1 de junho de 2007

Por que Chávez não daria certo no Brasil



De vez em quando ouço alguém lamentar não termos um Hugo Chávez no Brasil. Não é de hoje que escuto essa melodia, algo melancólica, de termos uma esquerda, encarnada no Lula, tão light, tão reformista, tão dócil às violências de nossa mídia golpista e nossas elites reacionárias.

Não concordo. Para mim, o fenômeno Chávez é uma coisa lá dos venezuelanos. Aqui não teria nada a ver. Para exercer bem o meu ofício, estudei história e economia e, dentre outras coisas, aprendi que a realidade econômica de cada país determina, não totalmente, mas em grande parte a sua face cultural e política. Os Estados Unidos não inventariam o blues, o rock, o cinemão industrial, não geraria autores como Faulkner, Bukoswki ou Heminghay, não tivesse se tornado a potência econômica que se tornou a partir da I Guerra e, mais ainda, depois da II Guerra. Assim como a Toscana não geraria Dante Alighieri, Da Vinci, Michelangelo e Maquiavel não fosse um dos principais centros econômicos do mundo em meados do século XV.

Assim como hoje, São Paulo, não seria o poderoso centro de cultura, com tanta literatura, teatro e cinema, e suas boemias consequentes, não fosse o lugar mais rico do país.

Não falo de dinheiro no bolso dos artistas (coisa sempre rara, mesmo nos tempos das vacas gordas), mas de ambiente econômico vibrante, excitação no ar, uma atmosfera de frivolidade culta, que sempre caracteriza as épocas mais criativas.

Ou seja, para tudo na vida é preciso dinheiro. Até para ser Hugo Chávez.

Sempre que escuto essa ladainha, que volta e meia ecoa nas esquerdas, não somente brasileiras, mas de todo mundo, de que Lula não é Hugo Chávez, sinto-me um pouco agastado. Por diversas razões. Chávez pode ser bom lá para Venezuela. E mesmo assim, sou bastante crítico do Chávez. Acho seu estilo caudilho demais. Seus discursos violentos contra os EUA me parecem extremamente irresponsáveis, tipo cutucar onça com vara curta. Contra-producentes. Há aspectos militaristas, autoritários, na pessoa de Chávez que não me agradam, de forma alguma. Além disso, ele conseguiu expulsar ou conduzir à falência grande parte das companhias nacionais, prejudicando o processo de industrialização indispensável a uma verdadeira autonomia econômica.

Mas, voltando ao dinheiro, ele o tem. Cerca de 70% da receita do governo venezuelano vêm do petróleo. Essa é razão de existir um Hugo Chávez na Venezuela. E também a razão de não haver um Hugo Chávez no Brasil. O poder político de Chávez só é possível porque o Executivo venezuelano, ou seja, o governo federal, possui um poder econômico incomparável com qualquer outro setor nacional. A situação é totalmente diversa do que ocorre no Brasil.

Comparativamente, o Executivo brasileiro é pobre em relação ao poder dos grupos econômicos nacionais, sejam eles os setores agropecuários, industriais, financeiros ou varejistas. A Venezuela não tem uma indústria nacional, ou seja, não têm industriais. O Brasil tem. A Venezuela não tem grandes agropecuaristas nacionais (não tanto como o Brasil). O Brasil tem. A Venezuela não tem grandes banqueiros nacionais. O Brasil tem. Por fim, é infinitamente mais fácil, tendo o controle do Executivo e da receita do petróleo, ganhar votos de uma população de 25.7 milhões do que, num país com setores nacionais poderosíssimos, com interesses divergentes, eventualmente contrários aos interesses do governo, ganhar votos de uma população de 189 milhões.

De resto, se analisarmos, friamente, os resultados econômicos dos governos Chávez e Lula, o Brasil tem dado de 10 a zero. O PIB da Venezuela está crescendo mais que o Brasil? Tá bom, mas com uma absurda taxa de inflação, o que sabemos muito bem o que significa: aumento da desigualdade de renda. Além do mais, crescimento de PIB não significa muito coisa se não há, efetivamente, um processo de acúmulo de tecnologia e crescimento de produção industrial. No Brasil, segundo estudo da Fundaçao Getulio Vargas divulgado hoje (01/de junho de 2007), a indústria nacional alcançou os melhores resultados dos últimos 20 anos em vendas no mercado doméstico, enquanto a Venezuela continua apenas faturando em cima dos preços em alta do petróleo.

