25 de outubro de 2008

A casa e o pesadelo da realidade

Por falar em músicas de infância, outra que me marcou foi essa:

Era uma casa muito engraçada
não tinha teto não tinha nada
ninguém podia entrar nela não
porque na casa não tinha chão
(...)
Mas era feita com muito esmero
na rua dos bobos número zero

O autor é Vinicius de Moraes, o que me levou, mais uma vez, a lamentar a sorte atual de nossas crianças, condenadas a ouvir Xuxa, e a pesquisar no youtube, e encontrar Frank Sinatra cantando Água de Beber. Mas voltando ao tema casa, hoje Clovis Rossi, em sua coluna na Folha de São Paulo, nos vem com a seguinte nota:

A crise e a casa tomada

MADRI - Coube a um escritor a melhor descrição da crise, noves fora a catarata de números e de expressões esotéricas como "swaps reversos". Trata-se do mexicano Jordi Soler, radicado em Barcelona, da qual emigraram seus pais. Em artigo para "El País", Soler recupera o conto "Casa Tomada", do argentino Julio Cortázar, para explicar tudo. É a história de dois irmãos quarentões que vivem em uma casona herdada, têm um cotidiano banal, "uma vida quase perfeita". Até que um dia, do fundão da casa, ao qual nunca iam, vem "um ruído impreciso e surdo, como o de uma cadeira caindo sobre o tapete ou um sussurro de conversa". O irmão avisa a irmã: "Tomaram a parte dos fundos". Aos poucos, vão tomando o resto até encurralá-los na garagem. Pois é, a crise é assim. Sujeito oculto, sem rosto, mas invasivo. No começo, tomou a parte dos fundos (a crise das hipotecas subprime). Foi avançando, avançando e já sufoca agora a parte da casa -os países ditos emergentes- que todos, governantes e palpiteiros, diziam estar absolutamente blindada.

O mundo parece encurralado. Alguns países na garagem, outros no porão, terceiros em cantos ainda confortáveis (China e seus 8% de crescimento, por exemplo), um completamente exangue (a Islândia). O pior é que ninguém sabe até onde irá o sujeito sem rosto, mesmo porque todos os sábios que faziam previsões desistiram de fazê-las -o que é, aliás, o único ganho com a crise. Não li o conto de Cortázar para poder saber como é o final e se a crise tende a ter desfecho idêntico.

Mas li o texto de Soler, que termina assim: "Damas e cavalheiros, a casa está oficialmente tomada. Mas por quem?" Será que pelo menos isso os sábios poderiam se dignar a responder -ou se sentem cúmplices?



A Folha caiu-me em mãos hoje por mais uma dessas promoções grátis. Assim como Veja. Só que, no caso da Veja, eu já liguei para a Abril dizendo que irei processá-los se continuarem me enviando esse lixo. Li a coluna do Rossi e imediatamente procurei o livro na estante, um original comprado em Buenos Aires, sobrevivente à recente "limpeza comercial" sofrida por minha bibioteca, e reli o belo e misterioso conto do argentino Julio Cortázar. Também li o artigo do mexicano, "radicado em Madri, da qual emigraram seus pais", Jordi Soler.

Notei uma diferença profunda, metafísica, entre o enigmático e humanista conto de Cortázar e as tolas divagações de Jordi Soler e os medíocres comentários de segunda mão de Rossi. Eles se restrigem a lamentar, infantilmente, a crise mundial, protestando contra todos que não explicam a eles, coitadinhos, o que ela significa. Rossi conclui sua nota culpando, da forma mais obscura e caricata, "os sábios". Que sábios são esses, Rossi não diz. Rossi veste, mais uma vez, a máscara de "jornalista inocente". O escritor, em sua coluna, é mais direto, mais assertivo, e culpa o mercado financeiro, que arrasta o mundo em suas apostas de alto risco. Ele cita ainda o romance Fogueira das Vaidades, de Tom Wolfe, como umas obras que podem explicar, ou ajudar a entender, o que acontece hoje. De fato, esse livro, que eu li, é muito bom, sobretudo por mostrar jornalistas venais que pisam em qualquer escrúpulo para chamar atenção de seus chefes.

Interpreto o mesmo conto de Cortázar de uma maneira bem diferente. O casal de irmãos, residindo na casa aos poucos tomada por forças misteriosas, tinha uma vida irritantemente ociosa e vazia. Viviam de renda de suas terras. O irmão lia livros franceses, não escrevia nada. A mulher tricotava o dia inteiro. Não tinham relações afetivas, sexuais, políticas, sociais, com ninguém. Viviam isolados do mundo e da realidade moral do mundo, como Adão e Eva. A casa tomada é uma metáfora. Quem invade a casa? Ora, a vida, as forças da vida, as vicissitudes, a consciência, a dor, o pecado. Ao final, a casa é totalmente tomada pelas forças e eles saem para rua, obrigados a conhecer o mundo. O final, embora escrito em tom melancólico, aponta um caminho de liberdade. Quantas vezes, na vida, sentimo-nos encurralados e forçados a tomar decisões que, ao cabo, revelam-se libertadoras?

A casa foi tomada, sim, caro Clovis Rossi, caro Jordi Soler "radicado em Barcelona, da qual emigraram seus pais" (informação fundamental tão generosamente cedida por Rossi; não soubéssemos de onde emigraram os pais de Soler, como poderíamos continuar vivendo?). A casa do mundinho neo-capitalista caiu, e não adianta chorar, ou fingir chorar para agradar seus patrões, senhor Rossi. Ser pessimista ganhando quinze mil reais de salário da Folha é fácil, senhor Rossi. Já eu, eu e milhões de brasileiros, temos dificuldades demais para nos darmos ao luxo de embarcamos em seu pessimismo blasé de elite em decadência.

Quem tomou a casa foram os países em desenvolvimento, cuja produção de riqueza e trocas comerciais já superaram a dos países desenvolvidos. O Brasil, eu já mostrei neste blog, exporta mais para a América do Sul do que para os Estados Unidos. A casa tinha que ser tomada, porque a vida se insinua, subrepticiamente, em todos os cômodos da existência, em todas as moitas desse vale de lágrimas, expulsando os ociosos para as ruas, onde conhecerão a verdade nua e crua da vida, o pesadelo da realidade, nos versos punk do Tolerância Zero. Talvez a casa tomada, prezado Rossi, seja aquela sem chão, sem teto e sem parede, cantada por Vinicius de Moraes e que, segundo o poeta, situava-se no início da ruas dos bobos, ali bem pertinho da Barão de Limeira.

1 comentário

Anônimo disse...

Cara, parabéns pelo texto e sua genial análise, muito lúcido e emocionante.

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