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(Rio Araguari, que dá nome a cidade natal da minha família paterna)
Dedico esse texto, in memorian, à minha vozinha querida, Zilda Barbosa, falecida esta semana com mais de 90 anos, e a todos os Barbosa que pelejam Brasil afora
Por Miguel Barbosa do Rosário
Por ocasião da morte do meu pai, houve um momento, uma reunião de família na casa da tia Nair, em que o tio Zé Luiz pediu para eu tomar a palavra. Nesse momento, eu podia ter dito algo. Eu queria. Mas seguindo a antiquíssima tradição da família Barbosa, preferi o silêncio. Durante muito tempo, matutei com meus botões o que eu poderia ter dito. Quando a saúde da vovó começou a se deteriorar, pensei que, desta vez, eu deveria fazer um discurso. Sobre ela e sobre meu pai. Não sei bem porque tive essa vontade. Acho que o fato de ser filho do meu pai, o primogênito, tem a ver com isso. O fato de ter a pretensão de ser escritor também.
Entretanto, eis-me aqui no exterior, sem poder estar presente às cerimônias de despedida da nossa querida dona Zilda e a introversão barbosiana me empurra novamente ao costumeiro silêncio. Mas desta vez eu quero falar. Impedido pela distância, eu escrevo; o que, admito, vem bem a calhar, pois era provável que meu projeto de discurso desaparecesse, como ocorreu milhares de outras vezes, numa névoa de timidez e covardia.
A morte da vovó me lembrou, mais do que qualquer outra morte, o encantamento de que fala Guimarães Rosa. A gente não morre, se encanta, disse Rosa, em seu discurso inaugural na Academia Brasileira de Letras, poucos dias antes dele mesmo encantar-se.
Poderia dizer que a morte da vovó foi a que todos desejamos para nós mesmos, se é que isso é possível – desejar a morte. Não, não é possível. Por mais natural que seja, a morte é sempre a morte, esse vácuo assustador que só conseguimos contemplar, sem terror, pelo filtro da religião.
Entretanto, a inteligência humana só funciona por comparação. Comparando a morte da vovó, e a do meu pai, com a de milhões de outros seres humanos no mundo, vemos que eles foram abençoados por uma vida longa – no caso da vovó, longuíssima. Meu pai, colhido aos sessenta um, ainda tinha um caminho à sua frente, mas a vida lhe permitiu realizar seus sonhos mais bonitos, encontrar o amor – na pessoa da minha mãe, viajar o mundo, ser um profissional reconhecido e ter filhos saudáveis. Isso é o mais importante. Pensando dessa forma, podemos nos consolar com a morte desses dois entes queridos, agora reunidos no infinito.
Minha avó e meu pai eram pessoas muito parecidas. Aliás, é curioso como, agora que eles se foram, as semelhanças me parecem ainda mais evidentes. Por aí vemos como a cultura, a educação, é apenas um exercício espiritual que fazemos para nos tornamos mais iguais a nós mesmos. Meu pai, com toda a cultura e experiência de sua vida, legou ao mundo a mesma imagem de doçura e bondade que minha avó.
Tenho trinta e um anos, idade em que somos obrigados a cortar as asas de alguns sonhos, ou seja, definir melhor nossos objetivos e aceitar, de uma vez por todas, certas características incômodas de nossa personalidade.
Cheguei onde queria chegar: personalidade. Não tem como falar dos Barbosa sem pensar nisso. A personalidade dura, matemática, do velho Chico, adoçada e enriquecida pelo espírito inventivo, intuitivo e artístico de dona Zilda, produziu resultados interessantes. Pessoas inquietas, curiosas, problemáticas. Essa é chave para se entender os Barbosa – como perceberam as mulheres, e homens, que deles se aproximaram e aprenderam a amá-los: uma personalidade complexa, mesmo um tanto angustiada, presa a um silêncio duro, triste, trágico. Um silêncio a contragosto, que explode, paradoxalmente, num sorriso de magnífica pureza, como que filtrado por camadas e camadas de sofrimento.
Tentei fugir. Por anos e anos, eu tentei fugir, admito. Em várias ocasiões, pensei ter conseguido escapar dessa personalidade barbosiana, desajeitada e sertaneja. Assim como meu pai, refugiei-me na bebida. Mas meu pai, mesmo com a bebida, nunca conseguiu se afastar de si mesmo. Eu conseguia, por alguns minutos mágicos. Minha criação cosmopolita, claro, foi a diferença. Não passei a infância colhendo feijão e tangendo boi, como meu pai. No entanto, o tempo, que eu supunha estar a meu lado, traiu-me. Eis que sinto em mim, voltando com força inaudita, como se estivesse sob pressão, todo o peso da personalidade barbosiana, que tanto havia me feito sofrer na adolescência, quando tentei, pela primeira vez, ser diferente disso, e que novamente causou-me dor ao retornar, de maneira tão brusca. Quer dizer, a personalidade barbosiana nunca me abandonou, mas houve um tempo em que ela pareceu recuar e deixou-me brincar de ser diferente.