Um dos graves problemas da esquerda, brasileira e mundial, é se deixar levar, muitas vezes, mais por discursos do que por resultados. Lula não faz discursos anti-imperialistas contra os EUA? Lula recebe Bush e aperta sua mão? Acho excelente. Lula sabe que temos 189 milhões de bocas para alimentar e não é para agradar um punhado de esquerdistas de classe média que deveríamos desempregar os milhões de trabalhadores que dependem de vendas de produtos brasileiros para consumidores americanos.

Lula sabe que não poderia fazer como Chávez e provocar o desmantelamento do setor privado nacional, pregando um pseudo-socialismo, não tendo o Estado brasileiro condições de pagar salários para os milhões que o setor privado emprega. Até porque, repito, temos 189 milhões de bocas para alimentar. Lula já passou fome. Tem humildade. Já foi operário e grande sindicalista. Em suas negociações sindicais, aprendeu que os ricos aceitam ceder se lhes permitem manter a pose. Foi ele mesmo que disse que estamos no tempo do “ganha ganha. Um sai ganhando e outro pensando que ganhou”. Isso se chama inteligência: o ganhador sai um pouco cabisbaixo, o perdedor sai todo pimpão, crente que abafou. Mas a verdade é outra: em casa, quem ganhou bebe um vinho feliz e faz amor com sua esposa, enquanto o perdedor olha triste para o espelho, depois de sua filha viciada em crak lhe chamar de estúpido e dizer que o odeia. Por isso, Lula participa de encontro com poderosos da mídia, os quais, pelos motivos macro-econômicos já apontados, têm muito mais autonomia e poder aqui do que na Venezuela, onde o governo é esmagadoramente o principal patrocinador de todas as publicações.

Ao Brasil não interessam novas crises econômicas, turbulências políticas provocadas simplesmente por questão de comportamento do presidente. Tipo: o presidente brigou com o Globo. Tipo: o presidente brigou com Bush. Um estadista deve, sobretudo, evitar confusão, e procurar a paz, a estabilidade. Um país, quando está em paz, estável, bem consigo mesmo e com o resto do mundo, cresce naturalmente. Quando os trabalhadores (e estudantes) organizados não são reprimidos, conseguem conquistas. O governo cumpre a função de mediador social, vigilante da Constituição, indutor do crescimento e do bem estar social e, na medida do possível, agente protetor das camadas mais vulneráveis da população. Governo não é para criar confusão.

A mídia brasileira não é mole. Procura sempre manipular as consciências, algumas vezes com métodos torpes, que geram revolta nos setores sociais mais educados e conscientes. Mas é a vida. Estamos aí lutando contra isso. É um motivo para lutar e isso é bom. De qualquer forma, já está provado que ela não tem tanto poder assim. A internet e um relativo amadurecimento de leitores/espectadores tiraram o poder quase absoluto que a mídia possuía. Ela ainda tem poder, mas é menor e, para ser efetivo, vem usando técnicas cada mais sutis, as quais, por sua vez, vem sendo identificadas por alguns segmentos sociais (nós, blogueiros e leitores de blogs, por exemplo) cada vez mais atentos a estas técnicas e mobilizados para combatê-las.

Também não sejamos ingênuos de querer uma “mídia perfeita”. Lutemos para torná-la, a esta mídia, um pouco mais tímida, um pouco mais honesta. Mas não demonizemo-la. Há gente boa que escreve para o Globo e Estadão. Eu os critico, mas compreendo a sua importância. Os editores morrem, os jornais continuam. Os editores do Estadão estão morrendo, sendo presos como assassinos, etc, outros assumirão a função, talvez pior, talvez melhor que os anteriores, enfim o jornal continuará a existir. Talvez surjam outros jornais. Talvez os jornais acabem, ou percam importância para internet. Há muita injustiça no mundo, mas também existe uma irrefreável tendência ao equilíbrio que joga ao lado da luta pela justiça social. Existe ainda uma sabedoria natural, que leva os passarinhos a voarem milhares de quilômetros em busca de clima mais ameno. Que leva o globo ocular a processar bilhões de informações para nos proporcionar o prazer singelo de ver um pôr-do-sol ou uma pintura de Chagall.

