou minha contribuição, analisando periodicamente dados sobre o comércio exterior e preparando extensas e completas estatísticas.
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Nunca me sinto bem falando em "luta contra a mídia". Sou um cara tranquilo e conciliador, que preferiria mil vezes tocar o meu blog pacificamente, sem me meter em nenhuma guerrinha política. Mas, como dizia Celso Furtado, a nossa liberdade de ação só existe em meio às circunstâncias em que nos inserimos, e, no momento, a mídia exerce um papel fortemente negativo e desinformador, que traz prejuízos incalculáveis à sociedade brasileira.
Por exemplo, ontem, no Globo, a manchetona de capa estampava:
Material de construção sobe no Rio, apesar de IPI menor
E a sub-manchete:
Alta de preços chegou a quase 30% desde que benefício foi aprovado
Ainda na capa do jornal, a matéria dizia:
Desde que o governo Lula prorrogou pela primeira vez o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) reduzido para materiais de construção, em junho último, já houve alta de quase 30% nesse setor no mercado do Rio.
E remetia à matéria principal do caderno de Economia, que inicia assim:
Apesar da prorrogação do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) reduzido para materiais de construção, os preços dos produtos subiram até 30% nos últimos meses.
Isso depois da seguinte manchete e submanchete (no caderno de Economia): Sem alívio nos preços / Mesmo com prorrogação de IPI menor, materiais de construção sobem até 30%.
Me desculpem. Poderia ser uma bela matéria, com objetivos nobres, de denunciar alguns aumentos exagerados, mas pontuais, dentre os produtos contemplados pela redução ou isenção do IPI. Não é o caso. A impressão que se passa ao leitor leigo em economia, ou seja, a 99% dos leitores do Globo, é que há aumento do material de construção. Quando lemos com mais atenção a matéria, ou seja, quando passamos nosso olho clínico, constatamos que o tal aumento de 30% (que consta também na sub-manchete) foi encontrado apenas em UM produto, de uma lista de 19 produtos pesquisados pelo Globo. Trata-se da Ducha higiênica Forusi. E isso apenas em UMA loja, no Rio de Janeiro. A Casa & Construção. Ou seja, o repórter do Globo encontrou aumento de 29,8% em UM produto, de uma marca específica, em uma loja específica, e daí tascou uma manchete sensacionalista dizendo que MATERIAIS DE CONSTRUÇÃO SOBEM ATÉ 30%.
É muita mentira, que não leva em conta o mais rudimentar bom senso, o de que o mesmo produto é vendido com preços diferentes em lojas diferentes, em regiões diferentes, e de que existe uma enorme gama de produtos similares, mas de outras marcas, que registraram inclusive redução de preços.
No dia seguinte, o Ministério da Fazenda respondeu exatamente isso que falei, que a pesquisa não referia a médias nacionais, não considerava a diferença entre as regiões, e focava num pequeno grupo de produtos que não necessariamente representavam o vasto conjunto de materiais de construção. Mas a resposta da Fazenda saiu em notinha escondida na página 30, sem nenhuma chamada na capa. Título da nota: "Fazenda: material de construção não subiu".
Como é possível que o Globo tenha a cara de pau de converter esse aumento de 30%, detectado apenas em um 1 produto, ou seja, apenas na Ducha higiênica Forusi, e em somente 1 loja, na Casa & Construção, uma loja conhecidamente careira da cidade, numa manchete que sugere um forte aumento generalizado nos preços dos materiais de construção? Como o Globo pode tratar de forma tão irresponsável um tema que envolve centenas de bilhões de dólares e mexe profundamente com a vida econômica do país? O Globo vendeu um pessimismo que não existe, contou uma mentira, e, mais uma vez, pode ter influenciado algum empresário a não fazer um investimento, a não gerar um emprego.
No auge da crise econômica, ou melhor, da "marolinha" que atingiu o Brasil, eu citei trecho de um livro de Keynes, no qual ele denuncia, expressamente, a influência negativa que setores da mídia podem causar ao país, por conta de uma postura política de oposição ao governos tidos como "populares". Ele se referia à mídia americana e ao presidente Roosevelt.
É por essas e outras que a blogosfera precisa continuar fazendo um duro combate contra a mídia. Porque a mídia mente, descaradamente, e parece se afastar cada vez mais de qualquer compromisso não apenas com a verdade dos fatos, mas com a própria verossimilhança. Agindo assim, ela atua contra o desenvolvimento nacional, que precisa de otimismo, precisa de autoconfiança. Agindo assim, ela cava um buraco cada vez mais fundo para si mesma. Virá o dia que alguém a chutará nas costas, fazendo-a cair exatamente na cratera que produziu. Oxalá esse dia não demore.
