(Óleo em tela de Leonel Obando, um dos principais expoentes
das artes plásticas hondurenhas contemporâneas.)
Nos últimos dias, assistimos a um verdadeiro show de horrores. A mídia brasileira, que havia se posicionado de forma neutra na primeira semana do golpe em Honduras, certamente (já havíamos suspeitado disso, agora é uma certeza) acuada pela dura reação internacional contra o mesmo, e que, posteriormente, durante várias semanas, pôs em prática um sinistro pacto de silêncio, omitindo qualquer informação sobre o desenrolar dos acontecimentos no país, agora, que a situação voltou a esquentar, abriu o jogo: está apoiando descaradamente uma violenta e injustificável ruptura institucional ocorrida num membro da OEA. Uma ruptura que caminha, a passos pavorosamente rápidos, para se tornar uma ditadura sangrenta.
Os argumentos usados para dar aparência legal ao golpe são patéticos. Enchem a boca para falar em "cláusula pétrea", mas omitem os fatos principais:
1) O plebiscito pedido por Zelaya não incluía reeleição. Era tão somente uma consulta sobre uma Assembléia Constituinte. Consistia numa única pergunta: "Você está de acordo que nas eleições gerais de 2009 se instale uma quarta urna na qual o povo decida pela convocação de uma assembléia naconal constituinte? Sim / Não". Só sendo muito cínico e mau caráter para justificar um golpe de Estado por causa disso.
2) Caso a Assembléia Constituinte fosse formada, e a reeleição aprovada, Zelaya não seria beneficiado, mas outros presidentes.
3) Há diversas outras "cláusulas pétreas" e artigos de lei na Constituição de Honduras que vedam expressamente a usurpação do poder democrático.
4) Um presidente, que é, num regime presidencialista, o representante máximo da soberania popular, tem, como qualquer outro cidadão, direito à defesa, em seu próprio país, com nomeação de advogados, com debates públicos.
5) As principais democracias do mundo possuem o regime de reeleição, inclusive o Brasil e os EUA. É uma hipocrisia incompreensível, portanto, acusar a tentativa, através das regras democráticas, e consultando o povo, de instituir a reeleição, de ser uma manobra golpista, ou totalitária ou inconstitucional.
*
É tudo muito absurdo. Estudantes de direito aprendem, logo nos primeiros períodos da faculdade, a diferença entre o espírito das leis e as leis propriamente ditas. Mais importante do que decorar as leis é conhecer seu espírito, sua essência, porque as leis podem ser mudadas, e efetivamente o são, mas o espírito das leis é muito mais estável. Se as leis não pudessem ser mudadas, não haveria necessidade de um poder legislativo, que custa caríssimo e, de certa forma, constitui sempre uma pedra no sapato do poder executivo.
O mais importante conceito jurídico numa democracia é a soberania popular. Não há "cláusula pétrea" que possa anular o que constitui a essência moral de uma democracia: o poder emana do povo, que o exerce através do sufrágio. Naturalmente, presidentes podem sofrer processos de impeachment, mas são casos de exceção, muito raros numa democracia, e quando realizados, devem seguir rigorosamente os preceitos legais, com direito à defesa do presidente, votação em Congresso Nacional, e, de preferência, realização de escrutínio público para conferir a opinião real da população.
Tivemos um impeachment no Brasil que não realizou consulta formal da população, mas houve uma mobilização muito grande contra o presidente Collor, que fez um péssimo governo, onde todos os indicadores sociais registraram uma piora acentuada. De qualquer forma, Collor teve oportunidade de se defender, tanto em cadeia nacional, quando no Congresso. Sobretudo, pôde se defender aqui mesmo no Brasil. Ninguém invadiu a casa de Collor às 3 horas da manhã, prendeu-o, e o deportou para o Panamá. Ele ficou aqui, com todas as regalias de presidente da república, até que o processo de impeachment chegasse ao final.
*
O que me surpreende, nos defensores brasileiros do golpe em Honduras que usam o argumento de "mudança na Constituição", é o fato de, aqui no Brasil, termos um político que patrocinou uma mudança constitucional em benefício próprio, sem nenhuma consulta popular, havendo mesmo acusações de compra de voto, feitas pelos próprios deputados "comprados", e, mesmo assim, jamais passou pela cabeça de ninguém, a não ser talvez da ultra-esquerda (que, de qualquer maneira, está sempre querendo derrubar o governo, seja qual for), entrar na casa de FHC de madrugada, mandá-lo para o Panamá, e empossar o presidente do Congresso; considerando que todos os defensores do golpe em Honduras são ligados ao tucanato, como podem lidar com tamanha incoerência?
Nossa mídia disse que o "governo interino" estava organizando novas eleições, para novembro, e tudo voltaria à normalidade. Como é que é? Isso abre um precedente gravíssimo, o qual não podemos permitir. A América Latina é uma grande fileira de dominós de pé. Se derrubarmos esta peça, a fileira irá desabar inteiramente. Foi assim antes. Começaram derrubando um governante legitimamente eleito, Jacobo Arbenz Guzmán, na Guatemala, em 1954, sempre com apoio midiático, e daí todos os governos latino-americanos, com raras exceções, foram sendo derrubados, um a um.
