3 de junho de 2007
Esclarecendo alguns pontos
O meu post anterior gerou alguma confusão. Não faço defesa de corporação industrial americana. Digo que não sou contra o MacDonalds. Sei que a concentração dos grandes grupos industriais de alimentação pode ser um problema. Mas os grupos são transnacionais, ou são suíços, ingleses, sul-americanos, israelenses, não necessariamente americanos. Simplesmente não atribuo importância política ao McDonalds.
Outra, um aí me acusou de escrever para a direita. Eu não escrevo nem para esquerda nem para direita. Escrevo para quem tiver paciência de me ler. Procuro ser original na minha forma de pensar, conforme ensinava Sêneca ao Lucílio, e não ficar papagaiando lugares-comuns ideológicos. Se eventualmente um leitor de direita gosta do que escrevo, isso não é necessariamente ruim. Pode ser bom.
Acredito que a esquerda deve atualizar urgentemente o seu discurso e suas idéias, se quiser sobreviver nos próximos anos. A direita tem muito poder e dinheiro, e nunca economiza quando se trata de comprar cérebros que a defendam. O trunfo da esquerda é a criatividade, a originalidade. Para isso, precisa ter a mente aberta, escutar opiniões polêmicas. Refinar suas metas. Fortificar suas idéias com debates sinceros.
Sobre o Hugo Chávez, fiz minhas críticas aqui, mas não significa que eu apóie a direita venezuelana. Pelo contrário. Faça uma pesquisa Miguel do Rosário e Hugo Chávez e verá a quantidade de artigos que escrevi defendendo Chávez contra o golpe e contra as violências midiáticas. O golpe de estado que aconteceu na Venezuela, em 2002, foi uma vergonha para toda América Latina. A cobertura midiática brasileira sobre o fenômeno Chávez é uma vergonha. O Eduardo Guimarães está certíssimo na sua revolta contra isso. Concordo com ele em gênero, número e grau.
O que não podemos, no entanto, é endeusar ninguém. Incomoda-me essa mania agora de tratar Chávez como o modelo máximo de um líder de esquerda. Eu não acho e pronto. Entendo que ele se tornou o que é por causa das condições específicas da Venezuela. E, dentro da história da Venezuela e mesmo da América Latina, ele tem uma tremenda importância histórica. Mas estou aqui falando de resultados econômicos, de política externa, de relações geopolíticas, de risco militar.
A Venezuela é um país com graves problemas econômicos estruturais. Problemas econômicos estruturais não se resolvem com discursos políticos. O Brasil, por exemplo, resolveu parte de seus problemas estruturais com Getúlio Vargas, um líder hoje reverenciado pela esquerda. Mas Vargas foi um anti-comunista ferrenho, pelo menos no seu primeiro mandato, ditatorial, que durou de 1930 a 1945. No segundo mandato, de 1950 a 1954, recebeu apoio dos comunistas que admitiram a importância de Vargas para o processo de autonomia econômica e desenvolvimento industrial do país.
Quando analisamos a questão mais a fundo, saimos um pouco dessa histeria ideológica de esquerda e direita e observamos, além da moral, os benefícios e prejuízos que tal líder político trouxe a seu país. Ás vezes, ou quase sempre, a herança é ambígua, com boas e más consequências.
Chávez é uma realidade política latino-americana. É resultado de séculos de opressão. Mas eu não acho que um estadista sério deva dizer bravatas militares contra o império americano. Quem ganha com isso? A oposição chavista é podre. Corrupta, reacionária, racista. Mas Chávez também não é fácil. Ele provoca. Junto com os ricos que fugiram da Venezuela, fugiram também empregos e tecnologia. É a mesma coisa que aconteceu em muitos países da África, e foi um desastre. Surgiram lideranças populares, socialistas, que expulsaram todos os brancos. Desapropriaram fazendas e ocuparam empresas. Poucos anos depois, a economia destes países estava completamente arruinada, devastada. O fator tecnologia acumulada foi esquecido. Os brancos estavam associados à colonização, mas eles detinham a tecnologia e um grau de conhecimento importante para a estabilidade e o progresso econômico. Não deveriam ter sido expulsos, mas integrados. Hoje, países que tinham boas economias, como Costa do Marfim, Zimbábue e Serra Leoa, afundam num lodaçal de miséria e violência. Pior: a miséria horrendo gerou uma espiral de auto-destruição inaudita, provocando guerras civis caracterizadas por crueldades desumanas.