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Eu queria ainda comentar um artigo de Demétrio Magnoli, intitulado "Uma estátua equestre para Lula", a coisa mais ridícula que li em muito tempo. Diz que o filme foi feito para "domesticar o PT". Leiam o trecho inicial:
Tirando a espuma, o filme "Lula, o filho do Brasil" não passa de mais uma versão da fábula do indivíduo virtuoso que, arrostando a adversidade extrema, luta, persevera e triunfa montado apenas nos seus próprios esforços. Como cada um encontra aquilo que procura, o fiel extrai dessa fábula uma lição singela sobre a intervenção misteriosa da providência, enquanto o doutrinário liberal nela encontra o argumento clássico em defesa do princípio do mérito individual. Nenhuma das interpretações amolda-se ao pensamento de esquerda, que se articula ao redor das noções de circunstância histórica e sujeito social. "Lula, o filho do Brasil" é uma narrativa avessa ao programa do PT.
Pelo amor de Deus, o cara é uma mula! Resumir o pensamento de esquerda a "noções de circunstância histórica e sujeito social" é algo tão grotesco e infantil que só posso sentir pena de um sujeito desse. Oxalá esses reacionários permaneçam ad eternum chafurdando em sua própria debilidade mental. Como eu desejo, de todo o coração, que eles encerrem sua carreira no inferno mesmo, não me esforçarei muito para adverti-los do abismo moral e eleitoral que os espera logo à frente.
Aí ele envereda por uma comparação esdrúxula, entre Lula e Luíz XIV, mas aí é demais para mim. Meu estômago não aguenta lidar com algo tão estúpido. O artigo é inteiramente assim, um amontoado de absurdos que chegam a ser inocentes de tão mal ajambrados. Nem iria comentá-lo se não encontrasse nele um ponto que realmente me chamou a atenção: ele cita o repugnante artigo de César Benjamin, da seguinte forma:
Indignado com a mistificação cinematográfica dos Barreto, Cesar Benjamin relatou, em artigo publicado pela Folha de São Paulo, que Lula gabou-se durante a campanha presidencial de 1994 de ter tentado currar um "menino do MEP", preso político com quem dividiu uma cela no Deops.
Só isso. Não cita os desmentidos cabais dos presos que compartilharam a cela de Lula. Não cita o próprio "menino do MEP", que também negou veementemente a história. Detalhe: o "menino do MEP" tinha 30 anos quando ficou preso junto a Lula, que tinha uns 35 na época. Não cita a denúncia do próprio ombudsman da Folha. Não, Magnoli chancela a calúnia de Benjamin. Defende-a. Agora vemos para que serviu o artigo de Benjamin, para que outros possam reproduzir a calúnia acriticamente, sem nem ao menos se comprometer com as palavras, já que essas pertencem à Benjamin e à Folha. E assim se dissemina uma calúnia que atenta gravemente contra a honra do presidente da república. E daí. Dane-se a honra do presidente. É o Lula, não? Um paraíba que não merece honra nenhuma...
Vemos também a integridade de Magnoli, que aceita o uso de uma inominável calúnia simplesmente por que Benjamin estava "indignado com a mistificação cinematográfica dos Barreto".
Termina citando Golbery, que disse que Lula destruiria a esquerda. Bem, pelo menos ele revelou quem admira: o homem que ajudou a articular e a sustentar a ditadura. Como Magnoli certamente é daqueles que acha que a esquerda no Brasil é representada por Roberto Freire e José Serra, torço para que a profecia de Golbery se realize o mais rápido possível. De preferência em 2010.
Pô Miguel, perder tempo e seu talento literário discorrendo sobre essa excrescência do Dem Magnoli é ruim hein?...
caro henry, o artigo do magnoli, é reproduzido em vários jornalões ao mesmo tempo. discorri sobre ele porque ele é uma prova viva da desonestidade intelectual dos pensadores midiáticos.
...talvez seja esse a mais nobre função da blogosfera: refletir sobre a mídia...o tempo da crítica apenas começou...produzir seu próprio material noticioso é uma questão de escolha de cada blogueiro...
Cara,
Tu é o cara. Dá gosto de ler o que vc escreve. Parabéns.
Candango
Dá prá contar os neurônios que existem na cabeça do Demétrio.
"Hoje, com a internet e seus blogueiros, há uma inflação de diretores de consciência" (Beluzzo, na Carta Capital)
Isto é óbvio. Com a internet o leitor deixou de ser mero consumidor passivo de notícias para produzir, também, contéudos através de celular, blog...
Uma maravilha.
Excelente o seu texto!
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