A mídia brasileira se agarrou ansiosamente às "eleições" de novembro, marcadas pela ditadura hondurenha, como prova de que Micheletti não era tão mau assim e que a situação no país iria se normalizar. Ora, não tem sentido. A ditadura hondurenha está fechando todos os canais de comunicação que davam algum espaço para Zelaya e os que o apoiam poderem se expressar. Proibiu reuniões de mais de 20 pessoas. Aliás, acaba de baixar uma espécie de AI-5. A mídia hondurenha pró-golpe tem feito propaganda sistemática contra Zelaya, inventando casos escabrosos de corrupção, da mesma forma como a mídia brasileira fez com João Goulart, logo após o golpe de 64, para mostrar como o Brasil podia respirar aliviado por ter derrubar um presidente tão corrupto, que iria, em questão de semanas, implantar o mais severo e totalitário regime comunista no país.
Com essas condições, como pode haver um pleito justo? O que é mais importante, sobretudo, é que esse tipo de palhaçada não existe numa democracia. Pelo menos não em pleno século XXI. Não aqui nas Américas. Se as elites e a mídia hondurenha queriam Zelaya fora do poder, então que construíssem um discurso político e encontrassem um candidato capaz de conquistar votos. O que ocorre é que, como as direitas políticas da América Latina não estão dispostas a realizar ações concretas no sentido de melhorar a vida dos pobres, elas não podem competir eleitoralmente com candidatos que estão dispostos a isso. É um pensamento medieval, claro. Parte da elite latino-americana, em função de seu racismo, de seu egoísmo, de sua degeneração, se recusa a enxergar que a melhoria social em seus países é condição necessária para o desenvolvimento econômico.
*
O golpe de Estado em Honduras assemelha-se muito ao que ocorreu no Brasil, em 1964. Um cerco midiático violento, antes e depois. Apoio dos sindicatos patronais. Cooptação, sempre através da mídia, das lideranças militares, que passam a ser bajuladas de uma forma incrível, pois a mídia sabe, como ninguém, manipular egos e vaidades. E não se esqueçam que, no Brasil de 1964, assim como em Honduras hoje, empossou-se o presidente do Congresso Nacional.
*
Sou da opinião que, por questão de saúde, é melhor não ler algumas coisas. Há anos que não chego perto da Veja, por exemplo. Ela é infecciosa, como diz Paulo Henrique Amorim. Através da internet, todavia, acabamos tropeçando, sem querer, em muito lixo que preferíamos nunca ter conhecido. Esse rodeio todo é para dizer que, num descuido, acabei caindo numa poça de lama chamada Roberto Pompeu Toledo. Li assim, aos trancos, meio assustado, como quem contempla um macaco de três cabeças, ou qualquer monstruosidade do tipo. É um texto simplesmente nazista, sem tirar nem pôr. O desprezo superior com que ele fala de Honduras e América Central nos faz pensar que se trata de um aristocrata francês do século XVII referindo-se a uma região atrasada qualquer da África. Não há um pingo de humanismo. O cara é um monstro. A Veja, ela sim, se tornou uma aberração hedionda. Não vou entrar naquele joguinho de citar trechos do texto e fazer o contraponto porque não é necessário. Nem aconselho vocês a clicar no link. Acho que, a essa altura do campeonato, a fama da Veja é suficiente para fazê-los acreditar em mim. No caso de duvidarem de minha palavra, confiram vocês mesmos.
*
O caso é que a mídia brasileira, e seguramente suas primas de vários outros países latinos, resolveu se posicionar na contra-mão de todo o mundo democrático, o que dá alguma relevância à minha tese, segundo a qual o aprofundamento da democracia nos países obrigou o Leviatã - um símbolo criado pelo filósofo Thomas Hobbes para se referir aos aspectos brutais do poder político - a abandonar o terreno público-institucional e refugiar-se nas mídias corporativas, onde ele pode exercer a sua brutalidade e prepotência com a liberdade com a qual se acostumou, durante milhares de anos, à frente de monarquias, czarismos, impérios, etc, e que soube adaptar, igualmente, ao comunismo soviético. No caso das democracias ocidentais, o Leviatã não conseguiu se sentir à vontade ganhando salários medianos e julgado pelo escrutínio popular, sobretudo a partir da II Guerra, quando mulheres, negros, analfabetos e pobres conquistaram direitos políticos. O Leviatã, então, partiu para o mundo dos negócios, construiu grandes empresas, organizou lobbies. Nenhum outro setor, porém, lhe agradou tanto, pela proximidade do poder político, como as mídias corporativas.
O que vemos hoje em Honduras é talvez o primeiro grande embate mundial entre o Leviatã midiático e o poder democrático. Todos os governos do mundo rejeitaram o golpe em Honduras, contra as mídias latino-americanas, que o apóiam ou são tolerantes com ele.
