2 de outubro de 2008

Nem tão feliz assim




Se o filme do Matheus Nachtergale, Festa da Menina Morta, peca por excesso, a mesma característica faz de Feliz Natal, primeiro longa-metragem de Selton Mello, uma obra-prima. O jovem ator – agora diretor - conseguiu encontrar um ponto-de-equilíbrio no próprio excesso, criando contrastes que se harmonizam num mesmo poema visual. A mansão burguesa, a favela, a família destroçada moralmente, jovens sem expectativa, a velha alcóolatra e suicida, o menino inocente, a culpa: os contrastes são pintados na tela com espantoso virtuosismo. Não há guerra de classe, nem injustiça social, nem perversão, nem banditismo, os surrados recursos preferidos do cinema brasileiro. Com esse filme, Selton Mello, o garotão zona-sul, o global, o menino das novelas, o queridinho das meninas, alinha-se decididamente ao lado cosmopolita, urbano e humanista do nosso audivisual. Eu falava de excessos. O filme é excessivo, mas desta vez no bom sentido. Lula Carvalho, diretor de fotografia, consagra-se nesse filme como número um no país, superando inclusive seu pai, Walter Carvalho. O visual do filme tem o ritmo de uma trilha sonora feita por Hendrix, a loucura de um poema de Dylan Thomas, a paixão mórbida e sensual de um Luis Felipe Noe.

O roteiro é, ao mesmo tempo, simples e complexo. Um dia na vida de um homem que trabalha num ferro-velho. Personagens e enredo são apresentados sem pressa, sem verborragia e, no entanto, com a precisão de um Ingmar Bergman. O filme conta a história de um homem que visita a família num dia de Natal. A família está em crise, o homem carrega um mistério, uma culpa, um crime. O homem luta contra sua culpa, seu fracasso, luta para reconquistar o afeto do pai, o respeito do irmão, o amor de sua mãe. Ele não quer destruir nada. Destruir o quê? Ele não tem nada. Ele quer construir. Reconstruir. Precisa disso para sobreviver. Lembro-me de um debate no festival do ano passado, com a participação do nosso subversivo-mor, o Nilsão, e com o Karim Anous (Céu de Suely, Madame Satã). Um sujeito falastrão iniciou uma peroração sobre a suposta necessidade dos autores desconstruírem a linguagem, o cinema. Os dois cineastas, tanto Karim quanto Nilsão afirmaram que não queriam desconstruir nada. “Não tenho nada, como vou desconstruir?”, respondeu Nilsão. “Quero contar uma história”, disse Karim. Então é por aí. O cinema brasileiro quer construir a sua história, e está conseguindo. Há talento, há recursos, há coragem. Na contra-mão dos que lamentam a falta de público e salas de cinema, os cineastas mergulham em obras cada vez mais autorais. Público? O cinema, no Brasil, é pensado como arte. Não como indústria. Talvez porque não haja indústria. Cinema é arte e arte é educação, e por isso o país precisa superar seus preconceitos ideológicos, neo-liberais, e investir em salas de cinema bancadas pelo Estado, em todo país e em todas as periferias. Era o que os gregos faziam, e com muito menos recursos que o Brasil possui hoje.

Feliz Natal é um filme com pontas soltas, que são conectadas pelo espectador, na linha dos grandes clássicos. Tudo muito simples. Sofrimentos e angústias quase banais, vulgares, e talvez por isso mesmo tão terríveis e perturbadores – porque os reconhecemos, podemos tocá-los com as mãos. É isso, podemos tocar o filme, e o sofrimento dentro dele, com a mão, e botar na boca, inocentemente, como uma criança experimentando um remédio tarja preta.


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Ainda estou quebrando a cuca para saber o que pensar do novo filme de Bressane, A Erva do Rato. No comentário anterior, fiz algumas observações bastante críticas, que mantenho. Mas acho que não mencionei algumas qualidades que perdoam seus defeitos. A fotografia do filme, assinada por Walter Carvalho, é sublime. Mas é claro que o mérito é do autor, Bressane. Artistas visuais irão gostar muito desse filme, porque tem citações constantes à classicos da pintura e da fotografia. O filme é quase um vídeo-arte, o melhor que já vi. Mas eu não gosto de video-arte.

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Os curadores da nova Bienal de São Paulo ainda não se esqueceram completamente dos artistas - esse detalhe. Em entrevista para o Caderno 2 do Estadão, hoje, Ivo Mesquita fala sobre as escolhas que ele e Ana Paula Cohen fizeram para a edição deste ano e faz a seguinte observação: "Evidentemente, a gente encontra produção artística que está trabalhando essas questões, tanto que temos um grupo de artistas aqui".

Ou seja, haverá artistas expondo na Bienal! Que maravilha! E não estou sendo tão irônico como vocês pensam, já que haverá andares inteiramente vazios - ou seja, conceituais, cujo significado terá que ser explicado exaustivamente por instrutores e guias para um público perplexo e ignorante. Ah, esse povo... Posso visualizar as pessoas contemplando as paredes nuas dos pavilhões e emitindo opiniões jocosas ou talvez até mesmo agressivas. Cobrarão ingresso? Bem, mesmo que for de graça, imagino que muitos cidadãos que gastaram passagem e tempo sentir-se-ão ludibriados.

Os curadores parecem ter conseguido o que desejavam: chamar a atenção para eles mesmo, exclusivamente para eles mesmos. Os artistas tornaram-se um detalhe quase irrelevante. E ainda reclamam que a "opinião pública" não lhes tem sido favorável! Ora, querem nos impingir seu egocentrismo ridiculamente acadêmico, um conceitualismo medíocre e passado, e protestam porque não sorrimos agradecidos!

O pior é que os poucos artistas agraciados com a duvidosa honra de participarem da Bienal foram selecionados por possuírem obras que "criticam" o sistema das artes. Artistas engajados, que bonitinho. O cara põe uma cadeira voltada contra a parede e afirma que aquilo é uma terrível crítica ao capitalismo e ao sistem das artes. E que é muito contemporâneo! O público, ah, esses ignorantes! Eu leio Hegel e Doistoésvki desde criancinha, frequento galerias e museus desde que tirei as fraudas, e eles me chamam de ignorante. Chamam Ferreira Gullar de retrógrado, Affonso Romanno Sant'Anna de fascista e vão dançar música tecno na Fosfobox até seis horas da manhã. Ou tomar chá e cheirar incenso a tarde inteira, o que pra mim dá na mesma.

Os curadores dizem que a "Bienal do Vazio" será voltada para a discussão de sua própria crise institucional. Há informações relevantes na entrevista: de que a Bienal foi criada seguindo o modelo norte-americano, em que os magnatas, ao morrerem, legavam suas obras para a instituição. Aqui isso nunca aconteceu. Nossos capitalistas, como de praxe, não abrem mão de uma pinturinha meia-boca de 50 reais. Nada disso, o dinheiro que entra, claro, é do Estado. Ao mesmo tempo, como bons paulistanos e tucanos, querem manter o status de "instituição privada". A velha história: nercado livre, viva!, mas com grana do contribuinte... Publicidade empresarial bancada pelo Estado.

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