Quando eu conversava com minha mãe sobre meu pai, ela costumava dizer que a principal herança dele era a lição de vida, de integridade, de ética, essas coisas. Nossos olhos enchiam-se de lágrimas. Hoje desconfio que essa forma de pensar é típico do lacerdismo da minha mãe, que vê tudo sob uma ótica moralista, e que inclusive exerceu grande influência sobre meu pai.
Besteira, desculpe mãe. Se meu pai foi honesto, isso não era mais que uma obrigação dele e não há mérito nenhum nisso. Muito menos é motivo para lágrimas. Esse é outro vício tipicamente brasileiro, e que gerou essa doença chamada lacerdismo, especialmente forte no Rio de Janeiro, que liga a honestidade a uma espécie de heroísmo. Isso em detrimento do conceito de cidadão, de profissional, e da... personalidade. Sem falar que é um conceito tremendamente conservador, que nos isenta de responsabilidade perante o mundo; ou seja, aquele pensamento tipo: o Brasil é uma merda, mas eu sou honesto! A honestidade é a mais vulgar das vaidades...
Essa herança para mim não vale nada. Sou honesto hoje porque sou um cidadão consciente, educado. Porque existem leis, porque acredito em Deus; não por causa do meu pai. A herança do meu pai também não foi o valor pelo trabalho. Esse é outro conceito lacerdista. Eu trabalho porque preciso de dinheiro, assim como ele, e não por nenhum valor mais alto.
Na verdade, a única verdadeira herança que meu pai me legou foi essa terrível personalidade Barbosiana, essa tendência a fugir de tudo, essa covardia social, essa náusea do mundo, esse apego à paz e ao mundo interior, e ao mesmo tempo essa grande vontade de festejar a vida, de dançar, de amar, que meu pai tentava satisfazer através do uísque e, claro, através do amor, pela mulher e pelos filhos. Herdei ainda uma tremenda insegurança e o medo da loucura, esse fantasma que tanto assombrou, e feriu, a família Barbosa.
Ou seja, herdei uma série de defeitos, congênitos e psicológicos, e hoje, diante da notícia de que minha amada e idolatrada vozinha faleceu, não sei o que fazer deles. Não serei hipócrita e dizer que estou satisfeito com eles. Não, eu os odeios, eles me fazem sofrer muito e impediram muitas alegrias na minha vida. No entanto, sei que, se existe algum valor em mim, se um dia, dessa minha cachola problemática, barbosiana, sair uma frase bonita, um parágrafo inteligente, um capítulo interessante, sei que deverei isso aos mesmos defeitos, pois foram eles que me proporcionaram o isolamento, a contragosto ou não, que me permitiram devorar livros com tanto desejo e determinação.
Meus defeitos, portanto, ou pelo menos alguns deles, se converterão em qualidades. Espero muito que isso aconteça, para que, no dia em que eu me juntar a eles, a meu pai e avó, no infinito, eu possa levar uma mensagem de liberdade. A personalidade barbosiana, enfim, após tantas décadas e gerações de sofrimento, silêncios, crises, estará redimida, livre, orgulhosa, encantada!
PS: Desculpe insistir sobre temas que estão longe de ser divertidos. Mas visto que o texto foi amplamente divulgado, à minha revelia, pelos círculos familiares, vejo-me obrigado a alguns esclarecimentos.
Em respeito aos comentários que recebi, precisei repensar alguns pontos mais polêmicos desse texto. Agredeço, portanto, imensamente aos que comentaram. Num dos pontos, o mais polêmico, nego o fator hereditário, ou familiar, para a (minha) formação moral. Refleti bem e estou agora mais convicto ainda. Claro que existe o risco de eu estar, como bom sofista que talvez eu seja, enganando-me a mim mesmo com argumentos supostamente astuciosos; por isso, só mesmo o convencimento do interlocutor (leitor), conforme a fórmula socrática, nosso primeiro moralista, é que vai dizer se estou certo ou não. Se ele também se deixar enganar, não posso fazer nada. Pereceremos todos um dia, de qualquer forma, na mesma teia de contradições.
