23 de fevereiro de 2007

Falando sério sobre a segurança pública no Rio

Passada a euforia do carnaval – que aliás eu não vivi porque eu estou fora do país -, gostaria de voltar a um assunto nada agradável. Na verdade, um assunto horrível, pois que evoca o recente assassinato do menino João, mas que, por isso mesmo, merece a nossa atenção. O tempo escorrido desde o crime até agora já nos permite contemplar com mais acuidade a situação e as circunstâncias.

A análise dos fatos convergem, entre todos os segmentos sociais, para uma perplexidade enorme em relação aos motivos que levaram os assassinos a cometerem um ato tão bestial, tão satanicamente fútil e idiota. O terrorismo, se também é bestial, não é fútil. Seus perpretadores, mesmo se o considerarmos igualmente diabólicos, tem um objetivo político e, na maior parte das vezes, reagem sobre situações opressivas de guerra e colonialismo.

Aqui temos outro tipo de violência. A maldade humana pode ser a mesma, mas as formas e os motivos que a levam a se manifestar são diversos. No caso do Rio de Janeiro, gostaria de analisar em profundidade e colaborar no encontro de propostas. O Rio é a minha cidade, onde nasci, onde estudei, onde moro e onde quero ser enterrado. Amo o Rio imensamente, com todas as suas doenças e perversões. Mas não amo, é claro, isso que aconteceu. Esse crime também mexeu comigo, especialmente, porque apontou a proliferação de uma mentalidade totalmente brutalizada, um tipo de ignorância e crueldade que não encontra explicação em parte alguma.

Os debates que sucederam o crime também me decepcionaram e horrorizaram. Apenas lançaram mais trevas sobre o tema, mostrando como o mal também encontra guarida no momento de confusão ideológica em que nos encontramos. Existe, no Brasil, um conservadorismo que não pensa, que não aponta soluções, que se limita apenas a acusar, a acusar, a acusar, apontando o dedo para toda parte. Acusa a esquerda, acusa o governo, acusa a sociedade, acusa a favela, acusa as ideologias.

No entanto, é evidente que o momento não é de apontar culpados, mas pensar soluções para estancar essa onda de barbarismo que prolifera no Rio – poderia falar do Brasil, que tem problemas parecidos, mas vamos nos concentrar, por questão de ordem, no Rio de Janeiro. Todos somos culpados, vamos começar por aí. A mídia, os governos, as elites, a polícia, tudo. Vamos entrar em detalhes.

A mídia é grande culpada. Esses bandidos – que, para mim, nem merecem o nome de bandidos, mas de bestas boçais diabólicos – eram ignorantes e burros. Isso é lógico, pois o crime que cometeram foi a coisa mais banal e estúpida, do ponto-de-vista da criminalidade em si, que vi em toda a história fluminense. Entretanto, eles assistiam televisão. Porque todo mundo no Rio assiste televisão, principalmente nas camadas mais humildes, principalmente na favela. Alberto Dines, nosso observador da imprensa que hoje virou defensor da imprensa, esqueceu disso. O fato da mídia brasileira imitar a mídia americana não a desculpa. A mídia tem culpa, porque ela tem sido, desde que a educação pública foi desmontada pelos governos militares e depois pelos governos liberais, o único meio de informação e cultura, portanto de educação, de que dispõem as classes humildes. Desta forma, senhor Ferreira Gullar, se não queres culpabilizar a pobreza, visto, como você observou, muito mediocremente, que os 50 milhões de pobres brasileiros não correspondem a 50 milhões de bandidos, então culpe, ao menos em parte, a nossa mídia televisiva, monopolizadora da informação, que não transmite mais valores cívicos, morais, sociais, e humanos.

