23 de fevereiro de 2007

Raízes (memórias)

Sempre quis conhecer melhor a vida do meu pai no interior de Minas, antes dele emigrar para o Rio de Janeiro, aos vinte anos, com dinheiro na cueca e a determinação de nunca mais voltar. Meu pai, quando vivo, falava muito pouco sobre o assunto - depois menos ainda, naturalmente.

Ele quase não falava, pra dizer a verdade. Muito de vez em quando, soltava alguma coisa. Eu obtinha, por outro lado, alguma informação através de seus irmãos ou através de vovó Zilda. A maior parte das raras histórias relatadas por meu pai ligavam-se ao que ele não podia ocultar, as marcas indelevéis que carregava no próprio corpo. Ele tinha uma grande cicatriz na parte inferior da perna direita. Uma pele fina, quebradiça e transparente cobria toda a batata da perna e havia respingos da mesma cicatriz mais acima. Um caldeirão de melado fervente entornara a seu lado, queimando-o terrivelmente. Não havia médicos nas redondezas – a fazenda distava dezenas de quilômetros da cidade mais próxima, Araguari -, e alguns empregados levaram o menino de oito anos, urrando de dor, para perto de uma cachoeira, para que ele aliviasse a dor com a água fria corrente. O velho Chico, meu avô, acorreu assim que soube do acidente, e ordenou que não jogassem água fria e sim água quente. Não sei muito mais sobre a história, apenas que meu pai lembrava do fato com certa amargura, porque a decisão de trocar água fria por quente custou-lhe horas e horas de sofrimento bestial.

Outra cicatriz, uma pele pendurada junto da axila esquerda, resultara da chifrada de um touro. O ferimento fora profundo e por pouco não atinge o coração. Meu pai perdeu muito sangue e... pronto, a história acaba aí. Meu pai contava a história mais com gestos do que com palavras. Com um braço imitava o chifre do touro, pegando-o por baixo. Nada de detalhes, como idade exata, antecedentes do acidente, como fora o tratamento, o que sentiu. Nada. Disse que perdeu muito sangue e que um empregado, carregando-o em suas costas, o levou para casa. Sem médicos, sem remédios a não ser os unguentos e ervas locais.

Por fim, havia a cicatriz no polegar da mão esquerda, que ele cortara jogando futebol. Como aconteceu, não faço idéia, nem ele contou. Apenas disse que cortou a mão jogando bola na roça. Uma criança mais fantasiosa poderia imaginar que, na época, o futebol era jogado com uso de facas.

Eu conhecia uma série de outras histórias, mas todas isoladas, dispersas, sem conexão entre si, sem detalhes esclarecedores, sem descrição das circunstâncias, do seu estado psicológico, do que que aconteceu depois, ou do contexto dentro da biografia como um todo.

Uma pena que ele tenha morrido tão cedo. Nossa amizade construía-se lentamente, mas de maneira firme, duradoura. Eu gostava dele e, passada a fase, na adolescência, em que eu fiquei um tanto amargo com a constatação de que ele possuía terríveis defeitos – e que os mesmos defeitos existiam em mim – a convivência com meu pai era tranquila e proveitosa para ambos.

Já que citei seus defeitos, devo especificar, para evitar confusão. Eles eram todos de ordem psicológica e comportamental. Moralmente, meu pai era impecável, uma fortaleza ética, uma pessoa comprometida com os mais altos valores humanos, pátrios, republicanos, sociais, tudo isso. Tipo da pessoa que tratava todos a seu redor com profundo respeito, principalmente os mais humildes. No entanto, no campo da personalidade, era uma pessoa atormentada, quase um aleijado social, incapaz de entabular uma conversação descontraída, contar uma piada, cantarolar uma música, dançar, narrar uma história. No entanto, era uma pessoa muito amada e respeitada por seus amigos, por causa de sua generosidade e seu talento como jornalista.

Seus amigos, no entanto, eram amigos distantes. Ninguém frequentava nossa casa. Meu pai vivia recluso, bebendo uísque sozinho. Depois que minha mãe passou a atormentá-lo por causa da bebida, ele passou a beber escondido, usando um artifício um tanto ridículo: bebia uísque numa xícara de café e guardava a garrafa num armário insuspeito. Depois de um tempo, todo mundo sabia de sua artimanha, mas ele continuou agindo assim, da mesma forma, por um bom tempo...