Por fim, uma última palavra sobre o crescimento. O crescimento econômico do Brasil está muito bom, porque sustentável. Ou seja, está vindo sem inflação, com acúmulo de tecnologia, lastreado num vigoroso consumo interno e numa pauta de exportação variada. E, sobretudo, está havendo um processo muito saudável e equilibrado, com as regiões mais pobres crescendo mais e com as camadas sociais mais pobres registrando maior crescimento econômico.

A esquerda brasileira precisa parar de acreditar em milagres e mundo cor-de-rosa. As coisas não são fáceis em lugar nenhum do mundo. O Brasil ainda tem muitos problemas a resolver. Mas está num bom caminho, tranquilo, seguro e firme, e isso basta. O resto é cada um fazer o que melhor sabe fazer, conforme a concepção de justiça segundo Sócrates. Trabalhar, porque um país se faz com trabalho e deixar o discurso do trabalho para a direita é o erro mais crasso que a esquerda às vezes comete, como aconteceu na França. Por isso, trabalhemos duro, sem esquecer a cervejinha depois do batente, claro, porque não estamos na França.

6 comentarios

José Carlos Lima disse...

lendo seu artigo lembrei-me que um dirigente chines

referindo-se a transição da China para um modelo aberto ao capital internacional,

o tal dirigente disse que "o importante não é a cor do gato, mas que ele ( o gato ) cace o rato."

no meu entender Lula está seguindo à risca este raciocínio

por isso busca grana aqui e ali, não interessa se o País é comunista ou capitalista

acabou de assinar um tratado com o secretário geral do Partido Comunista do Vietnã

ele faz as coisas muito bem para desespero desta elite preconceituasa que apostava no fracasso de Lula pelo fato dele, ao contrário de FHC, não falar inglês, francês, etc

só sei que Lula abraça a todos, de Reagan a Mao Tse Tung, passando por Margareth Tacher e Che Guevara

é isso aí

quanto a Chavez, talvez a Venezuela necessite dele tão quanto o Brasil precisa de Lula

concordo com você

cada macaco no seu galho

André Lux disse...

Miguel, esse seu texto está simplesmente maravilhoso! Você colocou em palavras exatamente tudo aquilo que havia para ser dito em relação ao assunto... Emocionante, cara!!! Parabéns!

Anônimo disse...

Parabéns pelo texto, e pela sobriedade acima da média...queria eu poder falar desse assunto com tanta clareza, hehehhee....

wilson cunha junior disse...

São realidades diferentes. O que se pede a Lula é que ele não abaixe a cabeça pra essa mídia que o coloca na capa de uma revista com um pé no traseiro. Mas, como foi dito, talvez seja uma estratégia dele que na frente saberemos o resultado. Para mim a questão é que os EUA sempre decidiram quem governa os países da América do Sul e a coisa deu uma guinada. Você se diz de esquerda e escreveu pra direita. Tanto que conseguiu eleogios do Rodrigo Leme. É só conferir os comentários dele no blog do Eduardo Guimarâes. O curioso é que o artigo conseguiu unir o Rodrigo, o José Carlos e o André Lux. Deve ser a idade que acelera a minha dificuldade de discernimento.

Anônimo disse...

Wilson,

deixa eu entender: vc está me julgando pelo q vc aacha q eu sou ou pelo q estou dizendo aqui? Pq vc ficar apontando dedo desse jeito e pedindo pras pessoas olharem comentários meus em outro blog parece coisa do SNI...

wilson cunha junior disse...

Calma Rodrigo, relaxe meu velho. É que de tanto acessar os blogs dá uma leve impressão de que estamos sempre nos juntando para alguma discussão, como nos tempos de faculdade, e acabo ficando intimista. Pô meu, mas pelo menos leio o que você escreve.

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