Os desenhos matutinos das tvs abertas transmitem apenas violência. Não educam. As novelas e os programas nacionais não oferecem nenhuma cultura de qualidade que permita, de verdade, aos pobres adquirirem valores maiores. A chegada da filosofia da cultura pop, em que o valor de um programa é valorado pela audiência, e onde as tentativas de propor qualidade são taxadas – e isso nas universidades! - de elitismo, apenas agravou esse quadro. Acrescente-se a isso o fato de que o Rio de Janeiro era, e é, a cidade das crianças de rua, abandonadas pelo Estado e pela sociedade. Quantas crianças drogadas, violentadas, assassinadas, nas ruas do Rio! Que outra cidade, tirando as que vivem estados de guerra, viveram uma chacina como a da Candelária? Todas essas crianças sofrendo nas ruas, que pensaram as elites cariocas que se tornariam?

Bem, umas se tornaram artistas, como o Seu Jorge. Outras se tranformaram em monstros, como os jovens que mataram o menino João. Quantos outros monstros existem na cidade?

Apontemos o dedo, então, para a mídia sim, dr.Alberto Dines! E o senhor, que devia estar fazendo isso, também é culpado por não estar fazendo direito! Faça direito! O senhor é diretor do Observatório da Imprensa e poucos países no mundo têm uma instituição similar. Portanto, faça o seu trabalho direito!

Os governos também têm culpa. A nível federal, o estado do Rio foi um dos mais prejudicados pela sucessão de planos econômicos fracassados, pela inflação galopante, pelos salários mínimos de fome e pelo sucateamento das escolas e hospitais. Quer dizer, neste caso, todos os estados foram prejudicados, mas o Rio de Janeiro o foi particularmente, pelo fato de concentrar uma população urbana muito grande – a segunda maior do país -, associado a um assustador vácuo econômico: até poucos anos atrás, o Rio não tinha indústrias, nem agricultura e o turismo era medíocre.

Há um agravante cultural que sempre lembro para os que não conhecem a história fluminense. O Rio foi o maior mercado de escravos da América Latina, e isso no mesmo momento histórico em que era a capital política e financeira do Brasil. Diferentemente de São Paulo e mais que em qualquer outra região do país, a riqueza original do Rio veio desse crime histórico, a escravidão. E ao contrário dos Estados Unidos, onde o sul escravocrata foi punido por uma retumbante e sangrenta derrota militar, as elites cariocas não perderam nenhuma guerra. E importante, a historiografia moderna sabe que os tráficantes de escravos constituíam o grupo social mais poderoso, financeiramente, daqueles tempos.

Os cariocas não trabalhavam na época da escravidão. Os escravos faziam todos os serviços. A chegada da corte portuguesa, em 1808, agravou o quadro. Todo mundo sabe que aristocratas, de qualquer nacionalidade, tem ojeriza a qualquer tipo de trabalho. Essa moral contaminou todas as classes sociais e daí a fama do carioca de não gostar de trabalho. Daí a moral da malandragem.

A polícia e, portanto, os políticos, têm culpa direta nesta degeneração moral que vemos se alastrar no Rio. Eu testemunhei, quase todo mundo no Rio testemunhou, cenas bárbaras de violência policial contra trabalhadores autônomos, os famosos camelôs. Vimos policiais perseguirem, brutalmente, trabalhadores idosos que vendiam vasilhas de plástico, bibelôs ou artesanato. Vi isso em Copacabana e no centro da cidade. Em Madureira, uma ambulante jogou alcool no próprio corpo e tocou fogo, após uma batida em que policiais recolheram ou destruiram todo o seu material de trabalho. Foi hospitalizada e morreu dias depois.

No Rio, é onde aconteceu a maior chacina do Brasil, há três anos, em que policiais mascarados mataram mais de trinta pessoas, à esmo, na periferada de metrópole.

Não me espanta, portanto, que existam monstros na cidade. Claro que nunca imaginaríamos nada como o assassinato do menino. Mas não esqueçamos que (para não perdemos a visão crítica), mesmo que eles tenham visto o garoto preso, não era a intenção inicial deles fazer esta barbaridade.