Reiterando: não sou contra McDonalds. Seria hipócrita. Tem gente que é contra o McDonalds porque é americano, mas escuta jazz. Outros são contra porque se trata de uma “corporação”, mas escova os dentes com Colgate. Por aí vai. A esquerda tem que se cuidar para não se tornar uma caricatura de si mesma.
Não façamos confusão. Sou contra algumas corporações militares, a Halliburton, por exemplo, que, a meu ver, constituiu o principal lobby pró-guerra no Iraque. Tanto é que hoje a Halliburton fatura bilhões de dólares, dentre outros mil serviços, re-construindo edifícios e campos de petróleo, por sua vez regularmente destruídos por rebeldes.
Tem a questão do socialismo. Ele morreu? O capitalismo triunfante agora é a solução única para os problemas da humanidade? Acho que a maneira de formular a questão é capcciosa. Temos que voltar a ler os filósofos da linguagem. Tenho também uma visão original destes problemas. Para mim, o capitalismo se apropriou da história.
A maior deficiência do marxismo foi não abordar devidamente as questões culturais, linguísticas e psicológicas. Existem fatores psicológicos importantíssimos que se deve considerar quando analisamos antropologicamente a relação do homem e suas ideologias. Tem gente que é de direita porque tem uma personalidade egocêntrica, com um excesso (não necessariamente negativo) de auto-confiança. Confia na história e confia em si mesmo, portanto não vê o porquê deveríamos revirar o mundo de cabeça para baixo com uma revolução, e também não vê porque o Estado deveria ajudar o cidadão, visto que ele mesmo não sente necessidade de ajuda, justamente em virtude de sua auto-confiança. O problema deste homem de direita é que ele é cego para o coletivo, para o outro, que não tem a mesma auto-confiança que ele, ou que não teve a oportunidade de desenvolver esta auto-confiança. E esquece que este outro, o marginal, acaba se voltando contra a sociedade e atrapalhando os negócios…
O homem de esquerda, muitas vezes, é uma pessoa insegura, um tanto confusa ideologicamente, insatisfeito com o mundo e mais ainda consigo mesmo. Mas tem grandes qualidades no que se refere a sua preocupação com o país, com as outras pessoas, com o coletivo. Em países pobres, o pensamento de esquerda é importante, é progressista, porque o país precisa superar a pobreza antes de iniciar um processo virtuoso de desenvolvimento econômico.
Como ia dizendo,o capitalismo se apropriou da história e Marx comeu mosca nesse ponto. Marx começou a ver isso, mas não tirou as conclusões necessárias, ou não esclareceu bem a questão. Explico melhor. O capitalismo não é uma ideologia. O capitalismo é história. O Marx foi bem até aí, ao analisar o nascimento da economia social, da progressiva evolução das formas de comércio e das relações trabalhistas. Mas aí, Marx cometeu o erro crasso, a suprema arrogância, tipicamente germânica, de querer solapar 20 mil anos de economia social com um novo modelo economico. O novo tipo de organização, chamado socialismo científico, tinha muitos pontos interessantes, mas não possuia a coerência e o vigor que somente o tempo, a experiência e uma lenta evolução histórica podem conferir a qualquer tipo de organização social. O socialismo foi uma contribuição extraordinária, uma obra de gênio, mas para ser incorporado, como o foi nos países do norte da europa, gradualmente às economias dos países.