Penso que a família, ao contrário de nos ensinar honestidade, é a instituição que mais nos incentiva à mentira, à desonestidade, à falsidade. Os pais, mesmo os melhores, mentem aos filhos, com as melhores intenções, e vice-versa. Mentir aos pais se tornou uma velha tradição humana, quase uma instituição. Nem se trata de culpar um ou outro. Essa mentira tem uma razão de existir, ela corresponde a um antigo e eterno conflito de gerações, em que novas formas de pensar, ainda não suficientemente seguras e fortes para enfrentar as antigas, não podem se mostrar abertamente, então se disfarçam com a máscara da moral antiga, o que nada mais é do que usar a mentira. Até o dia em que, maduras, elas sentem-se confiantes para se revelarem por inteiro: eis os momentos de crise, muitas vezes ruptura, entre pais e filhos. Pelo lado dos pais, é uma maneira de proteger os filhos de uma moral que, se revelada precocemente, poderia ferir ou gerar incompreensão. Essa é a razão pela qual as famílias mais moralistas são, em geral, aquelas onde prolifera mais mentira.
O que eu quis dizer, portanto, quando afirmo que a principal herança do meu pai não foi o seu honesto exemplo de vida, é que a moral é um valor social, não individual, não transmissível hereditariamente, nem familiarmente (pelas razões apontadas). Apreendemos a moral fora do âmbito familiar, quando observamos as relações sociais e os códigos de comportamento à nossa volta. Além disso, a honestidade pura é um conceito abstrato vazio. Existe apenas uma honestidade concreta: o respeito às leis, e isso aprendemos com a assimilação de valores cívicos e morais, não sendo nenhuma "herança". Embora o exemplo dos pais seja importantíssimo, nada comprova que seja fundamental, vide tantos casos de bandidos com pais maravilhosos ou pessoas boas com pais corrompidos. Essa assimilação é um processo absolutamente individual, muito mais influenciado pelo ambiente social e pelas reações psicológicas que o ambiente produz na pessoa do que pela esfera estritamente familiar.
Por outro lado, creio que ser honesto não denota, necessariamente, coragem. Para viver sim, carece coragem, muita coragem, como dizia Diadorim. Mas essa coragem vale tanto para ser mau como para ser bom e, talvez, seja mais fácil ser honesto do que mau – pois, mau ou bem, estamos respeitando a lei e evitando problemas. Isso é ótimo e se chama Estado de Direito. No entanto, claro que há momentos em que a honestidade requer um tanto de coragem, mas a bandidagem também tem esses momentos; por isso acredito que a honestidade é mais um valor cívico, uma consciência cidadã, do que uma postura heróica. Em outras palavras, ser honesto é uma obrigação e um dever republicanos, humanos, sociais, e ninguém deve se gabar de ser honesto, nem de ter herdado isso de pai ou mãe. Nem gabar outros. A honestidade é uma virtude importante, porém, mais do que qualquer outra, precisa ser uma virtude reservada, discreta e absolutamente pessoal. Ninguém é honesto porque seu pai foi honesto, e por isso eu nego uma suposta herança de honestidade que meu pai tenha me legado. E nego veementemente porque vejo, nesse discurso, a influência deste marketing sujo e hipócrita de valores morais, conhecido historicamente por "lacerdismo".
Sobre a personalidade barbosiana, esclareço que refiro-me sobretudo a meu pai, José Barbosa do Rosário, e não a seus irmãos, meus tios, que embora também carreguem esse forte gene, são pessoas totalmente diferentes e que, inclusive, eu não conheço tão bem como conheci meu pai, com quem convivi por mais de vinte anos e que era um amigo. Ele sim tinha, mais que todos, essa personalidade barbosiana difícil e reservada de que falo, personalidade que apenas se acentuou, se agravou, em seus últimos anos de vida. Eu generalizo a personalidade barbosiana para abrir o tema à uma reflexão mais universal, como se todo mundo carregasse, em si, um pouco dessa mesma personalidade. Como se todo brasileiro, ou mesmo não brasileiro, tivesse um pouco dos Barbosa. Por fim, a personalidade barbosiana é, em última instância, o que eu sou, e o que eu sou também está em tudo que vejo e sinto, em todo mundo.
E quando digo que, ao fim de tudo, eu trarei uma mensagem de liberdade, não quero dizer que minha avó ou meu pai, ou meu tio, tenham alguma necessidade disso lá no infinito onde repousam. Claro que não. Eles já estão livres, redimidos, encantados. A liberdade será minha, e as décadas e gerações que serão redimidas serão as minhas décadas de vida e as gerações que vieram antes de mim. Entender de outra forma daria margem a achar o texto um tanto presunçoso.
Quanto a alguma suposta culpa ou sofrimento que eu arraste pela minha existência, bem, isso é verdade, mas entendam também que, como poeta, eu exagero um pouco as coisas, assim como um cientista amplia o tamanho de um vírus, para enxergá-lo melhor. Portanto, não se assustem muito. Por favor, não levem nunca um escritor ao pé da letra.
Demais, felicidade para todos e desculpe se toquei em algum ponto sensível, ainda mais nesse momento doloroso para a família. Abraço em todos.