*
A grande incógnita é sobre o papel dos Estados Unidos nessa encrenca. Embora tenha, pela primeira vez, perdido o protagonismo para o Brasil, os EUA ainda são uma peça geopolítica fundamental nesse delicado e perigoso jogo geopolítico. A Casa Branca condenou o golpe, declarou que considera unicamente Zelaya como presidente legítimo, cancelou o visto para as principais autoridades golpistas, aprovou sanções econômicas e tem apoiado inequivocamente as decisões da Organização dos Estados Americanos (OEA), principal órgão político regional, o qual tem condenado de forma particularmente severa a ditadura imposta em Honduras.
É preciso atentar, no entanto, que os EUA possuem uma sociedade incrivelmente heterogênea. A direita americana tem autonomia financeira para agir independentemente da Casa Branca. Talvez os serviços secretos pudessem identificar os grupos americanos que, possivelmente, participaram do golpe em Honduras. Mas os serviços secretos americanos, historicamente, fogem ao controle direto da presidência da república. Espero que Obama consiga se reeleger e que, até o final de seu segundo governo, debilite a ideologia golpista presente em setores da sociedade americana. Os contribuintes americanos gastaram mais de 1 trilhão de dólares para impor "valores democráticos" ao Iraque. Não faria sentido participar de um golpe contra os valores democráticos em seu próprio quintal. Sabemos, no entanto, que a política externa americana não costuma obedecer a nenhum valor, e sim cumprir a agenda do lobby armamentista, em particular, e do interesse econômico, em geral. Mas o importante é que, desta vez, os golpistas de Honduras não têm apoio político oficial dos EUA, e as sanções oficiais impostas por EUA, Europa e OEA ao país devem estar destruindo uma economia frágil. Diante do total isolamento dos golpistas de Honduras, os grupos americanos que os estiverem apoiando devem estar, a este altura, preparando o terreno para os abandonar. Como já fizeram em tantas outras ocasiões. Honduras é insignificante demais, economicamente, para correrem demasiado risco.
*
Não, Pompeu Toledo, Honduras não é uma "aberração", como você se refere. O poeta Roberto Sosa diz que Honduras é um "país de poetas". Lá tem gente, seu imbecil. Gente bonita, humanista, que pensa o mundo, que pensa a vida, que ama e sofre, e que você, seu merdinha insignificante prestes a ser lançado no lixo da história, com seu preconceito babaca e sua mediocridade militante, acaba de ofender profundamente. Você não ofendeu apenas Honduras, não ofendeu apenas a América Central. Você ofendeu toda a América Latina. Ofendeu a humanidade inteira.
Neste momento, o mínimo que podemos fazer é nos informarmos um pouco mais sobre a história e a cultura de Honduras. Toledo, do alto de sua desmedida arrogância em relação à América Central, continente pobre, mas com uma história de muita luta, e que abriga, nos arquétipos profundos do inconsciente coletivo, em sua pele morena, nos traços rasgados do rosto, a dignidade e a força de civilizações tão antigas, Toledo, do alto de sua arrogância, cometeu o erro apontado por Roberto Sosa, um dos maiores poetas hondurenhos, que os homens costumam cometer diante de uma criança:
Da criança ao homemOriginal aqui.
É fácil deixar um menino
à mercê dos pássaros.
Observá-lo sem assombro,
os olhos de luz indefesa.
Deixá-lo gritando no meio da multidão.
Não entender o idioma
claro de sua meia-língua.
Ou dizer para alguém:
ele é seu para sempre.
É fácil,
facilíssimo.
O difícil é dar-lhe
a dimensão
de um homem verdadeiro.
(Tradução: Miguel do Rosário).
*
A mídia e a sociedade civil americana sempre apoiaram as iniciativas norte-americanas de defender a democracia mundo afora. Em geral, essas iniciativas vinham pontuadas por bombas, gases tóxicos e muita mortandande. O Brasil, pela primeira vez, resolve apostar na democracia, mas de forma quase passiva, apenas emprestando a embaixada para Zelaya permanecer, íntegro, em seu próprio país, ou seja, sem gastar um centavo do contribuinte brasileiro, sem violência, e a mídia tupinambá, a mesma que sempre apoiou as ações pró-democracia dos EUA, se posiciona radicalmente contra a iniciativa nacional, tachando-a de "interferência" num outro país. Ora, Zelaya, como presidente eleito e único reconhecido no mundo inteiro, é que está pedindo ajuda ao Brasil. Os milhares de hondurenhos que apóiam Zelaya estão pedindo ajuda ao Brasil. Não é interferência, é dever do Brasil, porque um dos Princípios Fundamentais da nossa Constituição é:
IX - cooperação entre os povos para o progresso da humanidade;
Claro, é fácil, como no poema de Sosa, deixar Honduras "à mercê dos pássaros" (ou melhor, dos falcões), ou "gritando no meio da multidão". O difícil é vê-la em sua inteireza, tratá-la como "um homem verdadeiro", e estender a mão em solidariedade, como compete a um país amigo.