A questão da propriedade privada, por exemplo. Porque o socialismo foi contra a propriedade privada? Quando as sociedades inventaram as democracias e os sistemas republicanos, contra os sistemas monarquicos, imperiais ou ditatoriais, a propriedade surge como uma grande conquista do indivíduo. Claro, a grande propriedade, em muitos casos, constitui um mal, na medida em que obstrui o desenvolvimento econômico. Mas uma pequena ou média propriedade, representa uma conquista do indivíduo. Enquanto a esquerda for contra isso, ela sempre perderá eleições na proporção exata em que a população for se tornando pequena e média proprietária de seus imóveis. Por isso, a esquerda foi praticamente eliminada dos Estados Unidos. Por isso, a esquerda vem perdendo terreno na Europa e tem tanta dificuldade de se impor junto às classes agrárias brasileiras. É muito cômodo simplesmente dizer que os agricultores são reacionários. Não é bem assim. A esquerda precisa indagar fundo as origens da aversão dos agricultures.
Quais são os princípios da esquerda? O que, realmente, a diferencia da direita? Até que ponto, não temos fatores psicológicos ou apenas confusão ideológica por trás dessas diferenças? Até que ponto, essas diferenças não seriam específicas em cada país?
Mesmo as grandes propriedades, desde que produtivas, pagadoras de impostos e pagando o justo para seus empregados, não constituem um problema. Hoje, no Brasil, ainda temos quem pense que uma grande fazenda mecanizada seja um mal porque desemprega gente. Uma vez eu debati com um executivo inclinado à direita, que tentou menosprezar o programa de biodiesel do Lula dizendo que não geraria tanto emprego, porque a maior parte seria produzido em grandes fazendas mecanizadas de soja ou cana-de-açúcar. Eu respondi o seguinte: esse negócio de achar que a mecanização só tira empregos é um pensamento muitas vezes de gente que não sabe a merda de emprego que é colher cana. Enquanto isso, com a mecanização, se criam excelentes empregos nas indústrias que fabricam máquinas, nas lojas que vendem as máquinas, nos cursos que ensinam a conduzir e consertar as máquinas, sem contar o setor de fertilizantes, que também cresce muito nas fazendas mecanizadas. Não queremos ter um país mais industrializado? Então temos que mecanizar também nossas fazendas. A melhor solução nunca é nadar contra a corrente, mas sim aproveitar da melhor forma possível o que as circunstâncias históricas nos oferecem. Eis um típico pensamento de Celso Furtado. Vale incentivar a formação de cooperativas e criar programas, como a Petrobrás vem fazendo, para comprar matéria-primas de pequenos e médios produtores. Vale criar formas modernas de proteger os agricultores das volatilidades excessivas do mercado, como fazem os EUA, a Europa e o Japão. Talvez não seja interessante ou conveniente, fazer da mesma forma que eles, exagerada, mas as atividades primárias precisam, de fato, receber um tratamento diferenciado.
Não se trata, portanto, de impor o socialismo, mas de incorporar fórmulas socialistas, as que deram certo, às economias modernas. O capitalismo inglês do século XVIII era bárbaro e o resultado era a miséria da sociedade. Depois que inventaram o salário mínimo, o limite de horas de trabalho, a aposentadoria, depois que os sindicatos foram criados e conseguiram arrancar grandes concessões dos patrões, a Inglaterra ficou muito mais rica, mais feliz, mais estável.
A direita brasileira precisa entender que a melhora da situação dos pobres constitui a única forma de termos um crescimento econômico sustentável, firme, duradouro, e também de melhorarmos, no longo prazo, os problemas de segurança pública.
Continuamos depois esse papo.