De maneira que, se a perplexidade e a confusão diante de um crime tão horroroso parece nos paralisar, ou restringir nossa reação a um ódio irracional contra os culpados, não esqueçamos que todo problema tem suas raízes, mesmo os morais. E que, se identificarmos os problemas, ficará mais fácil encontrarmos respostas efetivas para combatê-los.

Outra observação pertinente é sobre as drogas. Particularmente, acho que é simplificar o problema culpar as drogas pelo aumento da criminalidade. A prova disso é que, há pouco tempo, a polícia identificou crescimento do crime em função da queda nas vendas; outra é que os assassinos do menino não eram traficantes. Ou seja, bandidos haverão com drogas ou não. Assim como consumidores de drogas existirão de uma forma ou de outra, não somente por culpa de uma susposta angústia, ou opressão, da sociedade moderna, mas simplesmente porque os homens se drogam há dez mil anos e não vejo razão porque parariam justo agora. O que vem ao caso, é que cabe aos educadores informarem as pessoas sobre os riscos que a droga acarreta, prejudicando o funciomento da mente e catalizando o surgimento de doenças mentais.

Quando se fala em criminalidade, a questão central não é eliminá-la, e sim reduzi-la. Esquecendo essa verdade quase cínica, os que criticam uma abordagem mais "social" do problema da segurança pública ficam cegos para o fato de que, se a origem do crime não é apenas social, a própria perpetuação da pobreza também não é um fator exclusivamente social. Quer dizer, existe um fator moral, uma desagregação moral e psicológica que está permanentemente travando a evolução das famílias pobres. Exemplo, a pobreza incentiva o alcoolismo, o alcoolismo degrada moralmente o homem, que abusa da afilhada, ou da própria filha, e não dá exemplo moral ao filho, e por aí vai. Por isso, dr.Ferreira Gullar – quem diria, héin? logo você virar um reacionarizinho burro – não temos 50 milhões de pobres-bandidos. A pobreza não é uma categoria social única, estanque. Se existem 50 milhões de pobres no Brasil, existem 50 milhões de indivíduos com problemas tão diferentes entre si como podem ser diferentes seres humanos com caras, rostos, mãos, bundas, pintos, olhos, cores, origens, criação, totalmente distintas. Cada um tem seus problemas, e seguramente a pobreza não é o único fator que leva ao crime. Não é, talvez, nem o principal. Se você ainda gosta de literatura, senhor poeta Ferreira Gullar, releia Faulkner, Luz em Agosto, e veja como a humilhação é que constitui o principal fator de desestruturação moral e desvio da personalidade. A humilhação não perdoa pobres ou ricos, mas como diria o mestre Mino Carta, até o mundo mineral está ciente de que enfrentar uma humilhação "a seco", ou seja, sem um puto no bolso, é infinitamente pior do que enfrentá-la com algum para afogar as mágoas.

Conclusão, o governo, a mídia e as elites fluminenses devem investir sim em educação nas áreas sensíveis do estado. Deve-se investir sim em lazer. Lazer! Eis uma palavra chave. O Rio, hoje, tem dinheiro, tem petróleo, e deve usar os recursos para investir em muito lazer nas regiões pobres do estado. Outra coisa, essas chacinas feitas por policias desmoralizam o poder público e o próprio Estado de Direito. A sociedade deve se horrorizar e punir exemplarmente os envolvidos com esses crimes, que não se restringem a uma chacina em 2004, mas a assassinatos sistemáticos, diários, nas periferias. Aí está a origem do mal. Construam-se grandes orfanatos, abertos e democráticos, para as crianças abandonadas. Nada de Febems a la PSDB. Orfanatos abertos, voltados para o lazer e para a educação. Reforme-se o ensino público, melhorando a qualidade, flexibilizando o currículo e aumentando as atividades culturais extra-curriculares. Isso é importante sim para combater o crime.

(na foto, os assassinos do menino)