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Eu realmente sou ideologicamente confuso. Como vim do interior, sem pai, mãe, parentes importantes e sem nenhum dinheiro no bolso, depositei minhas esperanças em sujeito barbudo que discursava em cima de um caminhão do sindicato dos trabalhadores da minha cidadeno início dos anos 80 e simpatizei de cara com o tal sujeito e o defendo até hoje. Não sei o que pensar sobre um monte de coisas mas sei que esse mundo vai ser muito cruel com meus netos. Isso me faz defender o Chávez e contra os "esganiçados". Mas não me dê importância. Me alegra entrar na internet(banda larga) e acessar blogs como o seu. Foi só uma discordância. Aprendo muito com você. Um abraço.
O Luiz Carlos Azenha postou uns vídeos que ele produziu em Cuba.
Os vídeos mostram casarões antigos precisando de reforma,
se falta dinheiro para comprar prego, a ausência de criminalidade, analfabetismo e crise na saúde
talvez nem seja a falta de dinheiro, mas o embargo dos EUA contra Cuba, que proibe que adquira produtos básicos tais como pregos, tinta...
eu diria que se trataria de propaganda contra Cuba e seu regime, caso o autor dos vídeos não fosse Luiz Carlos Azenha
sim,
a vida dos Cubanos é mais digna do que a de milhõe de brasileiros que vivem à mercê da violência, do analfabetismo e sem assistência médica
no entanto, perguntei-me porque, afinal de contas, o Estado cubano tem que se dono até de sorveteria
gostaria de ir a Cuba para conhecer, pessoalmente, pois assim não estaria sendo injusto nas minhas colocações
como se percebe, estou escrevendo isso baseado em vídeos
privatizar as sorveterias não seria de todo um mal para Cuba nem uma ameaça ao regime, acho que não
para mim os sócios da sociedade ( mais especificamente de uma cidade-estado ( são os seres os animais ( dos vírus aos dinossauros ), os seres humanos e as pessoas jurídicas ( das Igrejas aos supermercados, pasando pelas indústiras )
fiquei triste ao ver a imagem daquela fila quilométrica para comprar um simples sorvete
porque não passar as sorveterias, senão em propriedade individual, pelo menos em empresas de todo o povo, de toda a cidade, ou de um grupo de pessoas, ou numa empresa aberta a outros sócios, ao invés de sorveteria estatal?
acho isso um exagero, concordo com você
eu quis dizer:
se falta dinheiro para comprar prego, há ausência de criminalidade, analfabetismo e crise na saúde
gostei muito do artigo. me identifiquei com as reflexões. Nos dias de hoje encontrar ressonância de entendimento é um achado importante, sobretudo a respeito de temas polêmicos como este. O divisor de águas é claro. O que presenciamos são subprodutos de uma crise de percepção. Uma crise civilizacional. Entender as nuances desta crise significa amplliação da visão de mundo.
grande abraço, continuarei a acompanhar o seu trabalho
Miguel, seus três últimos posts são primorosos.
Miguel, novamente concordo com tudo que você disse, especialmente no que diz respeito ao atraso de certas alas da dita esquerda e sobre os exageros e erros do Chávez e a insana idolatria que alguns tem por ele (como disse um pensador na revista Fórum, cujo nome não me lembro agora, "a grama do vizinho parece sempre mais verde").
Sobre o McDonald's sou totalmente contra, não por ser estadunidense, mas sim por vender um lixo venenoso para o organismo travestido de "alimento" (conforme demonstrou claramente o autor do documentário "Super Size Me").
Não se trata de condenar o consumo de gororobas maléficas ao organismo (se fosse assim, teríamos que condenar a caipirinha e a cerveja também), mas sim quem as vende como se fosse um substituto saudável às refeições...
Abraços e continue na sua luta!
oi lux, obrigado por seus comentarios e tudo o mais. quanto ao mac, a critica sua é gastronomica, talvez tb publicitaria, e nao politica. tb poderiamos condenar a coxinha de galinha e, sobretudo, esse ketchup nojento que se usa em alguns botequins e restaurantes. abraço
Exato, Miguel, mas a diferença é que ninguém vende a coxinha de galinha ou o catchup nojentos como se fossem perfeitos e saudáveis substitutos para refeições, como faz o McDonald's...
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